O paradoxo Missy-Reyart

O barulho chato dos passos cadenciados de soldados soava pela extensão do novo complexo militar central e incomodava Missy, sentada de um jeito desconfortável ao lado da porta do escritório do general Reyart. Por mais que ela tentasse encontrar uma posição, a demora incomodava, os ponteiros de seu relógio pareciam ter grilhões e suas pernas já começavam a adormecer. A mulher era alta e esbelta de pele morena e olhos verdes, uma combinação excêntrica para escolha genética nos dias atuais, mas que lhe concedia uma beleza singular em qualquer lugar que fosse. De ambos os lados, a sala central se estendia até onde os olhos pudessem enxergar e em várias direções, entre as pilastras de estilo romano, corredores despontavam tão infinitos quanto pareciam ser, porém, ali, a iluminação natural de uma abóbada de vidro dispensava a necessidade de qualquer lâmpada, embora fosse bonita com seu chão de metal escovado e um enorme símbolo da estação espacial pintado no centro da sala, o ambiente ainda parecia uma colmeia burocrática, com seus zangões uniformizados voando de um lado para o outro. Ainda assim, nem mesmo o ambiente insólito era suficiente para abalar a expressão determinada estampada no rosto de Missy. Afinal, sobre o peito, ostentava um envelope pardo que agarrava como se sua vida dependesse disso. Sua vida, talvez não, mas sua carreira sim.

Missy seria conhecida como a maior cientista do século XXVIII, disso ela tinha certeza. A descoberta que carregava naquele pequeno envelope poderia determinar toda a ciência estelar nos próximos anos e, quem sabe, reescrever algumas partes da astrobiologia. Isso a deixava em êxtase, a expectativa criava imagens de premiações e condecorações em sua cabeça, imagens vívidas de prêmios sólidos, o “Einstein de ouro”, o “a jovem cientista do ano”, o “a melhor pesquisadora da década” e quem sabe até mesmo o “personalidade do século”. Quando estava prestes a pegar o nobel de astrobiologia das mãos de uma mulher branca, uma voz a tirou de seus devaneios.

— Doutora Missy, o general a aguarda. A secretária de cabelo preso e óculos disse estendendo a cabeça para fora de uma porta lateral.

Missy se empertigou e jogou o chiclete fora, ao se levantar ajeitou o terno uma última vez e alisou a mão pela saia para ter certeza de que tudo estava perfeito. Quando começou a acompanhar a secretária pelo segundo corredor que levava até a ante-sala onde ficava o escritŕoio principal, percebeu que era quase um palmo mais alto que a jovem mulher e isso a deixou mais confiante. Mas, ao entrar no escritório do general, por um breve momento, acientista se sentiu intimidada. Dentro da sala, sentados confortavelmente, estavam o general e o secretário de defesa interestelar Feryl, Missy parou e encarou os dois enquanto a porta se fechava às suas costas.

— Senhor secretário. — Disse em tom neutro e encarou o general.

Como se tivesse entendido a queixa, o outro homem explicou.

—O secretário veio para acompanhar a nossa reunião, doutora.

Missy sentiu um bolo de saliva escorregar pela sua garganta, mas conseguiu se manter altiva e, acreditava, com a expressão de neutralidade. Demonstrar fraqueza frente a dois dos mais poderosos cargos do planeta poderia enviesar a apresentação que estava prestes a ministrar. O secretário do maior ministério da terra era apenas mais uma peça que ela teria que lidar, isso não a deixaria em xeque. Missy já havia enfrentado coisas piores, com certeza, mas em poucas vezes em sua vida tinha uma jogada tão boa quanto a que estava prestes a mostrar.

— Se puderem me seguir, vou conduzi-los à sala de reunião privativa. — Falou o general com sua voz grave.

— Tudo bem, Ray, mas seja rápido, tenho um dia ocupado hoje. — Disse o secretário displicente enquanto passava um pano na testa.

— Tenho certeza de que valerá a pena, secretário, a doutora disse rapidamente do que se tratava e eu achei que fosse do interesse de todos nós. — O general já se encaminhava para um canto da sala, próximo a uma estante de livros. Ao puxar um volume grosso de couro esverdeado, a estante se deslocou para o lado, revelando uma entrada secreta.

O secretário foi o primeiro a entrar, seguido de Missy e por último o general. O clique de um interruptor soou na escuridão e luzes iluminaram o local em tons brancos. No centro da sala, uma mesa amadeirada de dezesseis lugares ficava a frente de um monitor de apresentações. Todos tomaram seus postos de modo natural, Missy foi a frente, o general e o secretário escolheram lugares aleatŕoios sentando-se nas confortáveis nas cadeiras que se espalhavam ao longo da mesa. O cheiro de alvejante chegou ao nariz de Missy e fez a mulherespirrar, as paredes brilhavam tanto que, Missy tinha certeza, se alguém chegasse perto o bastante poderia enxergar seu rosto refletido no cinza monocromático do local.

— Há quanto tempo você não usa essa sala, Ray? — O secretário tentou falar algo enquanto Missy montava o equipamento e retirava um pen drive do envelope.

— Isso não vem ao caso, secretário, mas saiba que eu só a uso em ocasiões muito, muito especiais. Ela é uma das únicas salas que não têm câmeras, nem escutas e está rodeada de bloqueadores de sinal... em resumo, estamos isolados do mundo lá fora.

O secretário soltou um assobio.

— Você não estava brincando quando disse pra eu vir direto, não importava o que estivesse fazendo.

— Não, secretário, eu não costumo “brincar”. A palavra parecia uma piada de mal gosto ao atravessar a língua do general.

Missy pigarrou e limpou a garganta, os homens se calaram e olharam na direção dela. A apresentação estava pronta.

— Senhores, como sabem, com todo o nosso avanço no campo da astrofísica e astroengenharia, conseguimos criar um detector de ondas gravitacionais sensível o suficiente para que pudéssemos realizar detecções de comprimentos de onda superiores a dez elevado a dezessete. É claro que descobrimos coisas impressionantes e a todo momento novas descobertas surgem desvendando os mistérios do universo, mas... — Propositalmente, Missy pausou. — ... viemos percebendo um sinal estranho.

MIssy passou um slide, e uma série de gráficos de pontos e números surgiu na tela.

— Ondas gravitacionais costumam ter padrões de frequência muito específicos e cadenciados, o que nos permitiu, nos primórdios do campo, estudá-las através das rotações de quasares estelares, no entanto, em uma varredura de padrões, encontramos isso. — Ela apontou para uma parte específica do gráfico, e com a outra mão, apontou novamente, demonstrando um intervalo. — Durante este intervalo, as frequências se repetem, aqui, aqui e aqui. — Nesse momento, a cientista parou, e virou para os homens com expectativa.

O general a encarava com um rosto indecifrável, mas o secretário, por sua vez, parecia apenas confuso.

— O que ela está tentando mostrar, Ray? Eu não entendo.

— Preste atenção, secretário, a apresentação ainda não terminou, continue doutora.

Missy limpou a garganta e voltou novamente à tela.

— Esses padrões poderiam ser considerados comuns, mas a frequência com que se repetem, e continuaram a se repetir, ao longo de alguns meses, ligou um alerta no meu núcleo de pesquisa. Imediatamente, meus alunos isolaram o sinal e eu pude estudar mais a fundo essas frequências de onda específicas e as descobertas foram inacreditáveis.

O general se moveu na cadeira, e o secretário se inclinou para frente, com interesse.

O slide brilhava com um gráfico pontilhado, e ondulações no interior de uma esfera em um canto da tela.

— As ondas no interior da esfera são um exemplo de que aspecto essas ondas têm, vocês conseguem enxergar como as cristas estão regulares em intervalos específicos? Sim, esse tipo de sincronização não é comum, mas o que é impressionante de verdade é que essas cristas seguem um padrão específico de algo que conhecemos na terra... — Missy segurou a expectativa, tentando criar tensão. — As cristas seguem o padrão do código morse! Estão tentando mandar uma mensagem!

Missy estendeu os braços e seu rosto se transfigurou em um imenso sorriso, que se transformou em risadas que ecoavam pelo silêncio da sala de conferências. Os dois homens permaneciam em silêncio, a expressão do secretário era de preocupação, mas Missy pareceu não perceber, ou se percebeu, ignorou propositalmente e continuou a falar.

— Imaginem, senhores, uma espécie inteligente o suficiente para mandar um sinal através de ondas gravitacionais, é a descoberta mais importante da nossa geração, talvez da história da humanidade!

O secretário e o general continuaram em silêncio.

— Tudo que eles podem nos ensinar, tudo que podemos aprender... vamos acelerar em milênios a nossa evolução. Já conquistamos o espaço fisicamente, mas ainda não o entendemos completamente e essa pode ser nossa chance! — Missy se voltou novamente aos homens, que continuavam em silêncio, o general com suas expressões sérias e queixo angular e o secretário secando o suor. — Ora digam algo! Missy explodiu. — senhores... — acrescentou, por fim.

— A realidade não é tão simples assim, doutora. Disse o general.

— Temos que analisar o risco militar. — acrescentou o secretário. — Se alguma espécie consegue realizar algo que não fazemos nem ideia de como começar a se fazer, pra inicio de conversa, é algo preocupante do ponto de vista de um conflito... — O secretário fez uma pausa para enxugar a testa, e refletiu melhor. — Mas falando em aplicações militares, essa tecnologia de linguagem... as possibilidades são infinitas! É possível transmitir essas “ondas com mensagens” através da atmosfera terrestre? — Parecia excitado com a ideia.

Agora, Missy encarava os homens com uma expressão julgadora, era difícil imaginar como homens só pensam em guerra, difícil engolir que estavam diante da maior descoberta já feita e só pensavam em aplicações militares, como crianças mimadas. Era difícil viver no século XXVIII.

— Mas a mensagem que captamos não é ameaçadora, general... — argumentou a doutora, ignorando as perguntas do secretário.

Com uma pausa, o general se mexeu, desconfortável, em sua cadeira.

— Mas precisa admitir... é um pouco... assustadora, doutora Missy.

— Como assim?

— Desde que você me informou sobre a descoberta, eu estive pensando... e se não for uma civilização?

Missy franziu a testa, em uma dúvida sincera.

— Eu não entendo, general, quem mais poderia enviar um sinal, uma comunicação tão sofisticada em uma linguagem tão direta, e que nós entendêssemos, se não uma civilização, que outro tipo de vida inteligente faria isso?

— Por isso é tão assustador... ela se repete doutora, se repete como se fosse um grito, um chamado, algo que alguém quisesse que saibamos desesperadamente. E por quê outra civilização não atendeu ou entrou em contato ainda? Essa mensagem está vagando pelo universo desde o início dos tempos, como a senhora mesmo me disse ao telefone pela manhã. É isso que me assusta, doutora.

O secretário encarou seu amigo com assombro, em todos esses anos, nunca ouviu nem viu nada que pudesse fazer o general Reyart esboçar qualquer coisa que não um leve aceno de cabeça ou uma anuência determinada, um homem que seria capaz de subjugar uma galáxia se assim o mandassem. Algo assustou aquele homem, uma coisa capaz de despertar terror no General Reyart. O secretário tinha dúvidas se queria, ou não, saber o que dizia a mensagem, mas, antes que pudesse perguntar, sentiu a mão do general em seu ombro, aquele rosto angular o encarava de cima, ele havia se levantado e se dirigido até onde o secretário estava sentado. O homem o encarava com aqueles olhos negros profundos e velhos, parecia cansado e sua expressão expressava um sentimento ; insegurança. Sentindo a garganta seca, Rayeart disse ao seu amigo em um tom tão monocromático

quanto as paredes :

— Senhor secretário, a mensagem que continua a se repetir em nossos instrumentos é : “estou vivo.”

JP Saint
Enviado por JP Saint em 04/11/2023
Código do texto: T7924409
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