HECATOMBE

I - Sul da Europa, Século XIV

Uma onda de terror vinda do oriente assolava o território do Velho Continente. A ordem pública já não existia, o cumprimento da lei ficara para trás. Os mais abastados trataram de abandonar suas posses e se esconderam nas áreas mais distantes das cidades, ao passo que para todos os que não dispunham de recursos só restara enfrentar a morte em sua faceta mais cruel: temperatura corporal elevada, alucinações, vômitos, bubões e inflamações pelo corpo, além de terríveis manchas escuras e complicações respiratórias gravíssimas que invariavelmente culminavam num fim sufocante.

Médicos e religiosos, os que mantinham contato direto com os enfermos, eram os que mais sofriam, além da população pobre e desnutrida. Ninguém era capaz de oferecer uma causa para a doença que se espalhava como fogo em mato seco com velocidade e letalidade. Um castigo divino, era o que a voz da rua passou a ecoar, encontrando coro no que havia restado de autoridade.

Com a histeria se apoderando dos viventes que restavam, não tardou para que uma caçada tivesse início em busca de culpados cujo castigo pudesse servir de exemplo para aplacar a ira de Deus. Curandeiros, pagãos, astrônomos, todos que exerciam qualquer atividade fora dos padrões foram acusados de bruxaria e como pena acabaram enforcados e queimados. No fim, até mesmo os médicos, incapazes de encontrar uma cura para o mal, arderam no fogo como cúmplices de tamanha tragédia. Não havia limites nem fim para a loucura generalizada, assim como também nenhum sinal de arrefecimento à pestilência se avizinhava.

Nesse contexto de insanidade e desolação, o nome de uma jovem vinda das florestas do norte começou a ganhar corpo na região costeira. Ela se chamava Sarah e ninguém sabia nada a seu respeito. Ao mesmo tempo em que se lançava no meio do povo instruindo as pessoas para que deixassem as ruas e procurassem o isolamento a fim de evitar a disseminação da peste, ela também fazia uso de poções e pastas miraculosas para amenizar o sofrimento dos mais debilitados. Muitos passaram a vê-la como um fio de esperança diante do cenário desolador, e estes abriam suas portas quando ela chegava solitária com sua pasta de couro curtido e de lá tirava frascos cujo líquido ela injetava nas veias dos que ainda se mantinham sãos sob a promessa de proteção frente ao mal letal do flagelo.

Ainda que Sarah encontrasse apoio em suas ações, o clamor ensandecido daqueles que exigiam sangue como forma de aplacar a ira dos céus ainda era preponderante e não tardou para que aqueles que haviam se autodenominado como autoridades surgissem em sua porta no meio da noite.

Por conta das investidas furiosas, a folha de madeira que lacrava o casebre no topo da colina veio abaixo. A jovem estava postada diante de um caldeirão fervente e quando seus agressores entraram no recinto ela apenas os olhou, sem esboçar qualquer reação ou dizer uma só palavra.

‒ Maldita bruxa! Você com seus feitiços também é culpada por todo esse mal que nos abraça.

O homem diante dos seus olhos ostentava feridas abertas sobre a pele. Ela conseguia ver que a febre doentia o consumia, assim como a muitos que o acompanhavam. Porém, havia algo mais, algo que ela temia que pudesse acontecer. Um evento que ela queria evitar a todo o custo.

Tendo seus pensamentos interrompidos por um tapa no rosto, a jovem foi ao chão, para em seguida ser erguida pelos cabelos. Um relâmpago acendeu os céus por um segundo, enquanto ela era jogada para fora da própria casa e, aos chutes, conduzida ladeira abaixo ruma à praça principal onde um julgamento a aguardava. Sarah era arrastada pelas ruas de pedra deixando um rastro escarlate de dor pelo caminho. Apesar de todo o sofrimento, a multidão, incrédula, não a ouvia clamar por piedade.

Sobre a construção que costumava ser uma fonte, um palanque havia sido erguido. As águas do chafariz há muito haviam se tornado vermelhas pelo pecado ali derramado. Pilhas de cadáveres eram incineradas, uma fumaça fétida empesteava o ar. Já não havia mais tempo ou recursos para ritos funerários.

Sarah teve seu pescoço enlaçado por uma corda trançada. Seus olhos miravam as labaredas da grande fogueira que ardia defronte ao palanque. Ela ouviu o ranger vacilante da madeira do alçapão sob seus pés. Ela conseguia distinguir uma ou outra voz clamando em seu favor, mas a maior parte entoava em uma só voz:

‒ Queimem a bruxa! Enforquem e queimem a bruxa! A carne queimada trará a cura! Salvação! A morte do pecado é a salvação!

A garota pouco ouviu do discurso que a levou à condenação. Ela divagava distante, sua consciência era projetada para o ontem, para o hoje e, sobretudo, para o amanhã.

‒ Sarah, estrangeira das terras da floresta. Você foi condenada à morte por conspirar em favor da pestilência que toma conta de nossas vidas e espalha a danação entre os viventes. Quais são as suas últimas palavras?

As palavras do juiz não fizeram muito sentido para ela e, a bem da verdade, ela já não se importava muito. Mas ela sabia que precisava falar, tinha a obrigação de externar tudo o que lhe afligia.

‒ Ouçam ‒ sua voz saía com extrema dificuldade por conta do nó em sua garganta ‒ ouçam todos vocês. A vida é um teste, uma provação de discernimento, amor e irmandade. De tempos em tempos, um demônio que caminha livre dos olhos lança suas garras de maldade e perversão sobre a humanidade e cabe a nós enfrentá-lo. A pestilência, a doença, a dor e a morte são ingredientes do seu veneno. Sim, ele está caminhando entre nós nesse momento e toda vez que viramos as costas para um irmão, sempre que nos cegamos para a verdade ou nos apegamos a crendices, ele se torna apto a fazer o seu trabalho e, alimentado, poder voltar outras vezes.

‒ Olhem para trás, vejam quantas pestes já nos assolaram. Com o demônio forte muitas outras virão, cada uma mais devastadora que a outra. Não estou aqui para lamentar minha morte, pois, ao menos, com o sacrifício de uma portadora da verdade, o demônio poderá se satisfazer e arrefecer a pestilência. Mas não se enganem. Ele voltará, pois ele sempre volta.

O carrasco acionou a alavanca e os pés de Sarah dançaram por alguns instantes no ar antes da convulsão cessar por completo e seus olhos vítreos fitaram as chamas que logo a consumiriam.

II – Século XXIII – Numa parte restante do mundo

O céu escarlate começava a ganhar os conhecidos contornos num tom escuro de lilás, um indício de que o teor viral na atmosfera aumentara nas últimas horas. Os balões marcadores, lançados no ar pelos casulos humanos, emitiam um sinal de alerta para os painéis sensitivos no interior da estrutura vitrificada.

Quase nada restava de um mundo minimamente harmônico. A humanidade enfrentara inúmeras pestes e pandemias ao longo dos séculos, mas nada que chegasse perto da pestilência que abraçara o mundo nos últimos três anos, algo tão devastador e abrangente que a civilização, em sua última cartada pela sobrevivência, se abrigara em esconderijos hermeticamente lacrados por uma grossa blindagem de uma espécie de vidro gelatinoso, uma estratégia que mantinha o patógeno isolado, mas, ao mesmo tempo, permitia que incursões pudessem ser lançadas ao lado exterior, pois a bolha vítrea abraçava qualquer agente de dentro para fora, sem deixar margem para uma invasão, mesmo microscópica.

Mas já não restavam muitos casulos humanos, as colônias espalhadas pelo mundo podiam ser contadas nos dedos. Um verdadeiro desespero se apoderava das lideranças comunitárias, os governos tradicionais já não existiam, de modo que encontrar uma salvação diante de uma extinção iminente cabia a algumas dezenas de pessoas, um papel que nem todos queriam ou estavam preparados para ocupar.

Até então, qualquer tentativa científica de cura não obtivera êxito, nem mesmo um simples paliativo que pudesse amenizar a dor ou prolongar a sobrevida dos atingidos pela gripe Hecatombe, como ficara conhecida a praga do fim dos dias.

As ideias lúcidas cada vez mais rareavam ao passo que as ondas arroxeadas no firmamento se tornavam cada vez mais presentes e longas. Com isso, Edrey, que não era propriamente um cientista ou líder comunitário, mas apenas um dos ajudantes na torre de controle do casulo, ganhava mais confiança para propor um plano que já vinha alimentando há certo tempo.

Analisando a linha temporal das grandes pandemias que assolaram a humanidade, ele demonstrou interesse pelos desdobramentos da peste bubônica no sul do antigo continente europeu. Sobretudo, pelo lado místico próprio da época. Ele investigou os esforços para combater o flagelo e as injustiças que foram cometidas nesse nome. Assim, ele chegou ao relato acerca de uma jovem conhecida apenas como Sarah. Mas ele não se interessou apenas pelo fato da mulher ter sido acusada e condenada como conspiradora do mal, mas, sobretudo, pelas notas de rodapé que indicavam que, de certo modo, ela conseguira êxito em salvar vidas, curando doentes e imunizando sãos. Se essa mulher fora capaz de combater algo tão letal com tão pouco, talvez ela fosse portadora de alguma iluminação capaz de guiar cientistas com mais recursos tecnológicos em busca de salvação. Edrey era um homem da razão, mas, naquele momento, estava disposto a colocar sua reputação à prova em nome de uma teoria louca.

‒ Edrey, então você está dizendo que devemos nos arriscar na orla exterior em busca de vestígios de uma mulher enforcada e queimada durante a peste negra na Europa medieval? É isso?

As palavras de Reimith eram duras, mas nada que Edrey já não esperasse. Afinal, a maior autoridade dentro do casulo deveria questionar com firmeza qualquer plano, ainda mais algo tão incomum quanto o que ele propunha.

‒ Isso mesmo. Pode parecer estranho, senhor, mas encontrei indícios de que o que aquela mulher pregava faz sentido, de certo modo. Todas as calamidades pandêmicas que nos assolaram foram tratadas com mesquinharia, desdém e extremo egoísmo, principalmente diante dos mais necessitados. O que proponho é que tenhamos ao menos a chance de ouvi-la. Além do mais, não temos muito o que perder. Estamos perdendo essa guerra. Logo, não passaremos de uma lembrança nesse mundo.

‒ Você diz que não temos o que perder? Claro que temos. Toda vida é preciosa e necessária. Não podemos nos dar ao luxo de arriscar qualquer um de nós nessa sua empreitada louca.

‒ Não estou pedindo que mande alguém lá para fora. Eu estou me oferecendo para ir. Eu fiz a leitura das memórias gravadas nos cristais de quartzo e sei exatamente onde procurar os restos mortais de Sarah.

‒ Bom, você sabe que não podemos dispor de muitos recursos, ainda mais para algo tão sem propósito, mesmo que você tenha fé em suas convicções.

‒ Permitir que eu vá já é mais do que posso pedir.

‒ Esperem.

Todos do círculo interno da torre de controle olharam para a jovem que erguia a mão solicitando a palavra.

‒ Edrey, eu o acompanharei nessa jornada.

‒ Você está louca, Sidonya? Eu não vou deixar que se aventure na orla exterior. Além de ser minha filha, eu sou o líder desse casulo humanitário e você me deve obediência dupla. Não permitirei que saia. Se Edrey quer se aventurar diante do vírus, ele que vá sozinho. Devemos nos manter isolados, você sabe disso.

‒ Mas, pai…

‒ A reunião está encerrada. Edrey, você pode fazer uso do acelerador de empuxo nessa jornada. Mas, repito, irá sozinho. Não colocarei em risco nenhuma vida nisso, sobretudo a da minha filha.

Todos deixaram a sala com exceção de Edrey. O rapaz contemplava a vista panorâmica da torre de controle. O céu já ganhava as cores da noite, mas, ainda assim, era possível perceber os tons do vírus mesclados ao oxigênio do ar. Reflexos metálicos pairavam e eram levados pelo vento. O menor contato ali significava uma sentença de morte.

Olhando para baixo, ele conseguia distinguir uma família de cervos correndo livres pelo relvado. Era curioso como a peste atingia apenas os seres humanos. A natureza num curto espaço de tempo recuperava o que havia perdido. A vegetação crescia entre as brechas do asfalto. Veículos abandonados eram engolidos por heras selvagens. Cada vez mais Edrey se convencia que só poderia ter um teor sobrenatural naquilo tudo.

Com a chegada da manhã, Edrey, sozinho, fazia os preparativos para o lançamento da cápsula que ganharia a orla exterior rumo ao antigo continente europeu. De dentro do receptáculo, ele calculava a trajetória a ser seguida. Utilizando um painel holográfico suspenso no ar, ele digitava mentalmente por intermédio do capacete neural cujos filamentos estavam atrelados ao seu cerebelo. Todo o controle da cápsula, do seu traje de viagem e demais dispositivos eram, naquele momento, uma extensão muscular e motora do seu corpo. A mente de Edrey tornara-se uma máquina.

Com uma contagem regressiva feita para si mesmo, pois ninguém o auxiliava, Edrey acionou a propulsão liberando a cápsula. A pequena nave deixou seu receptáculo e, com grande velocidade, tocava a superfície protetora do vidro gelatinoso. Nesse momento, o tempo parecia desacelerar. A gelatina sintética mesclava-se ao metal reluzente da cápsula lacrando o dispositivo e impedindo, assim, que qualquer vestígio de fora adentrasse no casulo.

Somente quando o último pedaço da nave se desvencilhou do toque gelatinoso, a velocidade voltou ao normal. Alcançando uma grande altitude, o veículo, subitamente, executou uma guinada ao perceber o oceano, indo ao seu encontro.

A cápsula, uma vez submersa, acionou o seu dispositivo de aceleração de empuxo, fazendo com que atingisse uma velocidade imensurável. O corpo físico de Edrey permanecia totalmente adormecido, pois não seria capaz de lidar com o mal estar causado pelo deslocamento. Apenas sua mente trabalhava em conjunto da inteligência artificial do equipamento. Uma espécie de bolha envolvia a cápsula, favorecendo a movimentação sem resistência, fosse do ar, ou, no caso, da água.

A trajetória previamente calculada era corrigida instantaneamente em caso de necessidade, ou por conta de algum obstáculo inesperado. Se os olhos humanos tentasse perceber o percurso da máquina, veria apenas um leve flash por muitos quilômetros.

Logo, a cápsula emergiu nos canais do que um dia fora a cidade de Veneza, na Península Itálica. Um antigo e movimentado ponto comercial na idade média e foco primordial da peste que matou boa parte da população com a peste.

Em menos de três anos, a Gripe Hecatombe tratara de fazer o que a peste negra não conseguira, eliminar toda a população da Europa, Centro-Norte da África e lado ocidental da Ásia. Os humanos ali não passavam de vestígios. E era atrás de um resquício antigo de vida que Edrey deixava a cápsula.

Tão logo deixou o módulo de viagem, o espaço por ele ocupado teve todo o ar expirado por válvulas lacradas pelo mesmo vidro gelatinoso do casulo. Em seguida, cilindros de oxigênio trataram de renovar o ambiente da nave.

Edrey fazia uso de um traje espesso, porém extremamente leve, pois ele não precisava mexer um só músculo do corpo para se movimentar. Todo deslocamento era feito pelo vestuário tecnológico controlado por sua mente. Células na indumentária forneciam o oxigênio que necessitava, não havia nenhum meio conhecido de filtrar o ar da atmosfera de modo seguro.

O computador de bordo do traje o guiava para o local que os cristais de quartzo indicavam como provável ponto de sepultamento da mulher conhecida como Sarah. Não havia mais rituais funerários naquele momento distante da história, mas a benfeitora assassinada dispunha de alguns poucos adeptos que trataram de enterrar suas partes não consumidas pelas chamas, bem como as próprias cinzas mortuárias.

Edrey caminhava com uma tecnologia que lhe proporcionava cobrir grandes distâncias com saltos no ar. Ao seu lado seguia um módulo anexo quase do mesmo tamanho da cápsula principal. Dispunha de dois metros de comprimento por um de largura e o seguia rapidamente suspenso no ar de maneira anti-gravitacional.

Após percorrer algumas dezenas de quilômetros, o computador de bordo emitiu um aviso sonoro e logo uma imagem holográfica em terceira dimensão se formava diante de seus olhos. Uma análise investigatória do solo no alto da colina revelava uma espécie de esquife de madeira. Pelo visor do capacete, o rapaz conseguir uma visão em matizes pelo interior da terra.

Ele se preparava para saltar até a colina quado um alarme soou nos receptáculos auditivos do traje. Ele se virou em desespero, pois o equipamento não dispunha de qualquer elemento de defesa, era uma vestimenta científica. Normalmente, os cientistas eram acompanhados por soldados cujos trajes sim estavam preparados para conflitos. Mas Edrey estava só na missão.

Seu visor alternou a visão para o ambiente externo normal e qual não foi sua surpresa quando perceber um outro traje científico vindo em sua direção.

‒ Edrey, Edrey, sou eu, Sidonya.

‒ Sidonya? Você está louca! Seu pai a proibiu de sair do casulo.

‒ Sim, mas eu vim mesmo assim. Estou aqui para ajudá-lo.

Mesmo preocupado pelo que viria quando retornassem ao casulo, Edrey estava feliz, pois não andaria solitário por um cemitério de almas.

Juntos saltaram para a colina. O rastreamento do traje de Edrey fizera um mapeamento do local exato do esquife de chumbo. Então, de posse das coordenadas, o traje ajustou os propulsores da bota direita e direcionaram o jato tornando-o num modo eficiente de remover a terra. Em minutos, a caixa mortuária se revelava.

‒ Consegue abri-la, Sidonya?

‒ Acho que sim.

A garota, usou o jato estabilizador de uma das luvas para direcionar uma rajada de ar pressurizado na direção das trancas. Logo, um amontoado indecifrável de resíduos se ofereceu ao olhar. Mais ma vez o scanner de Edrey entrava em ação em busca de algo específico.

‒ Encontrei.

Com uma pinça, o rapaz retirava um fragmento minúsculo de osso dos restos mortais da jovem condenada. O caixão de chumbo, próprio dos enterros de amaldiçoados, fora capaz de reter uma relíquia válida.

‒ Essa é a única peça que detém um resquício suficiente de ácido desoxirribonucleico. Nossa única chance ‒ explicou o rapaz.

Com um comando mental, Edrey fez o módulo adicional se aproximar e uma portinhola de sua lateral se ejetar. Por onde ele depositou o fragmento ósseo. Com mais algumas instruções mentais, a cápsula adjunta iniciou um sequenciamento e, em poucos instantes, o material genético útil fora extraído e imediatamente alocado ao composto orgânico no interior do módulo.

‒ Sempre achei isso uma heresia.

‒ Isso é ciência, Sidonya. Sem essa alternativa já teríamos perdido mentes importantes sem as quais não teríamos chegado tão longe.

‒ Chegado tão longe? Olha onde estamos, Edrey. A beira da extinção. Muito por causa da soberba humana. Brincar de Deus nunca nos levou a lugar algum, a não ser a desencadear a Hecatombe sobre nós. E me admira que meu pai tenha deixado você trazer um das últimas matrizes orgânicas com você.

‒ Ele não deixou. Mas, me diga, sem essa matriz como poderíamos trazer a mulher de volta? Como poderíamos extrair o seu conhecimento?

‒ Decodificando seu DNA nos cristais de quartzo.

‒ Isso levaria uma eternidade. Não temos tempo para isso.

Dentro da cápsula, a matriz orgânica, uma massa humana genérica, recebia os compostos celulares da doadora, o que em breve a caracterizaria como um ser pensante, cujas memórias a fariam continuar de onde sua vida havia terminado.

O processo seguia acelerado, até que um incidente fora do planos teve início. Um alerta nos capacetes de ambos indicava uma aproximação. Rapidamente, se colocaram de prontidão, mas o ataque viera de onde não esperavam. Uma ave de rapina enorme projetara um voo rasante sobre eles e suas garras danificaram o traje de garota.

‒ Sidonya!

‒ Não, Edrey. Afaste-se. Eu vou queimar o oxigênio do traje para atacar o pássaro quando ele descer de novo.

‒ Você vai morrer sem o oxigênio.

‒ Eu já estou morta, Edrey. O isolamento do traje se foi. Complete a missão e traga a cura para o que resta da humanidade.

O enorme pássaro projetou um novo ataque. Mas, ao se aproximar, Sidonya, direcionou a circulação de oxigênio do respirador para a válvula de estabilização na palma de sua mão. E, com o faiscar do incinerador da luva projetou uma rajada de fogo na direção do agressor. Chamas arderam sobre o animal que, em segundos, caiu morto.

Mas, antes que pudessem comemorar, as conhecidas placas esverdeadas da Hecatombe surgiram no rosto da garota. O sorriso que estampava seus lábios deu lugar a um grito sufocado, uma voz que não conseguiu escapar. O branco de seus olhos tornara-se amarelado e sem vida, ao passo que as placas antes verdes ganhavam traços enegrecidos.

Os pulmões da garota já não funcionavam. Seus pensamentos já não faziam qualquer sentido. A temperatura corporal era uma crescente rápida e letal. Edrey apenas assistia horrorizado, ele já tinha visto aquela cena inúmeras vezes e sabia que nada poderia ser feito. Logo, a amiga cairia para nunca mais voltar.

Resignado, ele executou o backup do traje de Sidonya a fim de preservar suas memórias nos cristais. Talvez, se sobrevivesse, pudesse trazer de volta a sua consciência, ainda que de forma artificial.

De volta à sua cápsula de transporte, o rapaz atrelou novamente o módulo auxiliar e executou o comando de partida. O tempo de viagem seria o suficiente para que a massa orgânica se transformasse numa nova Sarah.

Mal a cápsula de transporte passou pelo vidro gelatinoso, sendo descontaminado no processo, já dispunha de uma comitiva de recepção no casulo.

‒ Edrey, maldito, onde está minha filha? Onde está Sidonya? Ela foi atrás de você e suas ideias tolas.

‒ Eu não sabia, eu não sabia que ela me seguiria. Ela, ela está morta.

O rapaz abaixou a cabeça ao terminar a frase. Reimith, ao contrário, permanecia olhando diretamente para o rapaz, como se já esperasse tal notícia.

‒ Você matou a minha filha, e terá o mesmo fim.

Antes que Edrey pudesse articular qualquer palavra e sem dar oportunidades para interferências, Reimith sacou a pistola sônica e projetou o cursor laser na testa do rapaz. Ao acionar o gatilho, uma onda projetada de ondas sonoras instalou-se no cérebro de Edrey, fazendo com que esse implodisse dentro da caixa craniana.

‒ Alguém aqui vai contra a minha decisão?

Todos se mantiveram quietos.

‒ Pois bem. Abram o módulo e tragam de volta a mulher da idade média. Insiram as informações necessárias para que ela fique a par da situação e vejamos o que ela tem a dizer, se é que tem algo.

Após alguns instantes para upload de dados, a câmara da nova Sarah foi aberta e quem a tivesse visto em seus dias de vida jamais denotaria qualquer diferença para o seu renascimento. Pelo menos aparentemente.

‒ Vejo que o demônio da pestilência mais uma vez caminha entre nós ­‒ disse a mulher ao ficar de pé diante dos desconhecidos.

‒ Sim ‒ iniciou Reimith ‒ se o que você chama de demônio for uma peste sem precedência capaz de aniquilar quase por completo a humanidade, a resposta é sim. Ele está entre nós.

‒ E o que vocês têm feito para detê-lo?

‒ Tudo o que a ciência nos permitiu. Mas, infelizmente, sem sucesso na tentativa de neutralizar ou, ao menos, arrefecer os sintomas da doença.

‒ Então, vocês simplesmente esperam pelo fim?

‒ Não. Nós permanecemos na luta. Continuamos na busca e, ao mesmo tempo, cada casulo humano prepara uma nova geração com a incubação artificial de centenas de bebês nas câmaras de desenvolvimentos. Cada vida aqui é importante e usamos o que temos para perseverar. Se falharmos, os novos humanos encontrarão um meio, pode acreditar.

‒ Vocês se comunicam com os outros casulos humanos?

‒ Sim, mantemos contato com os poucos que restam por antenas de comunicação que espalham as mensagens pelo ar e são captadas e convertidas. Um método arcaico, confesso, mas é o que nos resta, visto que não há alcance para a troca de informações a nível neural, como nos tempos normais. Mas, se me permite, como você pretende nos ajudar, se é que tem essa intenção.

‒ Na primeira vez em que passei por esse mundo eu dispunha de conhecimento, vontade e poucos meios. Mas com o passar do tempo, desenvolvi novos recursos para combater o demônio, ao que parece. Talvez o tempo tenha me ajudado, ou quem sabe eu seja, de fato, uma bruxa.

Ao terminar de falar, Sarah desceu da plataforma e caminhou até o painel de controle da torre.

‒ Vocês dispõem de um acelerador de partículas?

‒ Sim.

‒ Podem conectá-lo às antenas de transmissão?

‒ Podemos.

‒ Mostre-me.

Projetando mentalmente as instruções para a mulher, o líder do casulo se afastou ao receber a confirmação de entendimento. Então, fazendo uso das habilidades recém adquiridas, Sarah ordenou que o sistema filtrasse da atmosfera tudo o que era orgânico.

‒ Nós não temos essa tecnologia, isso não será possível.

‒ Sim, será, Reimish, porque agora estou aqui.

O acelerador de partículas trabalhava em conjunto com a essência de Sarah, por assim dizer. Lentamente, pela cúpula gelatinosa, os humanos estarrecidos assistiam as cores do firmamento ganharem um tom azul como há muito não era visto.

‒ Abram a bolha.

‒ Mas Sarah…

‒ Abram! Agora!

Com uma ordem muda, a inteligência artificial do casulo acatou o comando do líder. Logo, os raios de sol invadiram o espaço antes confinado e, pela primeira vez em muito tempo, toda a gente pôde sentir o toque revigorante do ar fresco em seus pulmões. Uma explosão de gritos eufóricos foi ouvida e um coro de aclamação ecoou por toda parte.

‒ Sarah! Sarah! Sarah!

A mulher ouvia mais uma vez uma turba entoando por ela, mas dessa vez não exigiam que ela fosse enforcada ou queimada.

‒ Como podemos agradecê-la por salvar a humanidade? ‒ As palavras de Reimish exalavam sinceridade.

‒ Apenas me diga uma coisa. Há encubadoras progressivas com novos seres humanos sendo criados nos outros casulos também?

‒ Sim. Em todos eles. Era uma tratativa universal de preservação. A inteligência artificial do casulos cuida do desenvolvimento, acompanhamento, instrução, víveres e tudo o mais que as crianças precisarem até que sejam capazes de seguir por si só. Era um plano para caso não estivéssemos mais aqui por conta da Hecatombe.

‒ Entendo. Uma maneira eficaz de propagar a espécie.

‒ Sim. A natureza se recuperando lá fora e os humanos ressurgindo dentro dos casulos. O vírus, sem encontrar hospedeiros desapareceria por si só. Infelizmente, nós não conseguiríamos acompanhar isso pois levaria muito mais tempo do que teríamos, mas para a nova geração sim. Eles seriam mantidos isolados até lá. Vivendo sob os cuidados da IA. Toda vida importa.

‒ Perfeito. Me diga mais uma coisa. Onde está o rapaz que teve a ideia de me trazer de volta?

Após alguns instantes de silêncio.

‒ Ele...ele está morto.

‒ E como isso aconteceu?

‒ Eu...eu o matei. Mas ele teve culpa na morte da minha filha e…

‒ Você diz a menina que se pôs em risco por acreditar no bem maior e que se sacrificou por isso? No fim de sua vida, na iminência de uma morte dolorosa e sofrida ela só pediu que o rapaz continuasse e salvasse a humanidade. E você, você o matou por isso? Os homens sendo egoístas e mesquinhos como sempre. Desde a minha memória mais antiga.

‒ Mas temos uma nova chance. Agora podemos seguir em frente.

‒ Como? Como podemos esperar algo novo de vocês. Ninguém aqui intercedeu pela vida do pobre rapaz ou se solidarizou com sua morte. Pelo que os cristais de quartzo me disseram, todos ficaram ao seu lado.

‒ Eu…

‒ Silêncio. Não quero ouvir mais nada de você.

Com os olhos fechados, Sarah ordenou que a inteligência artificial liberasse os compostos virais do ar diretamente dentro do casulo, ao mesmo tempo em que as antenas disseminavam pelo ar as micropartículas até o interior de cada habitação humana.

Em desespero, as pessoas corriam sem ter onde se esconder. Logo, cada um deles tombou diante da Hecatombe. Em seus últimos instantes, Sarah instruiu que a prole fosse mantida em animação suspensa pelos próximos cinco séculos e também desejou que a nova geração de humanos, essa que seria criada pela IA de cada casulo, fosse mais sábia que a dos seus antecessores, pois herdariam um mundo limpo e renovado, livre do demônio que sem mentes para corromper e corpos para se nutrir, morreria de fome antes do ressurgimento dos homens.

Talvez, Sarah fosse realmente uma bruxa...

Flávio de Souza
Enviado por Flávio de Souza em 03/09/2023
Código do texto: T7877141
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