Mentiroso

Quando a primeira guarnição de fuzileiros astronavais chegou à base dos separatistas em meio à selva equatorial de Khandar-IV, encontrou o lugar desabitado. Ou quase inteiramente, pois haviam deixado para trás um velho robô de manutenção, modelo IK-9. A máquina esteve perto de ser destruída, mas o comandante dos fuzileiros sustou a ordem de fogo.

- Vamos interrogá-lo. Pode ter pistas sobre o paradeiro dos rebeldes.

E assim foi feito. O robô foi levado para uma sala do almoxarifado da base, distante do complexo principal - precaução para o caso de haver alguma bomba oculta no IK-9 - e uma técnica em robótica, Teresa Pinzón, acompanhada de um fuzileiro, Lucca Furlan, foram destacados para a tarefa. Ambos não ficaram muito felizes com a atribuição.

- Acho que somos dispensáveis - comentou Furlan quando se viram a sós na sala com o robô, uma figura humanoide de dois metros de altura, cor de cinza-chumbo, e com o número L-476 pintado em vermelho no peito.

- O robô não irá nos fazer mal - ponderou Pinzón, calibrando um analisador positrônico sobre a escrivaninha à qual se sentara. - Se fosse uma armadilha explosiva, teria detonado quando a guarnição entrou na base. Por que matar dois soldados quando poderia matar 10, 20?

E voltando-se para o robô:

- L-476, você me ouve?

- Alto e claro - respondeu a máquina, encarando Pinzón com seus olhos amarelos iluminados.

- Por que você foi deixado para trás pelos rebeldes?

- Porque sou um modelo obsoleto, o capitão Himura decidiu não me levar.

Pinzón consultou o analisador. Uma onda senoidal em verde formou-se na diminuta tela do aparelho. Ela balançou a cabeça.

- Correto. Mas por que ele não o desativou ou apagou sua memória? Você até mesmo forneceu o nome do seu oficial comandante, sem que eu lhe perguntasse.

A máquina respondeu numa voz desprovida de emoção, mas que, em outras circunstâncias teria soado sarcástica:

- Por que sou um mentiroso compulsivo. Ou porque os separatistas confiam em seus robôs e jamais utilizariam tais métodos. Escolham.

A dupla de fuzileiros entreolhou-se assustada. Pinzón consultou seu analisador. A curva senoidal mantinha-se constante.

- Ele está dizendo a verdade... - disse a técnica.

- Você quer dizer... ele está mentindo - corrigiu Furlan.

- Ele disse que é um mentiroso e o analisador corroborou - insistiu Pinzón.

- Mas se corroborou, ele está dizendo a verdade! - Explodiu o fuzileiro.

Pinzón respirou fundo.

- L-476, você está submetido às Três Leis da Robótica?

- Sim, não posso mentir sobre isso. As Três Leis estão gravadas em meu cérebro positrônico.

- Então, eu vou lhe dar uma ordem direta. Compreende isso?

- Sim, devo obedecer em cumprimento à Segunda Lei, desde que não conflite com a Primeira Lei.

- Correto. Então responda: a sua permanência na base coloca em risco, de alguma forma, a existência dos seres humanos que lá estão agora... a guarnição de fuzileiros?

- De forma alguma. Comigo, vocês estarão seguros.

Ouviu-se uma explosão; o chão tremeu sob os pés dos fuzileiros. Furlan, que estava de pé, quase caiu.

- O que foi isso? - Exclamou Pinzón, olhando para o analisador. Nenhuma mudança.

- Respondi à sua pergunta - retrucou o robô. - Enquanto eu permanecesse na base, os humanos que lá estavam não sofreriam nenhum dano. Mas eu não estou na base, estou aqui, com vocês. Tecnicamente, este local é um anexo, não faz parte do complexo principal.

Antes que pudessem esboçar uma reação, a porta da sala abriu-se de supetão e viram-se com meia dúzia de fuzis protônicos apontados para suas cabeças, nas mãos de sorridentes soldados separatistas. Em seguida, entrou o capitão Himura.

- Bom trabalho, L-476. Parece que agora temos uma astronave para abandonar este planeta... e esses dois para nos ajudar a operá-la.

- Você ajudou a matar pessoas! - Exclamou furiosa Pinzón, apontando para o robô. - Você quebrou a Primeira Lei!

- Na verdade, não - corrigiu-a Himura. - Nossos robôs são programados com uma Lei Zero: "um robô não pode causar mal à humanidade ou, por omissão, permitir que a humanidade sofra algum mal".

- E quem você acha que é a humanidade aqui? - Inquiriu-a o robô, placidamente.

- [30-07-2017]