Sobre conexões…

Lembro de quando você começou a pensar junto comigo, ainda compartilhávamos a mesma placenta, minha e sua. Você falava sobre papai, ele estava prestes a te fazer a pergunta, e da importância disso para nossas vidas. Lembro de sentir seus batimentos calmos, da luminosidade da lua cheia através de seu olhar, da leveza da dança entre vocês dois e de, realmente, não fazer frio naquela noite. “Você quer fazer um bebê?”, ele perguntou.

Vocês eram jovens e já estavam casados há dois anos. Lembro de quando pensou sobre meu futuro esquecimento em relação à mudança da primeira casa, mas você me mostraria fotos da antiga e, lembro de como você gostaria de me contar sobre a noite a qual fui concebida. No entanto, guardaria até o dia em que eu pudesse ter meus próprios filhos. Porém, naquele momento você compartilhou um pensamento agudo o qual não pude ouvir. Eu via seus lábios mexendo, ainda assim não conseguia escutar… eu nascia.

Em algum momento, deixamos de compartilhar nossos pensamentos, você parecia sempre impaciente, mas agora sei, na verdade, era eu. Você tinha razão sobre eu não querer saber de sua história romântica com papai. E eu não tinha nenhuma quando questionei minha origem, gritando sobre vocês só me conceberem para ser uma empregada. Peço desculpas por isso e por todas as outras vezes em que fui rude, principalmente com você.

Ainda não sabia que vocês viveriam para ver pessoas estranhas em nossas duas casas. Vocês venderiam a primeira, na minha chegada e você, sozinha, venderia a última, na minha partida; e papai viveria com aquela outra, a qual você chama de mulherzinha.

Você sabe como nossas histórias terminam, antes mesmo de começarem. E reflete muito sobre como tudo isso aconteceu, um pouco antes de eu chegar, após as naves surgirem em órbita e os artefatos tocarem o chão. Lembro de compreender sua percepção entre o governo não dizer nada e os tabloides dizerem tudo, ainda que ambos tivessem acesso apenas a mesma visão. Então te ligaram.

É estranho rever essas histórias, que ainda não vi, pelos seus olhos. Como aquela sua conversa com aqueles dois homens, um militar e outro claramente acadêmico. Você brincou com o primeiro, sobre ter reservado um tempo para vê-los. “Vale qualquer desculpa para evitar o corpo docente.”, enquanto interagia apenas pelo olhar com o segundo. Por dentro, estava tão apavorada quanto todo mundo naqueles dias.

É diferente quando lembro de nossas interações juntas, como das vezes que via grandes interrogações na sua testa: “Mãe, posso receber uma honra?”, eu dizia, e você me perguntava o que eu queria dizer de verdade. “Na escola, Maria disse que ganhou uma honra. Eu também queria.” e você me provocava: “Que mais Maria te contou?”. “Ela vai ganhar ‘dona de honra’ na festa de casamento. Eu também queria ganhar.”, dizia séria. Então você ria e me abraçava, dizendo sim, um dia eu também poderia ser uma dama de honra.

Ou da vez quando estávamos curiosas sobre seu encontro, eu e minha amiga. Você dizia, pelo reflexo do espelho, para a gente não fazer comentários bobos sobre ele, e nós ríamos. “Temos um código”, minha amiga disse, e antes que você abrisse a boca, ela explicava: ia me perguntar sobre o tempo. Se eu o achasse bonito, diria que o tempo estava bom, caso não… Nessa hora você surtou, implorando para não fazermos isso, mesmo a gente dizendo já fazer isso o tempo todo, e ninguém percebia.

Quando ele chegou, você parecia estar mais nervosa conosco do que com o encontro, então minha amiga acionou o plano, mesmo minha expressão já afirmando como eu achava o tempo lindo. Você segurou forte o braço dele e o conduziu até a porta, e nos deu um “boa noite” séria, e ríamos juntas mais uma vez. Da varanda, dava para escutar ele te perguntando se havia perdido algo, e você murmurava: “Piada interna”, e pedia para não ter que explicar.

Mas, o dia quando voltei a me reconectar contigo, foi naquela manhã a qual conversávamos sobre minha ida escondida à festa, na noite anterior. Arrumamos a mesa do café enquanto eu falava sem parar sobre o fato de ter ficado muito bêbada. Quando me virei, vi sua expressão parecer neutra, mas te enxerguei por dentro, estava atormentada. E evitava, a todo custo, confessar que já tinha feito o mesmo na mesma idade, porque acreditava, eu perderia por completo o respeito por você. Naquele dia, senti sua preocupação doer em mim tão forte quanto doía no seu peito; e ficamos em silêncio por um tempo.

Desse dia em diante, via seus pensamentos como se estivessem dentro de mim, como no dia de minha formatura e você estava tão feliz ao me ver de beca. E nem quando papai apareceu com aquela “mulherzinha” seu coração esfriou por nenhum momento. Eu “escutava” sua incompreensão em minha escolha por uma profissão relacionada a dinheiro, ao mesmo tempo, você se lembrava da sua mãe também não entender os motivos de sua escolha, que não lhe rendia tanto quanto a minha. Eu sentia forte sua preocupação, mais uma vez, mas também sua alegria, sua prioridade era eu ser feliz, e eu realmente estava.

Eu nunca entendi a causa de nossa conexão, mesmo você tendo me explicado várias vezes, ter a ver com a chegada daqueles seres. Apesar de escutar seus pensamentos, nunca consegui acessar essa parte de suas memórias. Talvez porque tenha sido você a aprender a língua deles, de forma direta, enquanto eu, aprendi apenas a partir de você. Experienciar o tempo como experimentamos é ao mesmo tempo, uma dádiva e uma maldição.

Hoje compreendo o final daquela conversa, do militar e aquele homem, o qual agora sei, se tratava de papai, eles disseram que te ligaria. Seria a segunda ligação mais importante da sua vida, se não fosse a do dia do meu reconhecimento. Você e papai fizeram uma viagem longa e silenciosa. E quando chegaram ao necrotério, o cheiro de antisséptico e o zumbido da refrigeração cristalizaram na sua memória, até alguém puxar o lençol e revelar o meu rosto. Agora entendo porque não escutei o som agudo de sua voz naquele primeiro dia: você estava olhando para mim, nesse exato momento.

Nota: escrito a partir da perspectiva da filha, no conto “História de sua vida e outros contos” de Ted Chiang.