Cartão Postal

Subimos a Paulo Setúbal sentido” Corifeu de Azevedo”. A cidade adormecendo ao som de sirenes e buzinas fatigadas.O cheiro ruim do óleo em frituras envelhecidas,o odor de bebida barata entrando pelo vidro dianteiro do Sandero marrom. Na conversa alta de boêmios acinzentados,prenúncios da noite, ainda menina.

Alcançamos a Regente Feijó. Avistei a torre do edifício Impala. “O topo do mundo”, como meu pai dizia, orgulhoso . Desapossado da vida que todo dia, ele perdia um pouco. Subindo e descendo em andaimes incertos,respirando areia e cimento.Assegurado apenas pela necessidade de levar sustento para a família. Estive algumas vezes no canteiro de obra. Passeio de sábado,disputado e revezado com meus irmãos. Menino, acreditei na imensidão que meu pai exagerava . Não perdoei quando ele morreu,arrebatando de nós sua presença tola e feliz.

Ramon converteu para a Princesa Isabel. Seguiu em velocidade reduzida até a praça da matriz.Acho que ele lembrou daquela vez que a gente se escondeu na Catedral. Eu, o Du meu irmão, o Du da Francisca, ele e o Carlinhos. A polícia querendo tomar nossa mercadoria. Foi logo depois que nossos pais morreram. A gente vendia bala e chiclete no sinaleiro. Corremos pra igreja. Ficamos lá dentro, vigiados por imagens de anjos e santos. Cada um de nós disfarçando a vergonha por nossas caras encardidas , roupas rasgadas ,os pés descalços.

Notei o Ramon me olhando pelo espelho. Só parou quando viu que eu tinha percebido.Quase aposto que ele recordou aquela tarde.Acho até que sentiu a mesma vergonha.

Depois da Avenida Imaculada ia faltar pouco para se afastar do centro. O carro já tinha passado pelo calçadão, a Santa Casa . Eric virou para trás.Falou alguma coisa que não entendi . Deve ter zombado do tempo em que fui aluno do Colégio Hipócrates. A maior construção da Benjamin Constant. Bolsa de estudo que a patroa da minha mãe ofereceu ,apavorada com a possibilidade de mais um delinquente na casa da empregada.

Entramos na Alameda Mauá. O cordão de jacarandás formando uma grande sombra por cima do asfalto.À luz do dia,as árvores carregadas de flores cor de rosa eram as coisas mais bonitas de admirar.

O Sandero começou percorrer ruas esburacadas e sem asfalto . Aqui e ali, o vulto de quaresmeiras e oitis morrendo de sede. Na fachada das casas as histórias que se confundiam com a minha, a do Ramon, de tantos outros meninos.Abandono, marginalidade ,cada um resistindo como podia.

Ficamos rodando, esperando anoitecer de verdade,pensei.

De olhos fechados , imaginei quantos tinham vindo antes de mim. Quantos eu tinha levado àquele destino? Os anos convivendo entre os burgueses do Hipócrates ,tentativa nula de me desviar daquilo que nasci para ser.

Enfim, o carro parou. A cidade,mais uma vez lá embaixo.

-Sai ,professor!

Eric não perdia uma chance de fazer graça.

Abri a porta sem pressa.Invejoso de meu pai que despencou da vida ,sorrindo.

“Estou no topo do mundo agora,pai.”

Ramon disparou o primeiro tiro.

Impala, Catedral, Hipócrates. Alameda Mauá. As imagens da cidade se abrindo como um cartão postal.

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Lucia Rodrigues
Enviado por Lucia Rodrigues em 25/03/2020
Reeditado em 28/03/2020
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