FESTA DE FUNERAL

— Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah!

Gargalhava o assassino com o revólver numa das mãos girando o cilindro municiado com a outra, debruçado sobre os cotovelos apoiados sobre a base do batente da janela de sua casa, enquanto olhavam fixamente para as bolhas que se formavam à medida que os fios de água caídos do detalhado se chocavam com as enxurradas que corriam a poucos centímetros das paredes encardidas e gastas.

— Rindo tanto do quê, homem?

— Vendo as bolhas d’água lembrei-me que ele disse que eram elas quem um dia iria me denunciar. Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah!

A esposa continuava confusa, sem saber do que o marido falava. Chegou a pensar que, talvez, o esposo estivesse acometido de colapsos de loucuras, como havia mencionado o médico naquela consulta do mês passado. Mas, a julgar pelas lembranças do homicida ele estava com seu juízo perfeito. Tão perfeito que era capaz de se lembrar de cada detalhe daquele crime brutal contra um inocente.

— Ele? Ele quem?

— Matia.

— Quem é Matia?

— O homem que eu matei.

— Deu para conversar asneira, agora, Alfredo, foi?

— Se você tomar uma verdade por asneira...

— Por que?

— Era ele ou eu. Eu estou aqui como você está vendo.

— Ninguém viu?

— Estávamos somente as bolhas, ele e eu. Somente as bolhas. Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Foi tão engraçado... Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Quando percebeu que ia levar a pior e que eu ia cortar a linha da sua vida ele disse que eu poderia até matá-lo, mas, mais cedo ou mais tarde, alguém iria abrir a boca para a justiça, nem que fossem as bolhas. Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Eu já ouvi dizer que porta tinha boca e parede tinha ouvidos, mas até aquele momento nunca tinha escutado alguém dizer que as bolhas falavam. Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah!

— Você rir, mas não tem graça!

— É porque você não estava lá, Cleonice. Somente as bolhas, ele e eu. Ah! E o narrador, aquele atrevido. Eu devia ter eliminado ele também, mas nem cheguei a vê-lo. Surge quando menos se espera e desaparece do nada, o desgraçado.

— Narrador?!

— Deixa isso quieto, Cleonice. Já faz tanto tempo.

— Tanto tempo... Quem é esse tal?

— É um oniscientezinho futriqueiro e metido a saber tudo da vida dos outros.

— É melhor eu ir cuidar da vida mesmo. Você é biruta, Alfredo.

Nada disso, Alfredo, em parte, você pode até ter alguma razão, mas as bolhas formadas daquela chuva e o inocente que você o atacou sem ao mesmo dar a ele o direito de defesa foram somente o que você diz ter visto. Em seu lugar eu não teria tanta certeza de que alguém mais não estava por perto a observar o desenrolar da trama.

— Vai se ferrar, desgraçado! Ai que ódio!

Com os gritos, Cleonice voltou da cozinha, às pressas, e pôs-se a interrogar:

— O que aconteceu, homem?

— Quê?!

— Como assim, o quê? Ouvi gritos?

— Volte a fazer o que você estava fazendo, mulher... Depois sou eu o biruta!

— Vou mesmo! Vou...

Como os humanos de hoje que ao presenciar uma tragédia prefere registrar o momento com seus celulares de última geração, invés de socorrer a vítima ou chamar o resgate, eu também não pude fazer nada para evitar aquele crime cometido pelo assassino, naquela tarde melancólica de céu acinzentado. Não que eu não tivesse vontade de impedi-lo, mas eu era somente o narrador. A fúria de Alfredo arrancou a vida de Matia com a mesma rapidez que a estação desnuda o arvoredo no outono. Vi o inocente em puro sangue, perdendo o entusiasmo, se debruçando por sobre as folhas encharcadas como os frutos amadurecidos dos galhos caem sobre a terra.

Chovia. Era uma tarde de fim de outono mais chovia. Estranho? Não! Para muitos podem até ser uma anomalia da natureza, mas quantas nuvens também ficaram sem se derreterem em lágrimas para não banhar o verão daquele ano? Aquela chuva foi um bônus da natureza para todos, embora, o livre arbítrio de Alfredo proibisse Matia da participação do prêmio.

Alfredo havia se vestido de graças carnais pela filha de Matia, mas Ritinha era botão de flor ainda no desabrochar da primavera. Não estava pronta ainda e, pelo visto, o outono da sua vida demoraria alguns anos para desembarcar. E quando desembarcasse na estação dos frutos amadurecidos tinha total aptidão para escolher o responsável pela colheita do amor. Uma ação desmedida de Alfredo o fez trepar sobre a árvore proibida e saborear o fruto do meio, ainda verde, crente de que não teria um pecado a pagar.

De fato. As trombetas humanas anunciaram o delito, mas a caneta da justiça estava de tinta seca e o dolo foi anotado a lápis, num papel encardido que os ventos do outono sopraram para o infinito, como sopram pelos campos as folhas arrancadas das árvores. Insatisfeito, Matia instilou a pena:

— Nem sei o que dizer, mas merece uma punição!

A justiça puniu Alfredo com um par de asas. Voou para longe, sem deixar de fazer juras ao dono do pomar:

— Ainda voltarei para presenteá-lo com o merecido!

Matia era sábio demais para dar crédito à vingança, entendia que ofensas lançadas ao aflorar dos nervos são juramentos à flor da pele que logo voltam a se camuflarem, feito promessa de político sem escrúpulo, em períodos eleitorais. Por outra visão angular, Matia era demasiadamente ingênuo, feito eleitor apinhado de crendices que continua a deitar a fé no mesmo astucioso que o corrompe sempre.

Muitos anos se passaram e poucos ainda se lembravam da colheita forçada do fruto imaturo, da absolvição e promessa de vingança. Porém, naquela tarde úmida e fria que os ventos sopravam os campos, desnudando as árvores e lhes roubando as folhas e frutos, deixando as florestas com ares do declínio da existência, num contraste gradativo entre o amarelo e o rubro, um desconhecido apareceu numa casa para pedir ajuda ao morador cortês:

— Meu carro enguiçou lá atrás, quase na chegada, preciso de uma força para dá o tranco para eu continuar a viagem.

— Claro. Vamos lá.

— Obrigado. O veículo está logo ali.

— Chegamos...

— Curve-se!

— Hmmm...

— Mandei ajoelhar-se!

— (...)

— Bang! Bang!

— Vrom!

O veículo saiu em alta velocidade, guiado por aquele que arrancou a vida de Matia, deixando seu corpo sangrando no chão, manchando as lágrimas das nuvens com um vermelho melancólico, ao se misturarem com as folhas arrancadas pelos ventos do outono, enxurradas e bolhas...

Enquanto o espírito purificado de Matia voava transbordado de leveza e paz, rumo à festa celestial e descanso eterno, seu corpo também repousava numa cerimônia terrestre, em que se via o fim de todos os homens, seguindo pelos prados e campinas, até a inexistência física, saldado pelas folhas e frutos que, ao se soltarem dos galhos dos arvoredos, pelos caminhos, eram arremessados contra os pés dos participantes do cortejo fúnebre, como estrelas fulgentes, brilhantes e luzentes, pelo bailar dos ventos buliçosos daquele outono.

Uma cruz plantada no chão manchado de sangue, ao sétimo dia, ainda faz germinar pensamentos melancólicos de todos de coração bondoso que passam por ali.

Enquanto os raios dos relâmpagos clareavam os soluços dos trovões e as nuvens choravam sem cessar, Alfredo continuava debruçado na janela com metade do corpo para fora da casa, girando o tambor da arma com as pontas dos dedos, a observar as bolhas d’água. Olhava ainda mais fixamente até que se viu refletido dentro delas.

— Já disse para você ir se ferrar, desgraçado!

— Bang! Bang! Bang! Bang!

— Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah!

Disparou insistentemente contra as bolhas! Cleonice surgiu em estado pavoroso e espírito questionador:

— O que foi agora, homem?

— Agora?! Agora é a hora em que você vira testemunha ocular e recebe o convite para a festa de funeral do narrador!

— O médico tinha razão, você está ficando...

— Então, convide o médico também! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah!

— Bang! Bang!

Nããããããããããããã...o!!!!!!!!!!

Nessa hora eu acordei com o coração aos pulos:

— Tum! Tum! Tum! Tum! Tum!

Um clarão iluminou todo o ambiente. Era meu irmão que tinha acabado de acender a luz do quarto. Vi no rosto dele o tamanho do susto provocado pelo meu grito. Estou ferido! Avisei. Chame logo uma ambulância! Ordenei. Ele riu muito e disse:

— Você é mesmo um caboclo de sorte. Bem na hora do pesadelo, hein!

Logo, passei as mãos por todo o meu corpo, procurando ferimentos à bala... Percebi as roupas encharcadas! Suores. Minha saúde estava intacta! Tudo não passou de um sonho. Levantei-me, fui até a janela, corri a cortina no varão, percebi os arranha-céus acinzentando a metrópole lá fora, fechei a cortina e dei providência ao banho matinal.

Gilson Vasco
Enviado por Gilson Vasco em 15/02/2018
Reeditado em 16/02/2018
Código do texto: T6255058
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