As irmãs

Tia Gi aproveitou o silêncio da casa. Uma tarde em que as irmãs saíram pra resolver compromisso. Vó tirava o cochilo da tarde. Decerto, a tia imaginou que eu estivesse enfiada nas lições da escola,desligada do mundo ao meu redor. Que nada. Desde antes da chegada de tia Mariana eu queria entender aquele mistério. Ficava de orelha em pé, buscando qualquer coisa que explicasse o modo como ela era tratada pelas irmãs e pelos avós. Tanto cuidado no que falar, no agir. Qual era o segredo que envolvia as irmãs Marcolino?

Vi tia Gi entrar no quarto. Andando leve como quem pisa numa dúzia de ovos.Me coloquei em pé. Fui espiar o temido encontro das irmãs. Tia Gi,tão bonita e doce. Impossível compreender a má vontade de tia Mariana com ela. Sempre querendo distância.Afastando com palavra ríspida.

Dividida entre a arrumação da mala pois, tinha resolvido voltar pra casa no dia seguinte, e o cuidado com o pai, tia Mariana ignorou a presença da irmã.Seguiu de cabeça baixa, ora limpando a baba moribunda do vô, ora ajeitando os poucos pertences na mala de couro.

Vi a tristeza no olhar de tia Gi.Uma coisa de amor não correspondido. Em tia Mariana,enxerguei o ressentimento que transformava em duas pedras, os olhos castanhos .

-Me perdoa, mana.-Vi tia Gi suplicar. As lágrimas ainda não escorriam no seu rosto perfeito.

Tia Mariana mirou a outra,com a altivez de quem não espera nada e que tem quase nada a oferecer.

-Fica em paz.- Respondeu,como se estivesse dando uma ordem.

Esticado em cima da cama,vô Miguel se contorcia e mesmo eu sabia que não era dor. Alegria e aflição naquele corpo doente, desenganado pelos médicos.Avisou que não ia morrer sem ver a filha. Muitos anos de ausência. Tia Tó e tia Jau apostando que ela não vinha. Tia Zê mais esperançosa.

-Não fiz por mal.-Tia Gi continuou.

Fiquei mais curiosa.Tia Gi rica, ajudava a família inteira. O que podia ter feito para a irmã mais velha?

-Eu sei que não fez.

Vó bocejou alto do outro quarto. Corri ,ver o que era. Pediu água e o terço pra rezar. Antes,perguntou de tia Mariana. Era notável seu descontentamento com a partida da filha.

Quando voltei ao meu posto de investigação,peguei a conversa no meio. Entendi que o nome do Lauro, marido de tia Gi estava envolvido.

- Era meu noivo, Gilseani. Meu noivo.- Tia Mariana falou em tom de acusação.-E você casou com ele, sem pensar duas vezes, sem se colocar em meu lugar.

-Vocês tinham rompido. Ele se interessou por mim. Vi a chance de me casar,ajudar a família.-Tia Gi se desculpava aos prantos já,provocando o choro da outra também.

-Você, pai,mãe,as meninas.Todos cúmplices. Todos se calaram por causa do dinheiro de Lauro. Só Goa não concordou com isso.Só Goa!

Ouvir o nome de minha mãe, despertou uma ternura pela tia. Desde que ela tinha chegado,a única referência a mim tinha sido perguntar se eu era Lucélia.

-Me perdoa.- Tia Gi suplicou,outra vez.

Ouvi o trinco do portão e a conversa alta das outras. Tia Zê era animada.Entrava em casa rindo,trazendo novidades da rua. Estacou ao lado de tia Jau e tia Tó ao se deparar com o encontro.

Vô na cama,chorando feito menino. Vó se aproximando com o terço na mão, a vergonha mal disfarçada na pele envelhecida do rosto.

Fingindo afinco, voltei para os livros. Juntando pedaços daquele mistério que eu estava prestes a desvendar. Tio Lauro na verdade era noivo de tia Mariana,mas preferiu se casar com tia Gi, que era maia jovem,mais faceira e bonita. Era aquilo?

A choradeira e as desculpas que se ouviu no outro quarto mostravam que sim, A expectativa era saber se tudo terminaria bem. Se tia Mariana perdoaria as irmãs, adiaria a viagem de volta pra casa e tudo ficaria em paz.Quando o silêncio se estabeleceu, alimentei a esperança de que a paz dos Marcolino seria restaurada.

Na manhã seguinte, vi tia Mariana sair do quarto empurrando a mala, fazendo sinal de silêncio. Me deu um beijo na testa e partiu.

Lucia Rodrigues
Enviado por Lucia Rodrigues em 13/05/2020
Reeditado em 16/05/2020
Código do texto: T6945685
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