UM MILAGRE NO NATAL - CAPITULO III

CAPÍTULO III

"O milagre da vida é escrever sua história

tendo a certeza que você deixou sua biografia

gravada no coração de alguém.“

Miriam Santos

Ao sair do Reformatório Krenak eu descobri o verdadeiro sentido da palavra liberdade. A mãe e eu choramos de alegria por causa da grande sensação que nos invadia: um misto de paz e confiança em um futuro melhor que nos aguardava. Qualquer futuro seria melhor, infinitamente melhor do que aquele regime perverso de escravidão, violência e ausência de Deus. Os religiosos que procuravam nos dar assistência espiritual pouco podiam fazer por nós já que eram impedidos de ultrapassar os limites impostos pela direção do presídio. Choramos também por nossos companheiros que não foram soltos e ficaram à mercê daqueles homens opressores.

Em realidade, nasci para a vida aos nove anos incompletos de idade.

Agora, ficamos aguardando a liberdade do pai Francisco que ficara para organizar a papelada da família, a documentação necessária.

Um dia, centena de milhares, milhões de criancinhas choraram ao conquistar a liberdade uterina da continuação da vida: nasceram. O primeiro ato após o nascimento é chorar. Eu chorei quando nasci aos nove anos de idade. As primeiras palavras pronunciadas pela mãe Inês logo após a saída daquele inferno foram:

= Filha, esqueça todo este passado. Você acaba de nascer para a vida. Não alimente ódio nem rancor, guarde esta alegria da liberdade para sempre em seu viver. De ora avante viveremos felizes para sempre com o seu pai, eu e você, minha querida criança!

Nos dias de hoje vejo crianças abandonadas, recém nascidas nos braços de uma mãe indigente, de tudo carente, até de si mesma carente, em trapos vestidas, mas são crianças, muitas sem o conforto do seio materno, antes de se apossarem do sonho infantil, foram rejeitadas, em lousa fria, em um abrigo, numa lixeira ou em qualquer recanto do mundo, ao rigor do abandono. Graças a Deus tive pai e mãe no ato do nascimento, mesmo face ao maior tormento, eles me acompanharam em minha sofrida jornada.

Amo todas as crianças abandonadas deste mundo de Deus, as criancinhas que nasceram para sofrer, viver ao relento. Mãozinhas trêmulas, subnutridas, inseguras, sem afeto, bateram na porta do vizinho, procurando abrigo, procurando algo que nunca tiveram: afeto. Não havia ninguém naquela ambiente hostil para oferecer carinho, para oferecer vida, nem portas havia na pobreza ao lado. O menino procurou vida onde vida é mais cruel, a rua. Por falta de assistência, menino raquítico, anêmico e analfabeto, foi acolhido pela marginalidade da escura noite onde disputava papelões e resto de comida no lixo posto à porta dos restaurantes de luxo ou nem tanto. Aos trancos e barrancos, cresceu como grão perdido no vão das pedras que formam a calçada das grandes cidades, sem a menor condição de sobrevivência: sem teto, sem luz, sem chão, sem mãe para o acolher. O pobre miserável, adolescente esperto, ainda confiava em um futuro feliz, teve alucinações de vida e o desejo febril de viver em sociedade: candidatou-se à luta amarga do subemprego. Por falta de habilitação, sem residência fixa, foi rotulado como vagabundo, recebendo o título oficial de mendigo. Já adulto, vagando desiludido por ruas e vielas, sem emprego, sem referencial, teve a ousadia de procurar o amor. Às escuras, muito esperançoso, foi juntando portas fechadas pelo caminho afora. Sem Deus, sem nome, sem avalista, sem discurso, acreditou em campanhas sociais de TV. Entre mendigos, moradores de rua, a promiscuidade impera: ele deseja, ela deseja, eles se atracam e se separam. Um dia, este menino mal nascido, mal amado, mal educado, nem teve a oportunidade para cuidar do filho que nem chegou a ver. Não ouviu seu choro. A mendiga sumiu, evaporou-se e consigo levou o sêmen daquele vil prazer. Imaginou apenas que, após nove meses de duríssima gestação regada a fome, falta de higiene e necessária sobrevida, alguém brotara um filho seu, produto de um rápido encontro, irresponsável, assustado e vazio que sempre escutara ser aquilo amor.

Foi exatamente com este tipo de gente que Maria Cecília aprendera a conviver.

Maria Cecília é uma moça de compleição forte, esperta, atenta e com autoridade para fazer-se respeitar por aquele grupo de homens rudes, trabalhadores braçais e nada afeitos às convenções citadinas. Era uma profissão difícil esta que Maria Cecília desempenhava, principalmente para uma mulher. A vida, porém, que ele vivera, a ensinara aplicar e compreender a linguagem dos peões do asfalto. No trabalho, face à rudeza do ambiente, os gestos de Maria Cecília eram másculos, nada lembrando a delicadeza feminina de uma mulher comum. Diariamente estava à postos logo cedo, após a manhã raiada, pelas redondezas da estação das barcas, em Niterói. Ela entendia e falava a linguagem daqueles homens rudes, muitos deles foram moradores de rua, outros foram detentos, analfabetos e vivem, em sua maioria, na periferia. Foram expulsos das favelas da zona sul porque estas favelas além de totalmente ocupadas, o padrão de vida de seus moradores está aquém daqueles miseráveis liderados por Maria Cecília.

Logo que deixaram a aldeia correcional Krenak, Inês e sua filha se instalaram em um bairro de Niterói com familiares que as acolheram com carinho e se emocionaram com os relatos do drama que viveram naquele inferno correcional. À princípio, Inês conseguiu um emprego em casa de família para seu sustento e de sua filha. Enquanto Maria Cecília estudava e se preparava para o futuro. Não teve muita dificuldade no aprendizado já que a mãe Inês lhe ensinara as noções básicas de português e matemática. Ansiosamente elas esperavam a libertação do pai.

O tempo foi passando, o desespero aumentando e Francisco não aparecia. “Será que Francisco fugiu antes de conquistar a liberdade?” – dizia Inês preocupado – “Algumas mulheres krenaks, que chegaram a ser recrutadas pelos policiais da Funai para trabalhar no reformatório, me contaram a respeito da violência que sofrem os fugitivos. Quem fugia da cadeia sofria na mão deles”

_ Isso não pode ter acontecido, mãezinha – respondia Maria Cecília – papai não é burro para cometer esta loucura!

Se bem que, Maria Cecília sabia de relatos arrepiantes, além dos espancamentos, há relatos sobre perseguições acompanhadas de tiros, e de presos que nunca mais foram vistos. “Saiu um bocado ali que não voltou mais”. Um arrepio percorria todo o seu corpo. – o que fizeram com o meu pai?

Ainda na prisão Krenak aconteceu um fato muito triste: Um dos desaparecidos é Duda Baenã, ex-habitante de terras no sul da Bahia, cujo sumiço é confirmado pelo depoimento de índios e não-índios. Ofícios da Funai afirmam que, em agosto de 1969, ele foi levado ao Krenak a pedido de um funcionário do órgão. O documento o qualifica como um “índio problema”, violento quando embriagado e dono de vasto histórico de agressões a “civilizados”. A realidade deste fato, elas souberam quando estavam libertas anos depois. E revela uma versão diferente para a prisão de Duda Baenã. “Foi numa ocasião em que o Capitão Pinheiro esteve na Bahia anunciando a suspensão da assistência aos índios locais. Duda se revoltou e fez um discurso contra a administração do órgão. Saiu de lá já preso”, conta.

Após ingressar no reformatório, ele nunca mais foi visto. “Diz-se que ele teria sido executado por um militar que fazia a segurança dos índios presos na área Krenak”, comenta um indígena que vive na região onde Dedé nasceu.

Os anos se sucediam e nada do pai Francisco. A mãe tem certeza de sua morte. São passados vinte anos do seu desaparecimento. Hoje, após esses vinte anos, moramos em uma casa confortável, em São Gonçalo, a mãe conseguiu emprego como professora e eu continuo trabalhando com os peões contratados pela prefeitura.

Distante daquele trabalho árduo, cheio de desafios, Maria Cecília se transformava em uma linda moça, feminina, nível universitário e cheia de sonhos. Conheci-a em minhas andanças por Niterói, quando cursava a Faculdade de Direito, no Ingá. Firmamos uma grande amizade, conversávamos a respeito de assuntos variados, nos intervalos das aulas, tudo regado à batida de tangerina. Os assuntos foram se aprofundando, à medida que nos tornamos, além de amigos, confidentes. Em um dos nossos encontros Maria Cecília abriu o livro de sua vida e me contou tudo isto que está contido neste meu relato. Após esta sua assombrosa narrativa, confesso, passei a admirar aquela jovem com maior profundidade e admiração.

Antes de encerrar esta narrativa, quero, à bem da verdade, me ater somente aos fatos independente de conotação política. Sabe-se que qualquer ditadura facilita a prática dos barbarismos aqui relatados. Em Cuba, por exemplo, o regime de Fidel Castro assassinou muitos cubanos por cause da prática de pederastia. Os índios brasileiros, além da ditadura militar, foram vítimas da ganância de muitos, tomaram suas terras e roubaram as vidas de muitos deles.

Um vazio imenso pairava sobre nós: a mãe e eu. Faltava o pai Francisco para completar a nossa felicidade.

Hoje eu compreendo que o milagre da vida acontece e cada um faz a sua história. Procuro não entender os outros, por isso sou muito querida por meus subordinados, os peões da periferia, sinto dificuldade para entender a mim mesma, tudo na vida é um mistério, prá que estamos neste mundo? Por que sou assim? Por que o meu pai morreu de uma maneira nem tão misteriosa assim? Sofro por não ter meios de acionar os verdadeiros culpados por esta minha tragédia! Fujo da televisão quando algum desses facínoras aparece em algum noticiário. Acumulo trajetórias feitas de tantos momentos de choros e pouquíssimos sorrisos, porque não sei sorrir de felicidade, isto nunca me aconteceu. E quando o tempo se torna mais lento em meu viver, tudo o que vivi ou até mesmo o que não fiz por viver, desfila em minha tela mental... Ver em outras pessoas tudo o que um tempo eu fui... e agora? Fico reduzida a nada. Torno-me pó.

O milagre da vida é a gente saber que estamos aí ... respirando, renascendo a cada amanhecer, andando, falando, ouvindo, cantando, ou amando o que queria amar mas o alvo deste amor não mais existe: o pai Francisco! Chorando esta eterna ausência... E, em meio a muito sofrimento, até no inferno Krenak, não encontrar explicação de como foi feita beleza da natureza que sempre se renova com tamanha perfeição... E ainda tem gente que procure se preocupar em enriquecer materialmente; sem compreender que a nossa maior riqueza já está no simples fato de existirmos...

Viver é correr riscos. Só entendemos direito o milagre da vida quando deixamos que o inesperado aconteça.

E o inesperado aconteceu, o meu milagre, o milagre de minha mãe que sempre alimentou a esperança de um dia encontrar o amado Francisco com vida. E a vida aconteceu de forma inesperada, em um milagre na noite de natal.

Estávamos sentados à mesa natalina, a ceia servida aos presentes: a mãe, tia Nice, irmã de meu pai, o seu esposo tio Lourenço, o meu segundo pai, e dois primos. Diante de nós uma televisão ligada transmitindo a Missa do Galo, na Catedral Metropolitana de São Sebastião, padroeiro do Rio de Janeiro. Dom Eugênio Sales transmitia uma mensagem de fé e esperança ao povo carioca.

Após a Santa Missa, a arquidiocese ofereceu uma ceia aos mendigos e moradores de rua da cidade do Rio de Janeiro. O fato ocorreu em um dos vastos salões existentes na grandiosa catedral. Os mendigos passaram por uma sessão de cuidados especiais ministrados pelos jovens da Toca de Assis: banho tomado, roupa limpa, cabelos cuidados, barba feita, as mendigas com unhas pintadas, etc.

Todos os dias Deus nos oferece, - junto com o sol – símbolo da luz e do saber – um momento em que é possível mudar tudo o que nos deixa infelizes.

Naquele momento, diante da televisão, a catedral, dom Eugênio, as preces, a multidão de fiéis, os mendigos, os moradores de rua. O inesperado aconteceu!

O pai Francisco estava presente naquela ceia de natal entre os mendigos e moradores de rua.

Descrever a nossa reação? Impossível! Apanhamos um carro e corremos céleres ao encontro da felicidade!

Carlos Lira

clira
Enviado por clira em 18/12/2016
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