UM MILAGRE NO NATAL - CAPÍTULO I

Carlos Lira.

CAPÍTULO I

“O milagre não é dar vida ao corpo extinto,

Ou luz ao cego, ou eloquência ao mudo...

Nem mudar água pura em vinho tinto...

Milagre –e acreditarem nisso tudo!”

Mario Quintana

Se por acaso você conta a uma criança histórias de príncipes e princesas...

A bela adormecida acordou com seu verdadeiro beijo, quando o desejo floresceu. A princesa que larga o seu castelo e vai à luta para progredir. Amantes que se beijam, se amam, se separam e se unem novamente. A vida não é um conto de fadas, é um conto de fatos, são raros aqueles que foram felizes para sempre. Na vida real, uma bela jovem rainha vira uma tirana. Os súditos matam e morrem em nome de um amor improvável. É por isso que precisamos narrar histórias de príncipes e princesas às crianças, na esperança que o amor ainda possa nascer e florescer em momentos improváveis. E algumas vezes até contos de fadas podem se tornar reais.

Maria Cecília foi uma menina que desde criança cresceu e virou mulher; muito cedo deixou de acreditar em conto de fadas, que sua mãe Inês sempre lhe injetara confiança e fé, a certeza que só o amor vence as dificuldades e ultrapassa as barreiras mais difíceis da vida. As barreiras que Maria Cecília teve que superar fogem à compreensão de uma pessoa comum. Incomum foi a infância desta menina Maria Cecília, uma menina que desde cedo aprendera não gostar de amor impossível ou irreal, mas sim do amor que lhe fortalecesse e lhe desse ânimo para vencer as tristezas. A mãe Inês, o pai Francisco, apesar da hediondez daquele “circulo familiar” para ela, a criança Maria Cecília, desconhecia uma vida familiar diferente daquela que vivera entre os pais e os infelizes sofredores naquele reduto que mais se assemelhava a uma pocilga. Menina feliz, aquela menina que corria, que pulava corda, cantava cantigas de antepassados remotos. Como a vida de criança é diferente dos adultos, as crianças amenizavam o sofrimento dos pais. Desde cedo, apesar daquele ímpeto infantil, aqui e acolá, Maria Cecília foi colhendo falas dos pais e dos demais adultos, que aquela vida era uma vida dos infernos. Menina Maria, a Cecília de uma infância única, errava bastante, e na ânsia de situar-se na realidade do mundo “lá fora” acabava magoando pessoas que gostava muito e jamais desistira dos seus ideais nem de seus sonhos...

- Que as pessoas “lá de fora” não olhem para mim e tirem conclusões precipitadas pela minha aparência ou pelo meu modo de pensar e agir... – era o pensamento de Maria Cecília – A mãe me disse que esta minha roupa e as vestimentas de todos os que viviam ali, naquele inferno em vida – eram farrapos, encardidos, rasgados e sem cor. Lá fora poderei ser chata, enjoada, complicada, problemática, revoltada e sem graça, mas – pensava eu – não se conhece uma pessoa pelo seu “jeitinho” de ser e de vestir ou por pouco tempo de amizade, porque uma verdadeira amizade, aquela amizade de fato, firme e real, sempre tem um começo mas jamais terá fim.

Agora, entre os chamados civilizados, sei que posso ter inimigos, por que não? São eles que me fortalecem e me impulsionam ao sucesso. A vida é cheia de barreiras para que sejam ultrapassadas e o caminho que me ofereça segurança me deixa mais forte, determinada e... hoje, depois de sair daquele inferno, posso me olhar no espelho e ver que não deixei rastros ruins por onde passei!!!

Nunca precisei de uma carruagem enganosa, de um sapato de cristal mas com certeza, o meu encanto jamais acaba a meia noite! Esse é o meu legado!

“Nasci em um dia qualquer no ano de 1969 entre famílias indígenas, meu pai é descendente de índio, da tribo dos Kaingangs, em um campo de concentração chamado CURRAL DO GOVERNO, em Minas Gerais. Durante os anos de chumbo, após o golpe militar de 1964, a Fundação Nacional do Índio (Funai) manteve silenciosamente em Minas Gerais dois centros para detenção de índios considerados infratores. Para lá foram levados cerca de 100 indivíduos de dezenas de etnias, oriundos de ao menos 11 estados das cinco regiões do país. O Reformatório Krenac, em Resplendor (MG), local onde nasci, e a Fazenda Guarani, em Carmésia (MG), eram geridos e vigiados por policiais militares. Sobre eles recaem denúncias de violações de direitos humanos.

Até aos nove anos de idade não conheci outro mundo a não ser aquele que vivi. O mundo dos príncipes e das princesas residia somente na imaginação, através das narrativas de encanto e magia, os vestidos longos e jóias raras, que a mãe Inês acreditava que a filha um dia iria experimentar".

"A pobreza era absoluta, vivíamos em taperas distante de qualquer tipo de higiene. Os homens faziam trabalho forçado no campo e passavam o dia longe do centro que podemos chamar aldeia. Os guardas vigiavam dia e noite todo e qualquer movimento estranho. Aprendi a ler e escrever com minha mãe Inês. Ela foi professora em escola pública em Niterói. Além de me ensinar, mamãe ensinava as crianças indígenas neste Curral do Governo. Desde criança presenciei cenas chocantes que para mim, aquilo alcançava a normalidade já que desconhecia outro tipo de vida em sociedade, diferente daquele degredo que nasci e vivi até cerca de 9 anos de idade. Os meus pais sempre me diziam que aquilo não era vida, era um inferno. Hoje, distante dos constantes tormentos aplicados em velhos, jovens e crianças, naquele “campo de concentração” étnico em Minas Gerais, Krenak passou a ser o verdadeiro inferno em vida. Acusações de vadiagem, consumo de álcool e pederastia jogaram índios em prisões durante o regime militar; Os meus pais foram acusados de vadiagem já que meu pai, formado em medicina, exercia a sua profissão na comunidade indígena Kaingangs. Os militares não reconheceram o diploma de meu pai e incluíram os meus pais naquele “pacote” sob a acusação de vadiagem. As crianças presenciavam todo tipo de violência perpetrada aos prisioneiros quando não nas próprias crianças. A maior violência física e cultural sofrida nesse período. Um índio foi preso no reformatório Krenak e chegou a ser arrastado com o cavalo de um militar, amarrado pelos pés”.

Sem alarde, o reformatório – por vezes também chamado de Centro de Reeducação Indígena Krenak – começou a funcionar em 1969 em uma área rural dentro do Posto Indígena Guido Marlière. As atividades locais eram comandadas por oficiais da Polícia Militar mineira, que, após o estabelecimento do convênio, assumiram postos-chave na administração local da Funai.

Nos anos seguintes, foram enviados para lá mais de cem índios, pertencentes a dezenas de comunidades. Um mosaico de etnias que incluía desde habitantes do extremo norte do país, como os índios ashaninka e urubu-kaapor, a povos típicos do sul e do sudeste, como os guaranis e os kaingangs.

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Enviado por clira em 18/12/2016
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