La dolce vita

- Eu não faço milagres - afirmou o doutor Giusto Glorioso, erguendo as mãos bem manicuradas como que para destacar a grossa aliança de ouro na mão esquerda.

- Aposto que sua esposa nunca terá que fazer reclamações a este respeito - provoquei.

Glorioso abriu um sorriso, em reconhecimento ao gracejo.

- Creio que pelo menos desta infelicidade ela está livre - admitiu. - Mas como eu lhe disse, senhor Petrucelli, cada caso é um caso. Tenho que saber do seu histórico médico, para determinar se o meu tratamento dará resultado.

- Tudo o que o senhor precisar saber, doutor - assegurei, estendendo-lhe um envelope com uma série de exames laboratoriais que a recepcionista da clínica me orientara a fazer, antes da consulta propriamente dita.

O médico baixou a cabeça e começou a examinar a papelada, eventualmente anotando valores numa caderneta com uma caneta Montblanc preta e dourada. Finalmente, devolveu-me os exames no envelope.

- A sua saúde está ótima, não há nenhum impeditivo aqui para que possa começar o tratamento. Sempre ressalto que pacientes com histórico de doenças cardíacas, não são imediatamente elegíveis para o meu sistema, embora mesmo nestes casos ainda existam alternativas.

- Tudo certo com o meu eletrocardiograma, então - ponderei.

- Sim, tudo certo. Posso lhe falar agora nos efeitos colaterais, antes que discutamos valores?

- Então, há efeitos colaterais? - Questionei, aprumando-me na cadeira.

- Como em todo medicamento, ainda em fase de estudos, naturalmente temos que alertar sobre os possíveis efeitos colaterais - gesticulou Glorioso. - Mas, não precisa se preocupar: o principal deles, que ocorre com cerca de 16% dos pacientes tratados com o Composto A, é uma cefaleia que ocorre algumas horas após a ingestão do mesmo.

- Dor de cabeça? - Ergui os sobrolhos.

- Horas depois, quando o efeito do medicamento já houver passado - minimizou o médico.

- Ah, sim; realmente ter dor de cabeça DURANTE o uso seria realmente um aborrecimento - observei.

- Isso não vai ocorrer - assegurou Glorioso.

- E nos outros tratamentos? Mesmo efeito colateral?

- Sim; afeta cerca de 10% dos pacientes que usam os Compostos B e C.

- O C também é o que tem o efeito mais demorado?

Glorioso balançou afirmativamente a cabeça.

- Os efeitos costumam durar cerca de 36 horas... mas já tive pacientes que os sentiram até 48 horas após a ingestão.

Não pude deixar de soltar um palavrão:

- Cazzo!

- Sim, 48 horas - assegurou-me orgulhosamente o doutor Glorioso. - Mas o senhor pode optar pelo B, onde a duração é de até 12 horas, ou pelo A, o mais barato, onde ainda terá 4 horas para liquidar a fatura.

- Liquidar a fatura - balancei a cabeça e tirei um talão de cheques do bolso interno do paletó. - Sim, vamos começar pelo A, pois não estou planejando ser convidado para uma orgia romana. Não ainda, pelo menos.

Saí do consultório de Generoso com uma caixinha cinzenta contendo quatro comprimidos do Composto A, que ele retirou de um cofre embutido na parede. Sim, aquelas pílulas valiam seu peso em diamantes, e se houvesse divulgação na imprensa, haveria fila na porta para comprar. Glorioso todavia, mantinha um anonimato estrito, e só atendia quem chegava até ele por recomendação de algum outro paciente.

- Até que a patente dos compostos seja registrada, não posso correr o risco de ser roubado por algum espião industrial - esclareceu logo na minha primeira consulta.

Sim, eu sabia que caso aqueles compostos sem nome caíssem nas mãos de algum laboratório farmacêutico, o estrago seria enorme. E eu não estava pensando exatamente na gorda conta bancária suíça do doutor Glorioso.

* * *

Três dias depois, quando voltei ao consultório dos médico, não estava sozinho, nem usando mais meu disfarce de executivo da indústria da moda, mas sim o uniforme de major da Guardia di Finanza.

- Ninguém sai - avisei aos dois agentes fardados que me acompanhavam, metralhadoras em punho.

- Sim senhor - responderam em uníssono.

Voltei-me para a estupefata recepcionista e disse-lhe que anunciasse a minha chegada, como paciente.

- Seja convincente - ressaltei, dedo levantado.

- Sim, signore - prometeu a pobre garota, apavorada.

Instantes depois, a porta do consultório foi aberta e eu entrei, deparando-me com um sorridente Glorioso.

- Estava pensando quanto tempo vocês levariam pra me descobrir - declarou ele sem aparentar surpresa ao me ver uniformizado, mãos entrelaçadas sobre a mesa.

- Mais do que gostaríamos - tive que admitir. - Vou precisar da sua agenda... temos que ir atrás de todos os que compraram os seus "compostos" e nos assegurarmos de que não tenham tentado fazer engenharia reversa neles.

Ele me encarou com uma expressão curiosa.

- Isso seria um desastre, não é?

- Você sabe que seria - repliquei, fazendo um gesto para que se erguesse.

- Vire-se! - Ordenei.

Ele assim o fez, resignado. Algemei-o e empurrei-o para fora do consultório.

- Você vai ligar para todos os clientes agendados para hoje e avisar-lhes que o doutor Glorioso teve uma emergência familiar e não poderá atender - orientei à recepcionista. - O agente Scioli vai ficar aqui para acompanhar a execução da tarefa e depois será substituído por uma de nossas equipes de peritos. Só então estará liberada para ir para casa, mas deverá se apresentar à uma delegacia especializada para dar seu depoimento, tão logo seja chamada. E nenhuma palavra sobre esta operação policial sigilosa com ninguém, principalmente da imprensa, ou será considerada cúmplice. Compreendeu?

- Sim, signore - assentiu a moça balançando a cabeça, olhos marejados.

Saímos, Glorioso à frente, o sobretudo nos braços para esconder as algemas, eu e o agente Liuzzo atrás dele.

- Eu poderia gritar e chamar a atenção de um carabiniere - provocou o médico, ao chegarmos à rua. - Aposto que se as identidades de vocês forem checadas, vão estar mais enrascados do que eu.

- E eu sou contra execuções sumárias, mas creio que posso abrir uma exceção no seu caso - ameacei. - Tentativa de fuga. Ainda quer gritar?

Glorioso calou-se. Abri a porta traseira do sedã Alfetta azul escuro parado em frente ao prédio do consultório e o médico entrou, parecendo definitivamente conformado. Liuzzo assumiu o volante e arrancamos pela rua, sem ligar o giroscópio. Após algumas quadras, o agente entrou num beco sem saída e ativou o Trans-Port, sistema de navegação interdimensional, disfarçado de rádio comunicador no painel da viatura. Instantes depois, nos rematerializamos numa das milhares de vagas da Área de Escape 12. Uma garra metálica nos prendeu, como se fôssemos o prêmio de uma máquina de parque de diversão e nos levou até um dos níveis operacionais, onde finalmente pudemos desembarcar e reencontrar os demais membros da equipe de investigação que estavam à nossa espera, quatro deles já caracterizados como peritos da Guardia di Finanza dos anos 1970.

- Pegamos o Glorioso, agora é com vocês - declarei.

Os quatro tomaram assento no Alfetta e a garra baixou o automóvel de volta num espaço vazio da Área de Escape. Segundos depois, a viatura desapareceu, para voltar a reaparecer no beco em Roma, poucos minutos depois que havíamos partido dele. Tudo tinha que ser sincronizado nestas operações temporais, pois o risco de causarmos algum distúrbio cronológico sempre existia, mesmo tomando todas as precauções.

- Qual vai ser a acusação? - Perguntou-me finalmente o doutor Glorioso, ar desafiador.

- Não se faça de besta - repliquei, cansado daquele joguinho. - Você sabe perfeitamente quais são as acusações: vender sildenafila, vardenafila e tadalafila sem receita! E, o mais importante: antes que fossem inventados. Uma mina de ouro, não é?

- Não posso reclamar da "dolce vita" - admitiu Glorioso.

- [06-04-2024]