Anacrônico por Natureza

ANACRÔNICO POR NATUREZA

Antônio estava bêbado, amarrotado, paletó e gravata largados, barba por fazer, sem tomar banho, um lixo por assim dizer. Vinha caminhando trôpego pela rua escura mal iluminada pelas lâmpadas amareladas por onde voavam algumas mariposas buscando um pouco de luz. Parou por um momento e agarrou-se ao poste, colocou a mão aberta na testa e cerrou os olhos procurando ver onde estava. Com o cigarro de palha apagado no canto da boca, meio confuso disse a si mesmo: - Acho que é logo ali na frente! Sentia-se cansado. Lembrou-se que estava naquela espelunca no final do beco bebendo e dançando com uma daquelas putas. No jukebox estava tocando “Som de Cristal” – A casa se mantém á noite em clima de festa/ De longe se ouve vários instrumentos de cordas e metais/ Boêmios bebendo, cantando e dançando ao som da orquestra/ Um som estridente que lhe deu o nome de som de cristal/ A casa noturna boate falada, lugar de má fama... Assim eram os versos da canção.Logo que seu dinheiro acabou ela o deixou a ver navios. Sózinho começou a falar alto e arrumar confusão no ambiente, ficou inconveniente.

- Filhos da puta! Murmurou,lembrando daqueles dois seguranças brutamonte, que o jogaram na rua.

Trazia consigo na mão esquerda uma garrafa de cachaça “amansa corno” na direita uma sacola e um jornal todo amassado debaixo do braço. Cruzou no caminho com um casal de namorados e o rapaz disse: - Cuidado querida, esse bêbado pode cair em você! Desviaram dele e seguiram xingando: - Sai pra lá seu bêbado imprestável!

Sentiu certo desconforto, pois ainda lhe restava um pouco de dignidade. – Imprestável o caralho! Sou um escritor! Tá pensando o quê? Blasfemou.

Antônio era um escritor fracassado que transitava ali pelas beiradas do sucesso e da glória, chegou a publicar algumas crônicas e contos de ficção científica em algumas revistas e jornais. Alguns editores até chegaram a dizer que ele tinha talento para a escrita e ele mesmo chegou a acreditar nisso, porém sempre lá no fundo, bem lá no fundo achava que era um medíocre pretensioso.

A vida sempre tem seus altos e baixos e no período em que estava se achando, quando publicou seu romance “No Meio do Nada” ganhou dinheiro e até prêmio. No seu auge ficou deslumbrado, vestia-se bem, gostava de sair e frequentava os melhores restaurantes da cidade, carro conversível, gastava tudo que ganhava no jogo e com a mulherada, gostava de viver intensamente cada momento. O seu círculo de amizades era o melhor possível, convivia com as melhores famílias, era visto como um grande talento literário que faria muito sucesso e ganharia muito dinheiro. Nas vivências dessas grandes rodas sociais, muitas festas e glamour, conheceu Michele, moça bonita com ar aristocrático, imponente, educada na Europa, falava inglês, francês e italiano com desenvoltura. Diziam as más línguas que a família estava quebrada. Encantou-se pela moça não acreditava no que diziam. Casaram-se e no começo viveram relativamente felizes, até que Antônio começou a beber e já não produzia nada. Sua criatividade havia desaparecido, já não tinha mais ideias e não escrevia mais nada. Será que era um picareta? Um enganador? Não tinha talento nenhum? Era medíocre, com certeza! Essas dúvidas eternas começaram a invadir a sua alma dia após dia, corroendo-o por dentro e assim foi ficando cada dia mais deprimido. A mulher se mostrou uma “poser” vazia e fútil, o maltratava, era autoritária e sempre o humilhava na frente dos convidados e amigos, chamando-o de inútil e fracassado, pois ela esperava muito dele, que a levasse para as festas das celebridades, que aparecesse nas colunas sociais e como Antônio foi sendo esquecido e ninguém mais falava dele, caiu no ostracismo, já não tinha mais trabalho, só bebia, os amigos o abandonaram, assim como um dia chegou em casa e viu a mulher com o amante jovem.

Já não ligava mais pra nada se sentia vazio, com um vácuo no peito, olhava a sua volta e já não se reconhecia mais, certo que sempre se viu como um sujeito “anacrônico por natureza” fora do seu tempo, deslocado, não pertencendo a essa época. Às vezes tinha umas lembranças, memórias esquecidas de algum lugar no tempo, que teimavam em aparecer em sonhos, mas logo se esquecia disso. Um dia disse assim: - Vou ali na esquina comprar cigarro! Nunca mais voltou, passou a viver na rua, sobrevivendo de pequenos biscates, já não pensava mais no passado nem no futuro, vivia somente o presente do jeito que ele viesse, como uma dádiva. Gostava de tomar umas biritas e fumar uns baseados para esquecer ou fugir da realidade. Tornou-se um junky, assim como uma espécie de beat, ou melhor, um Burroughs. Não era triste nem feliz, apenas vivia. Era um sobrevivente.

Caminhou um pouco mais e logo chegou a uma antiga praça abandonada pelo poder público, que havia se tornado um local de bêbados, drogados e prostitutas. Conhecia bem o lugar, andou rapidamente por uma das alamedas e acomodou-se num dos bancos vazios. Estava tudo quieto, um silêncio afetivo, uma brisa calma soprava trazendo um pouco do perfume das plantas e flores dos canteiros próximos. Sentado ficou olhando para a velha fonte, com sua arquitetura clássica representada na figura daquele anjo tocando flauta, balbuciou entre dentes: - A beleza, a forma, o equilíbrio, o sublime... Na sua contemplação do belo, não percebeu a chegada de dois rapazes e uma moça que o acordaram do seu transe estético:

- Olá tio! Beleza, velho?

- Sim, tudo bem! E vocês?

- Da um gole dessa cachaça ai!

- Pode pegar! Estejam à vontade!

Os jovens pegaram a garrafa de cachaça e começaram a beber.

- Essa é da boa hein!

- Tô vendo que o Sr gosta das coisas boas! Então vamos apresentar um dos bons!

O mais falante tirou do bolso um enorme baseado, acendeu e começou a fumar, depois foi passando um por um até chegar a Antônio.

- Vamos meu velho é coisa boa!

Antônio pegou o baseado e começou a fumar, deu longas puxadas e tossiu, os jovens começaram a rir.

- Ta vendo, não disse que era dos bons!

Depois disso se despediram e foram embora dando altas gargalhadas.

Antônio deitou no banco da praça se sentindo como uma pluma ao vento, levitando no ar. Olhou novamente em direção à fonte e percebeu umas faíscas como se fosse uma descarga elétrica e tudo se iluminou e um estranho barulho zzzzz...zzzz...zzz.... se fez no local. Foi tudo tão rápido que, atônito, Antônio deu um salto e viu a poucos metros no chão uma criatura realmente bela. Estava caída nua e inerte uma mulher jovem com seus cabelos cor de fogo. - Seria ela o quinto elemento? Conjecturou. Antônio correu até ela e disse:

- Moça você está bem? Ela abriu os enormes olhos azuis e instintivamente tentou cobrir a sua nudez com os braços longos.

- Estou um pouco tonta com a viagem! Mas logo ficarei bem! Mas em seguida começou a vomitar.

Antônio foi até a fonte pegou um pouco d água na garrafa de cachaça que estava vazia e deu para a jovem.

- Obrigada! Respondeu com um sotaque estranho.

- De onde você vem? Como chegou aqui? Perguntou desconfiado.

- Não vai acreditar, mas venho do futuro! Do Ano de 2078!

Antônio arregalou os olhos e perplexo com aquela conversa pensou consigo mesmo acho que exagerei! Viu que ela estava tremendo e com frio, pegou uma camisa e uma calça na sacola e deu pra ela vestir, obviamente ficou um pouco grande, mas ficou lindo. Viu que tinha a metade de um sanduíche no bolso, deu pra ela que rapidamente devorou, estava com fome.

- Como faço pra chegar até o litoral? Ela perguntou.

- É preciso pegar um ônibus! Disse Antônio.

Ela olhou para ele com uma expressão de carinho, deu um beijo na sua boca e sumiu na escuridão. Ele ficou paralisado, estático, estupefato disse: - Rapaz esse trem é forte mesmo, dos bons como eles disseram! Tô tendo até alucinações!

Acordou com o sol batendo na sua cara amassada, algumas pessoas indo para o trabalho olhavam para ele com desdém. Ele nem ligava dizia: - Vão trabalhar seus escravos do sistema! Com suas vidinhas medíocres! Idiotas... Imbecis!

Recordou-se da noite passada, mas achou que havia sonhado um sonho estranho. Passou a mão pela boca para limpar a baba da manhã e viu que ficou toda manchada de batom, achou aquilo esquisito, procurou sua camisa e calça na sacola e não achou. Ainda sentia o gosto daquela boca na sua. Será?

Olhou a sua volta e sentiu aquela velha vontade de escrever, nem que fosse um poema de amor, alguma coisa tinha acontecido naquela noite, só que estava além, muito além da sua compreensão, então deixou pra lá e foi procurar um editor. Estava feliz novamente e com muita vontade de escrever e contar estórias.

Roman Kane 04/12/15