SINGULARIDADE

Sou o último sobrevivente da tripulação da Cassiopeia. Meus dois companheiros morreram quando um misterioso incêndio consumiu todo o oxigênio a bordo e destruiu em minutos anos toda a nave levando com ele anos e anos de planejamento.

Nosso objetivo era estudar o buraco negro V616 Monocerotis na constelação do Unicórnio. Isso seria algo inédito na história da ciência. Nunca antes a raça humana esteve tão próxima de estudar um evento com a magnitude de um buraco negro.

A atenção dos três planetas que compunham a Federação estaria toda em nós. Seriamos os primeiros humanos a presenciar diretamente um evento que coloca a prova todo o conhecimento acumulado em séculos de pesquisa astrofísica

“Caçadores de fantasmas estelares”, esse foi o termo que inventamos para a nossa nova atividade. Isso por que um buraco negro nada mais do que aquilo que resta quando uma estrela morre. Nós gostávamos dessa alcunha.

Estávamos equipados com a melhor propulsão já feita em quase quinhentos anos de exploração espacial e realizamos o primeiro salto no hiperespaço. Um apertar de botão e pronto, estávamos três mil anos-luz longe de casa, mas algo deu errado e agora me vejo sozinho entre as estrelas.

Somente eu consegui escapar em um dos módulos de serviço que, carinhosamente, chamávamos de casulo. Ele é agora o meu pequeno bote salva-vidas.

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Encontro-me muito próximo ao Horizonte de Eventos, no ponto onde sei que não haverá mais retorno para mim. Eu estou com muito medo, não vou negar. Não sei o que vai acontecer comigo, talvez os átomos que compõem o meu corpo entrem em um processo de desintegração-reconstrução eterno. Sei que deixarei simplesmente de existir. Tudo o que um dia eu chamei de “minha vida” virará algo inominável em um átimo de tempo, aliás, acho que o próprio tempo deixará de existir quando eu for absorvido pelo buraco negro.

Só tenho uns poucos segundos antes de mergulhar na singularidade e quando isso acontecer tudo o que eu sou deixará de existir. Uma tristeza enorme invade meu ser quando penso nisso. Uma vida inteira passando pela minha mente. Tudo o que construí em minha existência, meus projetos, amores, paixões, frustrações... Tanta coisa. Tudo isso ficará perdido para sempre entre as estrelas.

Como estará minha filha agora? Ela estava prestes a entrar na adolescência quando eu parti. Tanta coisa para pensar antes de me desintegrar e eu fico aqui recordando um beijo roubado na porta da escola, de um joelho esfolado após uma queda de bicicleta, das cenas do meu casamento. Nunca fui de prestar atenção em coisas como flores e plantas, mas um dia resolvi criar girassóis, talvez pelo fato de achar que eles combinem com astronautas. Agora não sei quem vai cuidar deles. Todas as minhas coisas ficarão para trás...

Tento organizar meu pensamento, mas é muito difícil.

Não há mais tempo para lágrimas ou lembranças. Olho inutilmente para o painel de comando do casulo. Eles me dizem que o evento há minha frente tem aproximadamente vinte quilômetros de diâmetro. Mais de uma dezena de instrumentos medem e armazenam dados que jamais serão analisados por ninguém já que nenhum sinal emitido por eles jamais escapará da singularidade.

O momento final chega. Haverá algum tipo de formigamento em meu corpo? Será algo instantâneo? Vai doer? Dentro de meu traje tento respirar pausadamente. Não formulo nenhuma oração, nunca aprendi nada dessas coisas de religião e, mesmo que soubesse, de que adiantaria?

Fecho os olhos e mergulho na singularidade...

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Mantenho os olhos fechados. O que será que aconteceu? Eu estou morto? Sinto uma onda de medo misturado com surpresa invadir os lugares mais escondidos do meu ser. Calma! É hora de se manter calmo custe o que custar. Tento colocar a mente no lugar. Se eu morri porque eu continuo a pensar? Eu estou com medo, mas se tenho medo é porque sou capaz de sentir coisas.

Não sei quanto tempo passou. Ainda estou no casulo? Sinto meu corpo, sinto minha respiração. Formulo mentalmente meu nome completo e elaboro um intrincado conceito de física relativista. Acho que fiz isso para demonstrar para mim mesmo que eu ainda sou eu, que ainda preservo minha identidade.

Ainda estou vivo!

Tenho medo de ver algo inimaginável e completamente incompreensível. Relutantemente abro os olhos e... Estou sentado no sofá da sala de minha casa!

O que houve? É isso que acontece quando morremos? Não estou entendendo. O que aconteceu? Olho para meu corpo e vejo que estou usando uma antiga roupa minha. Onde está o meu traje? Sem entender o que está acontecendo eu me dou conta da música que ecoa vindo dos pequenos spots de som das paredes. Ela é antiga, da época em que fazia universidade. Eu vivia cantarolando-a pelos corredores do campus. Fazia muitos anos que não a escutava.

Tudo está exatamente igual como eu havia deixado. Não sei quanto tempo passou. Sinto-me perdido e com uma sensação de estranhamento que não sei explicar. Afinal o que aconteceu? Eu saí de casa mesmo? Eu fiz uma viagem interestelar? Será que estou me recuperando de um surto psicótico?

Olho em volta e vejo que minha coleção de miniaturas de naves espaciais antigas ainda está na estante à minha frente. Percebo que as paredes ainda têm os quadros com reproduções baratas de pintores clássicos. Até o pequeno lustre no teto é o mesmo.

A porta da sala se abre repentinamente. É Isadora chegando da escola.

- Pai, vai me ajudar com o dever de casa? É de matemática e eu sei que o senhor é bom de matemática. O senhor vai me ajudar, não é? - Ela fala rindo e colocando a mão na boca fingindo uma timidez que nunca teve.

Definitivamente eu estou em casa.

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Quase um mês já se passou desde o meu retorno e eu não sei dizer o que houve comigo. Algo aconteceu e não tenho palavras e nem conceitos para explicar. Minha esposa, minha filha, os amigos e todas as coisas do meu cotidiano estão aqui e continuam aparentemente os mesmos, mas lá em um cantinho bem escondido de minha consciência algo me diz que este não é o meu mundo.

Os dias transformaram-se em semanas e as semanas viraram meses. Aos poucos vou me adaptando às pessoas e a este lugar. Muitas vezes sinto como se estivesse em uma espécie de Jardim do Éden e um Deus supremo velasse por mim. Devo dizer também que existem momentos em que minha curiosidade de explorador espacial vem à tona e fico especulando e criando mil hipóteses que me ajudem a entender melhor o que houve comigo.

Foi com a alternância entre um estado de contemplação e outro de pura curiosidade que cheguei à conclusão que eu vivo em um mundo que é um simulacro. Um mundo que é quase igual ao meu, mas que, em pequenos detalhes, termina demonstrando o que ele é de fato: uma emulação.

O movimento errado dos girassóis, a ausência de lateralidade, todos aqui são ambidestros, a inexistência de explosões emocionais, tão típicas nas pessoas, são indícios de que esse não é o meu mundo. Algumas vezes me pego pensando que a materialidade das coisas que me cercam é apenas uma cópia de algo que tem existência apenas em minhas memórias. Um conceito, uma obra ou algo qualquer que eu nunca tenha tido contato ao longo de minha vida não existirá nesse lugar. Pedi para a IA de minha casa tocar todas as músicas de Mozart e tudo o que escutei foram A Flauta Mágica e Pequena Serenata Noturna, justamente as duas únicas que conheço, e eu sei que o repertório musical dele era imenso...

Desconfio que as pequenas imperfeições que percebo nas coisas ao meu redor refletem a limitação do poder daquilo que me salvou. Seja lá o que for que me colocou aqui nesse lugar ele não é absoluto e nem supremo ou infalível. Pensar isso me proporciona uma estranha sensação de felicidade, pois faz com que eu sinta que ainda preservo minha singularidade. Apesar de tudo o que aconteceu eu ainda sou eu.

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Os anos passaram e estou bem adaptado a minha nova vida. Ainda assim, muitas vezes, fico olhando para a noite cheia de pequenos pontos luminosos e fazendo perguntas para as quais nunca obterei respostas.

Acho que viverei aqui até o fim dos meus dias. Algo evitou a minha desintegração e construiu um mundo para que nele eu vivesse. Não sei o propósito disso e acho que jamais saberei. Sei que com o passar dos anos toda a minha existência estará pautada pelo meu novo cotidiano. Desconfio que os anos vindouros serão permeados por uma certa monotonia, pois acredito que meu salvador criou um mundo muito asséptico e sem grandes mudanças.

Este agora é o meu novo lar.

Jota Alves
Enviado por Jota Alves em 27/09/2023
Código do texto: T7895877
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