Fotossíntese

A chegada ao sistema Goth-654327 ocorreu dentro do tempo previsto. O sistema, chamado apenas de Goth, para simplificar, compunha-se de uma estrela vermelha classe M5 e sete planetas, dos quais os cinco internos rochosos e os dois externos gasosos, com dimensões pouco maiores que Netuno. Nada de muito especial, fora a sua proximidade da fronteira com o Império Aghur, o que havia levado o Alto Comando da Frota Estelar a propor a instalação de uma base permanente em Goth-II, o único dentro da zona habitável da estrela e que, aliás, efetivamente possuía vida autóctone detectada. Mas que tipo de vida?

- Plantas - informou o capitão Ferreira, durante uma reunião com a tripulação no refeitório do cruzador "Yorixiriamori". - Elas são a forma de vida dominante em Goth-II; praticamente não existem animais maiores do que bactérias no planeta.

Goth-II mantinha uma face permanentemente voltada para seu sol, o que tornava a habitabilidade restrita a uma estreita zona crepuscular que circundava o planeta. Mas era possível viver em tal faixa, sem equipamentos de suporte de vida. E foi ali que a equipe que construiria a nova base estelar instalou-se para começar seus trabalhos, os quais, conforme estava previsto, terminariam em dois anos terrestres.

- Isso não aconteceu, como sabem. E por isso estamos aqui - disse o capitão.

O que se sabia é que a construção estava atrasada. Muito atrasada. Questionada sobre a demora, a engenheira-chefe alegou que estavam tendo cuidados especiais para não afetar o ecossistema local, que seria bastante delicado. Depois, começou a fazer pedidos de materiais que não constavam do projeto original, e que não tinham nada a ver com a estrutura de uma base estelar. O Alto Comando começou a suspeitar que poderia estar havendo interferência externa na equipe de construção e encarregou Ferreira e sua tripulação de averiguar.

- Vamos chegar de surpresa - explicou Ferreira. - Entramos em órbita geostacionária sobre o lado escuro do planeta e de lá vou me teletransportar com Shimada e Petrelli para a superfície, próximo ao acampamento da equipe de construção. Tentaremos descobrir o que está ocorrendo, antes de fazer contato oficial.

Assim foi feito. Protegida por um campo de camuflagem, a "Yorixiriamori" posicionou-se sobre a face oculta de Goth-II e o grupo de desembarque, vestido com trajes espaciais por precaução, posicionou-se na sala de transporte.

- Energizar! - Comandou o capitão Ferreira.

* * *

O trio materializou-se na zona crepuscular, entre grandes rochedos que pareciam haver se desprendido em priscas eras de um maciço montanhoso próximo. O céu arroxeado, era pontilhado aqui e ali por cirros avermelhados como que por um eterno nascer do sol. Um brilho no horizonte mais à frente, indicava a direção do lado diurno do planeta.

- "Yorixiriamori", fala Ferreira - disse o capitão pelo transmissor do capacete do traje espacial. - Até aqui, tudo normal, mas preparem-se para nos levar de volta rapidamente em caso de urgência.

- Recebido, capitão - respondeu a Chefe Méndez, que assumira o comando da nave na ausência dos dois oficiais mais graduados, Ferreira e Shimada.

- Vamos avançar com cuidado. Coloquem os projetores térmicos em potência mínima - alertou Ferreira para seus companheiros de equipe.

Armas na mão, o grupo acercou-se cautelosamente do sítio onde os construtores haviam montado o seu acampamento. E a primeira constatação que fizeram foi que o local realmente estava em perfeito estado, inclusive com algumas pessoas, em mangas de camisa, circulando entre as barracas metálicas ou cuidando do que parecia ser uma plantação. Agacharam-se atrás de uma pedra, para analisar melhor.

- Plantas negras? - Questionou Petrelli, examinando o local através de um binóculo eletrônico.

- Fotossíntese - respondeu Shimada ao seu lado, um joelho apoiado no chão. - Como a luminosidade aqui é fraca, as plantas possuem a cor que lhes permite absorver o máximo possível de radiação eletromagnética. Preto, portanto.

Haviam outros tipos de plantas à vista, inclusive os equivalentes de touceiras de capim e suculentas que lembravam grandes abóboras-moranga sem espinhos (desnecessários num mundo sem herbívoros). Tudo em tons que iam do marrom-escuro ao preto-carvão. Mas a plantação cuidada pelo grupo de construção era composta por vegetais esguios que lembravam vassouras de limpar chaminé após um dia particularmente atarefado, com a altura aproximada de um homem adulto.

- Creio que descobrimos porque a construção está atrasada - sussurrou desnecessariamente Ferreira pelo transmissor. - Eles sequer começaram, estão cuidando dessas plantas estranhas!

- Aposto que as tais plantas liberam esporos na atmosfera, capazes de alterar o funcionamento da mente humana - ponderou Shimada. - Vi isso num episódio clássico de "Star Trek"!

- Era exatamente essa a minha suspeita - concordou Ferreira. - Por isso viemos em trajes espaciais, meus caros. Não vamos cair numa armadilha furada dessas...

- Soltem as armas e levantem-se devagar, mãos para cima - disse uma voz atrás deles.

* * *

Com as mãos amarradas atrás das costas, os tripulantes da "Yorixiriamori" haviam sido levados até uma das barracas por um grupo de técnicos, armados com fuzis protônicos, baldadas todas as tentativas de fazer contato e esclarecer a situação. Foi ordenado que se calassem e aguardassem a chegada da engenheira-chefe. Isso não demorou muito. Uma loura alta, bronzeada de sol, entrou no recinto pouco depois, e sentou-se detrás de uma mesa dobrável. Encarou-os com uma expressão dura e exclamou:

- Eu sou Angela Bergqvist, líder desta colônia! O que diabos acham que estão fazendo aqui?

- Eu sou o capitão Ferreira, e estes são meus tripulantes, tenente Shimada e alferes Petrelli, do cruzador "Yorixiriamori". Fomos enviados pela Frota Estelar para descobrir as razões do atraso na construção da base estelar...

- E por que simplesmente não fizeram contato conosco?

- Suspeitamos que poderiam estar sob a influência de, bem... - hesitou Ferreira. Talvez não fosse prudente externar sua opinião. A mulher lançou-lhe um olhar curioso, e depois retrucou:

- Percebo.

E para os técnicos que os mantinham sob a mira dos fuzis:

- Removam os capacetes!

Gritar foi inútil.

* * *

Abraçado à Shimada, Petrelli chorava copiosamente. O próprio Shimada não estava em melhor condição, e soluçava volta e meia. Ferreira tremia dos pés à cabeça.

- Eu não vou conseguir - repetia, engolindo o choro. - Eu não vou conseguir...

Suavemente, Angela Bergqvist aproximou-se dele e murmurou no seu ouvido:

- Você vai conseguir!

Ferreira respirou fundo e ajustou no lugar o capacete do traje espacial. Depois, pressionou o botão do comunicador na manga esquerda do traje.

- Capitão... Ferreira... chamando "Yorixiriamori". Responda, "Yorixiriamori".

A voz da Chefe Méndez ecoou dentro do capacete.

- Capitão, Chefe Méndez na escuta! Estávamos preocupados com seu silêncio...

- Está tudo bem, Chefe Méndez - mentiu ele. Não, nunca mais nada estaria bem, ele bem o sabia. E precisou tomar coragem para pronunciar as palavras seguintes:

- Três para subir, Méndez.

* * *

Na ponte de comando do cruzador, expressões taciturnas, Ferreira, Shimada e Petrelli observavam enquanto Goth-II recuava na tela frontal de observação. A Chefe Méndez e o médico de bordo, doutor Avelaneda, estavam presentes.

- Afinal, o que aconteceu lá embaixo? - Perguntou exasperado Avelaneda. - Sei que não foram expostos à nenhuma contaminação por esporos ou coisa do gênero. E então?

Sentado na cadeira de comando, Ferreira suspirou.

- Fomos expulsos do Paraíso, doutor. É o mais próximo que consigo chegar para descrever o que nos aconteceu.

- As tais plantas... elas exercem algum tipo de controle da mente? - Indagou a Chefe Méndez.

- Não no sentido que está pensando - atalhou Shimada. - Elas não nos induzem a nada... mas revelam quem realmente somos e no que podemos nos tornar. Já pensaram nisso? A maioria das pessoas passa pela vida sem jamais descobrir uma coisa ou outra!

- Angela Bergqvist descobriu que estas plantas altas criam um campo capaz de abrir a mente humana e desbloquear seu potencial. Os capacetes dos trajes bloqueiam as emissões, por isso removeram os nossos, para que sentíssemos o mesmo que eles. Por um curto período de tempo, é verdade... - disse Ferreira, com amargura.

Petrelli soluçou.

- E o que pretende fazer a respeito? - Indagou Avelaneda.

- Vou solicitar à Frota Estelar que envie o material solicitado pela engenheira-chefe - e esqueça a história da base estelar. Goth-II agora tem uma colônia humana, e devem ser deixados sós para que busquem seus próprios caminhos. Talvez tenham muito a nos ensinar num futuro próximo.

O sol Goth-654327 apareceu em toda sua glória no centro da tela de observação. E foi então que a Chefe Méndez perguntou:

- Mas afinal, o que quer tanto a engenheira?

Ferreira encarou o sol vermelho que afundava no negrume do espaço, antes de responder:

- Refletores orbitais. Vão posicioná-los para iluminar a face escura do planeta e assim permitir que as plantas tenham uma área maior para ocupar. E atrás delas, irão eles e seus descendentes...

"E um dia", pensou ele com determinação, "eu também voltarei lá."

[18-03-2017]