Ditado sobre outra vida...

Ditado sobre outra vida...

Poetha Abilio Machado.

Seu coração bateu forte, era uma angústia que apertava o corpo, estrangulava a alma, em seu sonho predileto encontrava ouro, ouro velho, aquele jogado aos braços do leito do rio da conceição sob a lua cheia de uma recente noite quente de qualquer dia que lhe parecesse setembro, como uma moda antiga dedilhada pelo cantador.

O aluvião desdobrou-se em frente ao vilarejo, perto do brejo, ele viu entre os sapos e coaxos sob a luz amarelada daquele verde distante tão longe do dourado que todo louco por ouro se perdeu.

A pequena corria pelo corredor, lhe tirou do sonho embriagador que lhe proporcionava as gotas do licor misturado com a cachaça, o paieiro a quase estar lhe queimando os dedos com a brasa viva de tanto calor que consumia o seu passado na fumaça azimosa do tabaco velho comprado por punhado ali mesmo na cidade na porta do seu Antonio Puppi, logo depois de ter servido uma volta de salsicha e refresco de framboesa naqueles copos listrados tipo americano, parecidos com os vidros de algumas casas que se via pela cidade.

Os cabelos esvoaçavam com o vento frio que entrava pela janela, via uma centelha de luz de algumas estrelas que vibravam entremeando as nuvens escuras que cobriam o sítio pequeno lá pros lados da Lagoa grande, passara à tarde e suas águas haviam sumido coisa que ninguém explica, um dia as águas vazam pela borda e noutro dia até os peixes somem, ficando os esqueletos dos galhos, algumas roupas presas de outras almas desavisadas que queriam acalmar o calor da pele na parada superfície do leito da serpente que dorme sob o sumidouro, que tem inclusive o rabo sob a igreja matriz causando de todo espanto, que dia acorda e tudo ruirá.

E a mulher resmungava ao canto, tem um vestido de chita, um lenço amarrado na cabeça cobrindo o meio semblante, enrola o paieiro, sua memória é além da porta e até da bica, é refém de um destino, o seu.

E como sempre se fazia assim aos finais de tarde resmungava reclamava de cada filho, de cada história, de cada espigão de milho quebrado, de cada maço de lenhas erguido às ancas, e dos filhos crescidos então?! Ficava perdida em seus devaneios em suas amargas frases de maldições, a gritar com as crianças, todas barrigudinhas...

Uma a uma passavam a correr pelo único espaço que tinha, da cozinha para os quartos, um corredor semi escuro, deformado pelas paredes de tábuas tortas retiradas dali mesmo do capão de mato que à cabana era quase apegado.

A tosse seca, o nariz escorrendo, os dedos gelados pelo frio desta primavera chuvosa, uma tal de monções misturada com um tal de el nino estavam causando seus horrores naturais sobre a terra, e bem dizia o pastor da igrejinha no final do campo da sede:

__É chegado o final dos tempos, abaixai suas cabeças e abri seus corações a ele e a mim e à sua igrejinha em restauração abri suas carteiras pois eis que como ele batemos à tua porta, daí como se désseis a ele e ele lhes dará em dobro...

O telefone não cessa, mais um cobrador que chama, mais um honorário que se vai, foram alguns pedaços do capão, depois os pedaços de terreno comprados por uma micharia pelos vizinhos que estavam melhores, depois foram os animais, logo depois os arreios, as cordas, as mulas, a filha...

Até ela parecia ter sido feita de troca, pois quando a família do noivo trouxe ele pra conhecer trouxe também um pouco de comida, uns meio saco de cada cisa que possuíam, até mesmo dois cestos de milhocolhido para que pdessem trocar no moinho por farinha, de biju e de fubá bem moído para sustentarem os pequenos com polenta e caldo de feijão.

Temos que mudar o destino dizia um dos filhos e muito cedo se meteu com us carrancudos que pela região passaram e logo, pouco tempo depois receberam um aviso que se quisessem vê-lo era só dar um pulinho na prisão da capital... Ou ele se muda a nós.

Arrependido pelo feitio do passado o velho homem passava a mão à testa que gotejava o suor da idade e da desistência, sua vida estava a um fio. Trancado no quarto pequeno, onde tinha uns livros sem capa, umas orações estranhas e uma cama pequena com colchão.

Uma burrada que só!

A mão

A arma na mão

A arma caindo da mão...

A mão agarrando o peito

A mão estranha não sentindo que o buraco era noutro lugar!

A mão morrendo em suspiro solitário

Longe das crianças, aquelas barrigudinhas que lhe corriam todo dia dizendo:

__Que trouxe hoje pai?!

Longe daqueles resmungos da mulher que de nada era tão santa, mas era boa de prosa e sabia carpi um feijão como ninguém, e prá tosá uns talos de taiá então? Etá muié, qu nas horas de faze amor era um vulcão que lhe sapecava tudo de tanta quentura que tinha, um fogo que fazia ele se entregá feito um bezerrão.

Nem ele assim o era... Um já adentrado na meia idade, um tanto desajeitado aos negócios de que tentava, e não era falta de tentá, já tinha sido de quase tudo nesta vida, só não foi douto diplomado por que pra isso era preciso estudá, mas do resto, daqueles trabaio de botá força e de sê pesado ele não fazia tipo nenhum de estranhá.

Santo deus vai ser o susto de quem o encontrar...

O corpo estendido

Uma poça de visgo avermelhado

A roupa quase nova toda suja...

Os papéis amontoados sobre a cama

A última muda de roupa dobradinha dentro da sacolinha da venda, daquele mardito que anotava tudo em dobro do que as crianças compravam só pra fazê ele mais pobre e o salafrário enriquece...

Pegou a arma do chão, ainda bem que a pequena passou correndo naquele momento,ele já havia até mesmo feito sua última oração pra numa tentativa encomendá o pouco que lhe restava de dignação...

Olhou para a porta agora escancarada e lá estava ela, parada, aquele avental encardido e olhou dentro de sua alma e sussurrou para que os pequenos não ouvissem:

__ Sevai fazê um serviço desses dá cabo di tudo nóis tamém, qui jeito mais face de sai da vida du qui lutá e mostrá presse mundão di deus qui na nossa famía só tem gente de brio, gente macho e muié di coração...

Ele levantou rapidamente e tomando a velha nos braços deixou-se ficar ali aconchegado sentindo que apesar de toda rabugice ela era sua fiel companheira, era seu escudo e seu cajado e ele tinha que dá um jeito de responde pra vida que se ela era malvada ele não ia se escodê... Guardou a papelada, desembrulhou a roupa dobrada e sorriu com os poucos dentes que lhe sobrara era hora de ir para ao lado do fogão e contá mais umas histórias para os filhos, talvez histórias como esta que acaba de lê, mas uma coisa vóis mecê não podia era comer da polenta com aquelas taiadas de queijo e salame feito pela própria mão!