A VIAGEM

Não gosto de frio, fico insuportável em dias frios. Era inverno e fazia muito frio naquela quinta feira feia e meus ossos doíam. Na rodoviária muito mais feia que o dia frio e chuvoso, eu ainda não acreditava no que estava prestes a fazer. Não estava em meus planos aquela viagem.

Dois meses antes daquela quinta feira, ao chegar em casa vindo do escritório liguei a secretária eletrônica de minha linha telefônica privada. Retirava minhas vestes enquanto ouvia os recados. A voz que chegou ao meu ouvido direito, o esquerdo é surdo, paralisou-me.

Era o último recado na secretária e muito gostaria que ali não estivesse. A desagradável surpresa em ouvir aquela voz feminina foi tanta que precisei recorrer ao meu remédio sublingual. Não deitei, caí na cama enquanto todo o ambiente fazia uma estranha dança fora de compasso. Adormeci ou desmaiei, não sei.

Era madrugada quando levantei sentindo dificuldade de caminhar em linha reta. Apoiando-me em móveis cheguei ao quarto de banho onde vomitei. Ela sempre teve esse poder sobre mim, adoecer-me. Nem há necessidade de sua presença física, basta-lhe a voz gravada. Mas eu precisava saber o porquê do telefonema. Religuei a secretária eletrônica.

Dois meses depois de ouvir o que ela tinha a dizer eu estava naquela rodoviária feia e fria indo a seu encontro. Ninguém acreditou em mim ao saber do telefonema, e menos ainda que eu fosse ao encontro daquela criatura.

Com o frio intenso veio a chuva, chupa persistente que já caia vários dias. Danos foram causados as estradas de saída e entrada na cidade, o aeroporto fechado não pelo tempo, mas por greve de funcionarios. Todas as partidas e chegadas dos ônibus estavam atrasadas. Esperar e esperar eram as opções.

Rodoviária lotada de gente de toda espécie, um barulho infernal, gente falando e falando e falando e sempre falando alto, bando de crianças correndo falando chorando gritando. Os caminhos para o inferno são as rodoviárias. Eu não podia ficar naquela ante sala do inferno, resolvi sair de lá e esquecer aquela viagem definitivamente.

Foi guando vi aquele homem muito velho. Vestido elegantemente, mas suas roupas eram antigas, não rotas, antigas. Não conseguia parar de olhar para ele, e percebi que chorava. Ele me viu e sorriu entre lágrimas. Um impulso incomum levou-me até ele.

Perguntei se precisava de ajuda. Com lagrimas nos olhos e sorriso nos lábios agradeceu e disse que estava bem de saúde mas que precisava de um favor. Fiquei surpreso ao perguntar de quanto ele precisava, não tenho esse hábito de oferecer ou emprestar dinheiro. Não era dinheiro sua necessidade, e sim...

Antes que dissesse do que precisava foi interrompido pelo péssimo serviço de alto-falante, que num volume ensurdecedor anunciava a partida do meu ônibus em trinta minutos. Disse ao homem que aquele era meu ônibus e precisava ir. Ele pegou do chão uma valise de couro tão ou mais antiga que suas roupas e falou ser aquele o seu ônibus também.

Sentamos um ao lado do outro. Perguntou se meu destino seria o final da viagem ou mais distante. Meu destino era mais distante, pegaria mais um ônibus ao fim daquela viagem. E falei o nome da cidade para onde estava indo. Ele morava naquela cidade, estava voltando para casa.

Retomei o assunto do favor de que precisava. Ele já não chorava. Ainda sorria, mas em seus olhos havia uma tristeza que não percebera antes. Agradeceu meu interesse e disse que minha companhia era do que mais precisava. Somente eu me preocupara com ele em todo o tempo em que esteve na rodoviária, e lamentou a indiferença das pessoas com seus semelhantes.

Alguma coisa bem mais forte que a minha vontade fazia com que eu me apegasse aquele velho homem. Um sentimento nunca antes por mim sentido, algo que eu não compreendia. Fui tomado por eufórica alegria ao saber que iríamos para a mesma cidade.

Não tivemos nenhuma dificuldade durante o trajeto, chegamos ao final da viagem no tempo previsto. Mas o cansaço era inevitável após quatro dias dentro do ônibus. Hospedamo-nos. No dia seguinte embarcamos no ônibus que me levaria ao encontro daquela mulher que tanto mal fez, e levaria o velho homem de volta a sua casa.

Seis horas depois da partida entramos numa estrada sem pavimentação. Foram mais seis horas de viagem que pareceram uma eternidade. Até que Finalmente aquele tormento chegou ao fim. Eu precisava de lugar onde tomar um demorado banho e comer, eu sentia fome, muita fome. Meu amigo me convidou a segui-lo ate sua casa. La eu teria banho refeição.

A idéia muito me agradou. Eu retardaria o desagradável encontro,motivo da viagem, e prolongaria o prazer que sentia ao lado daquele homem. Nunca em minha vida, que se aproximava dos sessenta anos, eu me vi tão envolvido por uma amizade. Nada sabia sobre ele, ele nada sabia sobre mim, e ainda que assim fosse havia certa cumplicidade entre nós, mesmo nas longas horas em que ficávamos em silencio.

Minha expressão diante da casa deveria ser a mesma de uma criança ao ganhar o brinquedo almejado. Magnífica mansão. Senti vergonha ao lembrar que oferecera dinheiro ao meu amigo. Ele possivelmente tivesse bem mais que eu.

Dei-lhe meus parabéns pela estupenda propriedade. Ao olhar para ele percebi que mais uma vez chorava. Mas já não sorria. Muito maior era agora a tristeza em seus olhos. Retirou da valise de couro uma única chave. Destrancou o portão de ferro fundido. O portão rangia estridente ao ser empurrado.

Ao ultrapassar a soleira do portão mais encantado fiquei com o jardim de muito bom gosto, que trazia aos sentidos as cores e a suavidade dos perfumes de diversas flores. Estava tão deslumbrado que me assustei com o ranger do portão ao ser fechado.

Para chegarmos a grande porta da majestosa mansão, passamos por um labirinto no centro do qual havia a mais deslumbrante árvore que eu jamais vira. Não reconheci a arvore nem seus muitos e belos frutos de cor avermelhada. Ao abrir-se a grande porta dupla belamente entalhada, minhas forças abandonaram-me, senti que perderia meus sentidos.

A criatura que motivara minha viagem, e que tanto mal fizera a minha vida, ali estava diante de mim. Olhei para o velho homem que agora parecia muito mais velho e ouvi-o dizer:
_Bem vindo a casa do fogo.











 
Yamãnu_1
Enviado por Yamãnu_1 em 02/04/2011
Reeditado em 07/10/2011
Código do texto: T2885373
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