O tempero

Dahmir Alhuq parou, estático, quando a porta do elevador abriu-se para uma gigantesca caverna subterrânea artificial, 300 m abaixo da superfície do planeta. À sua frente e acima, iluminada por potentes globos de luz flutuando ao longo das paredes escavadas na rocha, pairava uma nave espacial - de um modelo que ele jamais vira em seus quinze anos de vida. Lembrava vagamente um paralelepípedo cinza-chumbo de cerca de 150 m de comprimento, com cilindros verticais elevando-se de cada extremidade como castelos de proa/popa; circundando a sua região central, um anel grosso de cerca de 50 m de diâmetro. O pai, Zahid Alhuq, pousou a mão em seu ombro esquerdo, num gesto tranquilizador.

- Veja como é bela, filho.

A nave lhe pareceu por demais estranha para ser bela; a única coisa que lhe ocorreu responder, foi:

- Então... não era uma lenda!

- Lendas nascem de realidades tão estranhas que, por vezes, tornam-se lendas - respondeu o pai cripticamente, conduzindo-o para fora do elevador. A porta fechou-se atrás deles com um silvo, deixando-os isolados na imensa cavidade cujo piso era coberto por uma areia grossa, amarelada. Havia um odor penetrante, como de óleo lubrificante e umidade no ar pesado e frio da caverna. A iluminação, embora potente, parecia não emitir qualquer calor.

- Pode ler o nome gravado no casco? - Indagou o pai, apontando a lateral do veículo onde haviam sido pintados caracteres em vermelho.

- "Ampoliros"... como na lenda.

Caminharam até embaixo da nave, suspensa cerca de 2 m acima do solo. Dela, projetava-se uma rampa metálica bem iluminada, que terminava num portão negro de folha dupla, fechado.

- Repito hoje com você o que meu pai fez comigo ao completar a sua idade... e o que o pai dele também fez... e assim sucessivamente, por 37 gerações da família Alhuq. É esse o segredo do nosso sucesso... e o que nos tornou os maiores fornecedores independentes de melange nesta região do Universo Conhecido.

Aquele detalhe não era desconhecido para Dahmir - mas o "como" estava lhe sendo revelado agora: uma nave espacial, oculta numa "não-câmera" - invisível à sondagens remotas e mesmo prescientes - sob a superfície do planeta Baharat, lar dos Alhuq por mais de 800 anos. Mas como pilotar uma nave interestelar sem um navegador da Corporação Espacial? Verbalizou a sua dúvida ao pai, que o encarou com expressão grave.

- Este é o nosso outro grande segredo, filho: não temos navegador. Usamos tecnologia proibida desde o Jihad Butleriano.

Os Alhuq não eram particularmente religiosos, e Dahmir agora entendia o porquê. Mesmo assim, engoliu em seco. Sua família estava usando computadores para "dobrar o espaço" e viajar em velocidade infinita, tecnologia formalmente proibida desde as guerras contra as máquinas que quase haviam exterminado a humanidade, milhares de anos atrás. Se descoberto, seria motivo suficiente para incinerar todo o planeta usando atômicos - ou coisa pior.

- Esta nave... a "Ampoliros"... é uma remanescente do Jihad Butleriano?

O pai fez que não com a cabeça.

- A "Ampoliros" é de uma época muito mais remota... de séculos antes do Jihad Butleriano, nunca soubemos precisar exatamente o quanto. Foi descoberta por Ghalib Alhuq, nosso antepassado, cerca de 900 anos atrás. Ainda não lidávamos com melange então, e Ghalib era um comerciante de sucata espacial. Descobriu esta nave à deriva, por acaso, cerca de 0,5 anos-luz distante do sistema Firounnuy; toda a tripulação estava morta, por falha no suporte de vida. Ele a rebocou para Baharat e começou a estudá-la... seus construtores usavam um idioma muito antigo, que ele identificou como proto-galach, e isso retardou ainda mais as descobertas. Só o seu filho, Taysir, conseguiu descobrir a finalidade da "Ampoliros": era uma "não-nave" primitiva, desenvolvida para se deslocar em velocidade infinita utilizando computadores. Como a tecnologia ainda não estava suficientemente desenvolvida, ela acabou por se perder no espaço durante uma das viagens de teste.

Fez uma pausa e prosseguiu:

- Levamos cerca de três gerações para elaborar um novo sistema de programação para os computadores de navegação, usando Mentats contratados... que jamais souberam ao que se destinavam seus cálculos. Finalmente, Maimuna Alhuq, tataraneta de Taysir Alhuq, tornou-se a primeira comandante da "Ampoliros". E então surgiu a ideia de utilizá-la para traficar melange diretamente de Arrakis, sem pagar nada para a Corporação CHOAM ou aos navegadores. E aqui estamos nós, filho...

Deu-lhe um tapinha amigável nas costas.

- Pronto para ver o seu legado por dentro?

Dahmir Alhuq sentiu uma ponta de medo, como se aquela estranha nave vinda de um passado remoto fosse desaparecer com ele e largá-lo em algum ponto ignorado do Universo. Mas respirou fundo e encarou o pai:

- O que seria da vida sem o "tempero", pai?

Zahid Alhuq subiu a rampa metálica e pressionou a mão direita contra um leitor palmar instalado ao lado do portão negro. Sem um ruído, as folhas duplas começaram a abrir-se e a revelar um interior profusamente iluminado.

A passos cautelosos, Dahmir Alhuq começou a seguir o caminho do pai.

- [04-08-2017]