Vazio

Eu gosto do silêncio do espaço. Eu gosto da calma, das estrelas e dos planetas, cada um no seu lugar. Eu gosto daqui e, se pudesse, ficaria por aqui até que meus dias acabassem. Mas infelizmente tenho que voltar a uma vida que detesto e que já acabou há alguns anos.

Josh era um ano mais velho que eu, mas nos formamos na mesma turma de patrulheiros. Não havia como não notá-lo, afinal, era um líder nato, um homem de princípios e muito bonito. E eu? Uma menina recém-saída da adolescência, tentando achar um lugar no mundo. Quando ele me chamou para sair a primeira vez, acho que entendi que meu lugar no mundo seria ao lado dele. Isso foi há tanto tempo...

Josh, Mikka, Festus e eu. O esquadrão mais condecorado da Federação Solar, os mais destemidos, os mais bravos. Salvamos o mundo algumas vezes, mas o que realmente importava éramos nós quatro e, principalmente, Josh e eu. Éramos imbatíveis e todo mundo podia ficar sossegado com a gente voando de um lado para outro por aí. Até que a missão em Solaris IV veio. E mudou tudo.

A relação dos solarianos com a Federação não era lá muito amistosa. Eles não aceitavam muito bem as regras assinadas no Grande Tratado. Preferiam continuar com a sua política de invasões, saques e guerra. Alegavam que viviam assim desde antes de nossos antepassados nascerem. Um bando de piratas baderneiros que singravam o espaço sem qualquer responsabilidade, e nós tínhamos que colocar os idiotas no seu devido lugar.

- Oficial Jinx, apresente-se no deck superior. – A voz do Comandante Josh Klinemann soava alto e forte em todos os compartimentos da NOVA01, a mais moderna nave de assalto da Federação. Estávamos quase na órbita de Solaris IV, realizando os últimos preparativos para a incursão.

- Se ferrou, Jinx. Vai ter que esfregar as botas e limpar a merda da cueca dele.

- Vá se foder, Mikka. E vê se para de gracinhas, não quero ter que carregar esse seu corpo gordo morto de volta pra casa. – Na verdade, Mikka não era nenhum um pouco gordo, mas eu realmente não queria levar o corpo de um amigo morto de volta pra casa.

- Oficial Jinx se apresentando, senhor. – Entrei no deck de comando e Josh parecia um pouco nervoso. Com certeza era por causa da nossa missão.

- Qual é, Carol? O protocolo é da porta pra fora, e só na frente do resto da corporação. Aqui estamos em casa.

A porta do deck superior se fechou em silêncio. Era sempre um alívio quando isso acontecia, porque era assim que eu poderia ficar a sós com John, sem que ninguém no universo nos interrompesse. Depois de cinco anos de serviço e relacionamento, eu me sentia como aquela mesma garotinha que estremecia quando ele sorria na Academia de Cadetes Estelares. Ele conseguia o que ninguém nunca conseguiu: baixar minha guarda. Acho que era isso que ainda mantinha a minha humanidade depois das merdas que aconteceram durante o ataque dos Arakks, que matou todo mundo da minha família, menos eu. Ele era a minha conexão com o mundo e com Mikka e Festus.

- John, em menos de 15 minutos estaremos na órbita de Solaris, acho melhor nos prepararmos para o ataque.

- Eu sei, meu amor. Mas antes, quero te fazer duas perguntas. A primeira delas é: você me ama?

- Claro que sim, que pergunta mais idiota. Você sabe que sim.

- Ótimo. – John mexe em um dos bolsos da jaqueta do uniforme, tirando um pequeno embrulho. Ele ria nervoso, e quando isso acontecia, era claro que estava aprontando alguma. Ele tinha o costume de me surpreender da melhor maneira possível.

- A segunda pergunta é, Carol Jinx, se você aceita se casar comigo. Você aceita?

Eu ainda me lembro do meu sorriso nervoso e de como minhas mãos tremiam. Eu suava frio e cada pedaço do meu corpo pulsava feliz, em uníssono. Nunca me esqueci daquele momento.

- É claro que eu aceito! – Me levantei e o beijei, esquecendo um pouco a missão perigosa que estava por vir.

A nossa felicidade de “recém-noivos” durou pouco mais que alguns minutos. Voltamos aos nossos postos, com a nossa nave bem no meio do esquadrão enviado para a missão em Solaris IV. Eu tinha uma sensação ruim, mas deixei passar por causa da tensão do momento, uma coisa que não deveria me preocupar perto de uma operação tão importante assim. Poucas mulheres no universo são pedidas em casamento prestes a entrar em combate. Devo ter sido a única. E, provavelmente, a última.

O pouso em Solaris era duro e perigoso. Os solarianos eram selvagens e bons soldados, seria uma batalha bem difícil, mas nada que não pudéssemos dar conta. Com o auxílio dos caras da Delta VI, a elite da Federação, seria mais fácil.

Das 20 naves que pousariam em Solaris, quatro explodiram a poucos metros do chão. A primeira a chegar inteira foi a nossa, salvo alguns arranhões na fuselagem. Josh foi o primeiro a descer, seguido por mim, Mikka e Festus, respectivamente. Tentamos montar um perímetro, para que as outras naves pousassem em segurança, mas os desgraçados não davam trégua. Até que acertaram uma das NOVA, que caiu rodando perto de nossa localização. Se os solarianos tivessem acesso à nossa tecnologia, aí sim estaríamos com sérios problemas.

- Preciso ir até lá. – Josh falou alto em meio aos tiros. – Provavelmente estão mortos, mas daqui não dá pra destruir o que restou da nave. Mikka, Festus, preciso de cobertura. Jinx, espere o apoio para prosseguir com a missão e destrua o comando central deles.

Não dava para acreditar que ele iria se arriscar daquele jeito. Mas se tratando de Josh, não dava pra simplesmente falar “não vá”. Ele era o meu comandante, um herói para a Federação. Ele tinha que realizar o seu dever e eu, o meu. Assenti com um leve aceno de cabeça e esperei uns dois grupos dos Delta para avançar um pouco.

Conseguia vê-lo correndo em direção à nave. Estava a uns 50 metros de distância, com Mikka e Festus dando um verdadeiro show na cobertura, abatendo solarianos com uma velocidade incrível. Mas aí algo deu muito errado.

A merda da nossa Inteligência não nos informou que os solarianos tinham armas de pulso eletromagnético. Isso fodia com as NOVA, que caíam como mosquitos no chão. Só sobraram a nossa e a que estava caída, com Josh ao seu lado. Mikka e Festus tinham achado um abrigo em uma rocha no caminho entre as duas naves, e três Deltas ainda vivos me acompanhavam no tiroteio, uma vez que o P.E.M também danificava os nossos lasers, nos deixando com a munição normal. Ou seja, o que era uma missão de assalto simples se tornou uma luta ferrenha pela sobrevivência.

- Peçam ajuda pelo rádio, agora! – Gritei para um dos soldados ao meu lado.

- Sem resposta, senhora. Estamos por nossa conta. – O Delta não demonstrava pelo tom de voz, mas era mais do que claro que estava apavorado.

Pelo canto do olho, consegui ver Mikka e Festus protegendo Josh. Até que um foguete solariano acertou o ponto onde eles estavam. É difícil perder alguém em batalha. Mais difícil ainda quando eles são seus melhores amigos. Fiquei surpresa com o grito que saiu da minha garganta, era quase um uivo de dor, raiva e desespero. Os solarianos avançavam e mal podíamos contê-los, agora sem Mikka e Festus para ajudar.

- Oficial Jinx, escuta. – A voz de John, ofegante, soava do rádio em meu ombro. – Pegue os Deltas e dê o fora daqui.

- Negativo, senhor. Não vamos embora sem o senhor!

- É uma ordem, Jinx! – O grito de John foi escutado por todos os Deltas ao meu lado. Nós dois sabíamos que a missão tinha sido um fracasso e era necessário que não ocorressem novas baixas. Era a última ordem que Josh tinha me dado, a última vez que ouvi a sua voz.

Enquanto embarcava os Deltas, pude ver os solarianos avançando contra a nave caída. Os raros disparos de Josh indicavam que ele estava ferido. A pior coisa do mundo é ficar de mão atadas frente a qualquer situação. O sentimento de impotência ecoa na sua alma, faz uma cicatriz e fica lá, pra sempre. É assim que este momento está guardado aqui comigo, a última vez que pude ver o homem que amava com vida.

Trouxe os Deltas – o que restou deles – em segurança. Perdi os meus melhores amigos e Josh. Tudo por culpa de um idiota da Inteligência, que pegou uns 20 anos de detenção e perdeu toda a carreira militar brilhante com que sonhava. E eu recusei todas as honrarias da Federação e abdiquei do meu posto nos patrulheiros. Não tinha sobrado nada pra mim lá, a não ser decepção e muita mágoa.

Passei a vagar como exploradora, mas ainda vinculada à Federação. U cargo menor, mas que me mantinha afastada dos meus problemas e dores. Passava ciclos inteiros fora da vista de qualquer ser vivo, exceto por algum contato de rádio esporádico da Central. Depois de perder tudo, não havia motivo para ficar perto de alguém novamente. O frio e o silêncio do espaço me acompanham, me sinto protegida com eles. Isso preenche, de alguma forma, o vazio deixado aqui comigo. Eu nunca gostei muito do contato com outras pessoas, muito menos do convívio na sociedade e na Academia. Mas Josh, Mikka e Festus me mostraram que, mesmo por pouco tempo, eu poderia deixar a minha armadura emocional de fora do meu cotidiano.

20 anos se passaram desde então. Josh se foi, Mikka e Festus também, todos com as devidas honras da Federação, afinal, eram heróis. Mas a lembrança deles, principalmente do meu futuro noivo, me deixava destruída. Só achei um pouco de alento em meio às estrelas. Antes sozinha do que mal acompanhada, como diria Josh e o seu humor escroto e sedutor. Deus, como sinto saudade, mesmo depois de todos esses anos.

Hoje é o último dia do meu último ciclo na Federação. Talvez eu fique o resto dos meus dias sem ser incomodada no meu Hab, mas acho que essa possibilidade é remota demais. Provavelmente eu siga para uma nova-colônia, sem muita gente, pra ter um pouco de paz daqui pra frente. Nada melhor do que pouca gente ao meu redor, uma aposentadoria tranquila, eu diria.

- Oficial Jinx, onde está você? – A voz no meu rádio é baixa, mas audível. Deus, é a voz de Josh.

- Comandante Klinemann, aqui é a Oficial Jinx. Qual a sua posição?

- Oficial Jinx, onde está você?

A mesma pergunta, a mesma voz. Minhas mãos trêmulas acessam o computador da Central para rastrear a origem da transmissão. Na verdade, não tenho estrutura emocional para lidar com uma coisa dessas, minhas ações são instintivas, reflexo dos anos de treinamento na Academia de Cadetes. Três segundos depois, o computador me dá uma resposta: a transmissão vem de Solaris IV, aquele inferno que tirou tudo de mim. Milhares de possibilidades passam por minha cabeça agora. Josh ainda está vivo depois de todo esse tempo? Por que ele não entrou em contato comigo ou com qualquer outra pessoa nos últimos 20 anos? Apesar dos eventos climáticos que mataram 80% da população solariana, como ele pode ter sobrevivido? Bem, posso pensar nisso quando percorrer os 3 parsecs que separam minha atual posição da origem da transmissão. Nada além dos barulhos da minha mente, apenas as estrelas me acompanham nessa viagem. E todos os meus medos, angústias e sonhos destruídos. Ainda bem que não tem ninguém pra me encher durante o caminho.

A descida em Solaris IV continua dura, mas pelo menos não tem ninguém atirando em mim agora. As hastes de pouso tocam o chão, coberto por um tipo de musgo ou grama. Eles não estavam aqui há 20 anos. Devem ter crescido depois que o aquecimento do planeta exterminou a antiga fauna e flora. Isso deveria ter ocorrido na Terra, mas demos sorte. Mas muita gente continua por lá, fazendo as mesmas idiotices de sempre. Deus, como odeio aqueles idiotas.

De acordo com o computador central da nave, o ponto de pouso mais próximo da origem da transmissão fica a 15 quilômetros de distância. Checo todos os equipamentos e o traje de missão terrestre. A Central já foi comunicada e aqui estou, meio que a contragosto deles. Dane-se, estou prestes a me aposentar e não preciso ficar ouvindo um monte de baboseiras de meninos e meninas que acabaram de sair das fraldas e se acham os seres mais inteligentes das galáxias. Sério, eles não durariam dois minutos nos áureos tempos dos Patrulheiros.

Andar por Solaris, mesmo com a população reduzida drasticamente, é um desafio. A geografia do lugar é irregular demais, nada que se pareça com algum outro planeta por aí. É quente, difícil de respirar, perigoso. A distância de 15 quilômetros é um verdadeiro desafio nessas condições, então, devo prestar muita atenção para não cair em nenhum buraco ou que nenhum desses bichos venenosos caia na minha cabeça. Preciso chegar o quanto antes no local da transmissão de Josh, e ter tempo hábil de retornar ao próximo posto avançado da Federação, para reabastecer a nave e seguir de volta para a minha aposentadoria. Talvez eu o encontre por lá. Mas eu sei, em meu coração, que essa possibilidade é mais do que remota. Mas não importa, preciso chegar até lá.

O que leva uma pessoa a vasculhar o canto mais obscuro de sua vida? Solaris IV me tirou toda a felicidade e a vontade de estar perto de alguém. Apesar de toda a brutalidade de seus antigos habitantes, não há lugar nessa galáxia que tenha um anoitecer mais bonito. Enquanto ando, consigo ver Eon, a bela lua que orbita o planeta. É dourada, um brilho intenso e bonito. Logo atrás dela, Pluralis, o planeta azul e seus belos anéis, flutuando como se estivesse em uma moldura de milhares de estrelas. Queria ter tido tempo para apreciar isso com Josh, Mikka e Festus. Uma reunião de família que nunca pude ter. Uma vida de serviço sem nenhuma recompensa. Pois é, ninguém disse que seria justo. E não é mesmo.

Quatro horas de caminhada me levam até o local da chamada. Eu reconheço aquele lugar, é o mesmo da batalha de 20 anos atrás. Ainda posso escutar os tiros ecoando, os gritos dos Deltas e de Mikka e Festus. A última ordem de Josh. Meu Deus, é como se estivesse tudo acontecendo agora. Ouço o bip da biometria do traje. Meus batimentos estão sendo controlados pela roupa de sobrevivência, o que me tira do transe e me traz de volta à realidade. A NOVA ainda está lá. Nunca soubemos se houve a detonação por parte de Josh naquele dia, mas agora tenho a resposta.

- Oficial Jinx, onde está você?

De novo, a transmissão de Josh. Dessa vez, mais alta e clara. A voz dele não envelheceu nada nessas últimas duas décadas. Como dói reviver tudo isso, ainda mais agora, com a voz de Josh ecoando em meus fones.

Passo pelo local de onde tirei os Deltas e os levei em segurança para casa. Logo a frente, a rocha que servia de proteção para Mikka e Festus ainda está lá, lascada pelos disparos dos solarianos. Impossível não lembrar das piadas de Mikka e do companheirismo de Festus. Me detenho ali por um segundo, tempo suficiente para todas as lembranças me invadirem como um tsunami. Preciso me concentrar e seguir em frente, preciso chegar até onde Josh está.

A NOVA está com a fuselagem avariada, mas não diria que está ali parada por 20 anos. Depois de alguns reparos, até arriscaria dizer que ela poderia sair dali voando tranquilamente.

A porta da nave estava entreaberta. Um pequeno empurrão e lá estou eu, dentro de uma NOVA, após muito tempo. O sinal do traje apita incessantemente, cada vez mais próximo da origem da transmissão, que vem da cabine de comando. Será que Josh estará lá, esperando por mim? Será que poderemos dar andamento naquele pedido de casamento e finalmente viver “felizes para sempre”? Será que...será melhor me concentrar no que tenho que fazer.

Tenho os passos vacilantes ao atravessar o pequeno deck do caça espacial. O espaço é suficiente para um esquadrão de quatro pessoas, mas nada além disso. Tinha me esquecido de como era um pouco sufocante voar em uma NOVA de batalha.

- Oficial Jinx, onde está você?

Mais uma vez, o chamado de Josh. Está tão alto e claro que ele deve estar ali, bem atrás da porta que separa o deck da cabine do piloto. Eu quase posso escutar a sua respiração, quase posso sentir o calor de seu abraço. Quero tanto dizer que o amo e que nossa vida será incrível daqui pra frente, sem missões idiotas e sem perdas de amigos. O painel de controle da porta ainda está funcionando. Ele reconhece a senha padrão dos Patrulheiros e abre a porta silenciosamente, mostrando a cabine vazia. O único som é do computador de bordo, que gravou a última transmissão do comandante.

Josh não está aqui. É somente uma gravação, sua voz chamando por mim. Um eco de um passado distante, de uma outra vida que eu poderia ter tido. Por um momento, achei que poderia ter toda a felicidade do mundo ao lado do meu noivo e dos meus amigos, mas o nosso dever cobrou o seu preço. Não consigo conter as lágrimas que correm em meu rosto, nem quero contê-las. É a primeira vez que realmente choro a perda de Josh. É o momento em que me dou conta que toda a esperança que tinha de revê-lo tinha ido embora.

O anel de noivado que ganhei 20 anos antes ainda estava comigo, pendurado em um cordão em meu pescoço. É hora de deixá-lo ir, como Josh teve que fazer. Deixo o cordão pendurado na alavanca de controle e aciono a autodestruição. Passo pela última vez no deck da NOVA e ganho a superfície de Solaris IV. Enquanto me afasto da nave, tenho tempo de observar o céu lindo daquele lugar. Cada vez maior, mais frio e mais vazio.

Rafa Lima
Enviado por Rafa Lima em 05/02/2017
Código do texto: T5903578
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