O FINADO E O DIA DE FINADOS

O FINADO E O DIA DE FINADOS

Antigamente, no dia de finados, íamos ao cemitério na tranquilidade das primeiras horas do dia, quando o ar estava mais fresco e nossos corpos descansados. No ano de 1985, porém, o feriado em honra aos mortos caiu justamente num sábado, dia em que o escovão revelava o brilho da cera vermelha, os alumínios luziam mais que sol de verão ao meio dia e toda a casa rescendia a óleo de peroba. Naquele dia maçante, a visita ao jazigo ficou em segundo plano.

Ao encerrar a labuta, por volta das cinco horas da tarde, eu, carregando um balde de flores colhidas no quintal, resmungando pelos joelhos esfolados e pelas unhas arruinadas, sentindo o corpo mais cansado que burro estropiado, marchei em companhia de minha mãe rumo à necrópole municipal. Somente nós! O horário inconveniente e a rotina estafante afugentaram os demais familiares. O sol já baixava no horizonte quando atravessamos o largo portão da tenebrosa construção secular. Transitando em meio aos túmulos, meus olhos de lince detectaram uma lápide vistosa, que possivelmente fora restaurada naqueles dias. Sobre o mármore suntuoso, destacava-se uma moldura oval, prateada; e nela, um dos rostos masculinos mais perfeitos e marcantes que já havia visto. Possivelmente, tinha aquelas feições quando a morte o arrebatou. Os cabelos eram bem lisos, fartos e escuros; jogados para trás, formando um topete ao estilo Elvis Presley. O nariz bem perfilado harmonizava-se perfeitamente com o maxilar ligeiramente quadrado que exibia uma charmosa covinha. O retrato era em preto e branco, mas, aquele brilho acentuado no olhar evidenciava íris bem claras. Uma pinta próxima à orelha e um sorriso no canto da boca completavam o visual de galã de Hollywood.

Minha mãe seguiu, sem notar meu encantamento diante do retrato do finado. O piado de um pássaro rumo ao ninho me fez levantar a cabeça e perceber que não tinha tempo a perder. Dei mais uma espiada e segui pensando besteiras. Concluí que a vida era muito injusta. Lamentei ter somente quinze anos. Desejei ter sido contemporânea do falecido bonitão. Imaginei qual seria sua estatura. Devia ser alto! Pois, para mim, somente os homens altos eram bonitos. E, finalmente, achei que faríamos um belo par! Claro, se nossos destinos tivessem se cruzado.

Quando encontramos o túmulo do meu avô, parei de pensar e invocar besteiras e, com o coração extravasando saudade me pus a arrumar flores e velas. Depois, com a voz embargada me ajoelhei e fiz uma oração. Ao encerrar a reza, levantei a cabeça e encontrei, a menos de três metros, um homem alto, de cabelos lisos e escuros, jogados para trás, com os olhos esverdeados, o queixo ligeiramente quadrado, com covinha e tudo. Estava parado, de braços cruzados, nem sério, nem sorridente... aquele sorriso no canto da boca; e olhava fixamente para nós, sem nada dizer.

Abaixei a cabeça, fechei os olhos e em silêncio, rezei, rezei, rezei... invoquei todos os anjos e santos. Senti tudo que arrepia: o medo do lugar, da noite que chegava, do desconhecido, das coisas desconhecidas... enfim! Parecia que o chão estava se abrindo para me engolir.

Abri os olhos. Ele continuava lá. Olhei para minha mãe. Ela continuava ajoelhada; não parava de rezar. O vento soprou e trouxe cheiro de almíscar. Ainda por cima era cheiroso!

Não sei precisar quanto tempo durou aquela cena, mas me lembro bem quando minha mãe se levantou. Pois, foi nessa hora que escutei uma voz grave e meio rouca, muito gentil, pedir que lhe emprestasse o balde. E claro que minha mãe emprestou! Com muita naturalidade, por sinal. Ele se aproximou, apanhou o recipiente e seguiu diligente em direção à caixa d’água. Eu o acompanhei com os olhos apavorados, mas já estava quase deitada sobre o túmulo. Queria me levantar, mas as pernas não obedeciam.

Ele jogou água sobre o mármore, retirou um pouco da poeira; repetiu a operação e, finalmente, depositou flores. Voltou para devolver o balde. A esta altura, a lua já estava fechando as cortinas do dia. Recuperei as forças e, quase correndo, acompanhei minha mãe. Quando atravessamos o portão, os sinos da catedral já tangiam e os alto-falantes já propagavam a ave maria de Schubert. O irmão do defunto entrava em seu carro e ia embora. Inesquecível dia de finados.