A Nomenklatura
- Camarada Margarita Yaroslavovna?
Parada no hall dos elevadores, a interpelada voltou-se ao ser chamada. À sua frente, num vestido preto com gola de pele, estava a primeira-secretária do Partido em Kursk, Emiliya Antonovna Zhuravlyova, uma mulher ruiva, baixa e gordinha, cerca de 40 e poucos anos de idade, cara simpática de mãe de família (para quem não a conhecia muito intimamente), e ao seu lado, uma jovem de cerca de 20 anos, loura, magra, aspecto ansioso, sobretudo castanho sobre um vestido cinza. O fato de estar sendo acompanhada pela primeira-secretária em pessoa indicava que não se tratava de uma qualquer.
- Emiliya Antonovna! Que grata surpresa! - Saudou-a Margarita Yaroslavovna, abrindo os braços.
As duas mulheres trocaram um abraço efusivo e beijaram-se nas faces, enquanto a jovem loura aguardava pacientemente.
- Você está ótima, Rita! Esbelta e alinhada! - Comentou a primeira-secretária, após terem se posto frente a frente novamente.
- São seus olhos, minha cara - condescendeu Margarita "Rita" Yaroslavovna. - Acho até que engordei um pouco desde a última vez em que nos vimos... já você, é a elegância em pessoa!
A primeira-secretária fez um muxoxo.
- Se você engordou, não se nota!
Rita baixou a voz para comentar:
- Creio que devo agradecer à rotina estressante do Politburo, minha cara...
E continuando a falar em voz baixa, fez um gesto com o queixo para a jovem loura, afastada uns 5 metros de distância:
- E essa, quem é?
Emiliya Antonovna abriu um imenso sorriso, que ressaltou as covinhas que tinha no rosto.
- É a pessoa de quem lhe falei... a filha de Emma Mikhailovna... Dusya Valerievna Ruchkina.
Rita estreitou os olhos, avaliando a jovem.
- Parece tão jovem... bem, vamos subir para o meu escritório.
Emiliya Antonovna virou-se para a loura e a chamou, já sem nenhum traço de afabilidade no rosto.
- Dusya Valerievna! Vamos!
* * *
O escritório de Rita, localizado no 63º andar do Bloco C do Palácio dos Ministérios, não era dos maiores, mas era confortável e possuía uma bela vista para o rio Moscou e o Convento de Novodevichy. Havia uma antessala, controlada por uma cabo do Exército Vermelho, Valeriya Ilyinishna, que fazia também os papéis de recepcionista, motorista e segurança, um salão principal com duas escrivaninhas, atualmente desocupadas, copa e banheiro, e uma sala reservada para uso exclusivo de Rita, dotada de banheiro privativo, terminal de computador, rádio - e um frigobar.
- Lera, - disse Rita quando as três desembarcaram do elevador - esta é Dusya Valerievna. Ela está vindo para ser entrevistada.
- Sim, camarada vice-ministra - disse a militar, lançando um olhar analítico para a visitante.
Rita, Dusya e Emiliya entraram no salão principal. Rita apontou uma poltrona para que a primeira-secretária tomasse assento.
- A primeira porta à direita é a copa, onde há uma geladeira e água... e a porta dos fundos é a do banheiro - informou. - E naquela mesa, você encontrará vários números da revista "Sputnik"... não muito recentes, receio.
- Estarei bem - respondeu a primeira-secretária, exibindo um dos seus sorrisos encantadores.
Rita e Dusya entraram na sala privativa. Rita indicou uma cadeira estofada em frente da sua escrivaninha, e sentou-se numa cadeira de espaldar alto, por trás da mesma. Ficou alguns momentos em silêncio olhando para Dusya, que parecia intimidada.
- Não tenha medo - disse Rita finalmente. - Eu conheci sua mãe. Servimos na mesma unidade, na época da Grande Guerra Patriótica.
Dusya pareceu ficar um pouco mais à vontade.
- Ela me falou da senhora, vice-ministra. É mais jovem do que imaginei...
Rita sorriu. Parece que Dusya andara passando algum tempo com Emiliya Antonovna...
- Você, certamente é bastante jovem, Dusya Valerievna. Mas todas nós começamos cedo, não é?
A jovem balançou a cabeça, afirmativamente.
- Fuma? - Indagou Rita.
- Não, senhora... não considero... adequado.
- Ótimo. Também não gosto que fumem na minha presença... embora, às vezes tenha que suportar isso em reuniões com o staff masculino. Velhos hábitos são difíceis de mudar... às vezes, é mais fácil mudar as pessoas.
E dirigindo um olhar incisivo para a jovem.
- Razão pela qual, aliás, você está aqui. Como pode notar, há duas escrivaninhas vazias na sala lá fora. Eu tenho duas posições de assistente para preencher, uma pode ser sua.
- Gostaria imensamente de poder trabalhar com a senhora, vice-ministra! - Respondeu avidamente Dusya.
- Tenho certeza de que sim... e você foi muito bem indicada. Sabe como o processo funciona? Das indicações?
Dusya fez que não com a cabeça, os olhos azuis pálidos arregalados.
- Todo cargo do núcleo político precisa ser preenchido segundo alguns critérios: confiabilidade, atitude, qualificações, capacidade técnica... e indicação. Eu conheci sua mãe, você atende aos critérios, mas a sua indicação veio de alguém do meu círculo direto de influência: a primeira-secretária do Partido em Kursk. Fui eu quem indicou Emiliya Antonovna para o cargo.
E reclinando-se na cadeira:
- As indicações nos permitem colocar pessoas de confiança em postos-chave. Eu patrocino algumas pessoas, cuido para que evoluam em suas carreiras... e essas pessoas me ajudam na defesa e na implantação de políticas que nos farão evoluir como nação. Compreende isso?
- Sim, senhora.
- Eu também respondo a autoridades que estão acima de mim na hierarquia... mas que nem sempre são meus superiores hierárquicos diretos. Às vezes, temos que lidar com situações de interesses conflitantes... trata-se de um jogo essencialmente político. Compreende?
- Compreendo, senhora.
- Então, resumindo: você me deve lealdade, da mesma forma que Emiliya Antonovna. Independentemente do nosso nível dentro da hierarquia, no nosso círculo guardamos umas as costas da outra. Entendeu?
- Entendi, senhora... e...
Hesitou.
- Sim? - Incentivou-a Rita.
- E a soldado lá na frente? Ela faz parte do seu círculo?
Rita balançou a cabeça em sinal de aprovação.
- Você é perspicaz, garota. Não, a Lera não faz parte do meu círculo.
E abaixando o tom de voz:
- Ela está aqui para nos observar.
- Vigiar?
- Observar - insistiu Rita.
* * *
Para concluir, Rita chamou Emiliya Antonovna para participar do final da entrevista.
- Eu já fechei os detalhes do cargo com a jovem Ruchkina - informou Rita para a primeira-secretária. - Imagino que você já deve ter providenciado acomodações para ela esta noite...
- Sim, camarada vice-ministra. Dusya Valerievna vai ficar hospedada no Hotel Ukraina... e tenho como conseguir que ela fique residindo por lá mesmo, num dos apartamentos da ala esquerda.
- Excelente localização, - aprovou Rita - na margem oeste do rio Moscou, lado oposto do centro administrativo. Você vai poder ir e voltar à pé para o trabalho, garota de sorte!
E encarando a primeira-secretária:
- Você nunca me disse que poderia conseguir um apartamento no Ukraina, Emiliya Antonovna.
A primeira-secretária exibiu um sorriso cheio de covinhas.
- Não creio que um apartamento no Ukraina seja realmente do seu interesse, camarada vice-ministra. Foram projetados para a população de baixa renda...
- Naturalmente - acedeu Rita. - Mas se, algum dia, eu precisar de uma "dacha" em Kursk, espero poder contar com sua ajuda...
- Creio que poderei ajudá-la nisso, camarada - assentiu gravemente a primeira-secretária.
Rita juntou as mãos e encarou as duas mulheres sentadas à sua frente.
- Finalmente... temos um trabalho conjunto a fazer. O Politburo vai começar a montar a equipe responsável pelo projeto de descida no lado oculto da Lua, e eu gostaria de colocar a capitã Alla Afanasievna Yerzova nele.
E acrescentou, talvez algo desnecessariamente:
- Ela também é de Kursk.
- [08-10-2017]