O BLEFE

No ninho do gafanhoto.

–Walhalla?... Estou no Walhalla?

Alan fingiu acordar antes que lhe aplicassem alguma droga da verdade e falou em raniano. Não devia revelar que entendia alakrano.

–Walhall. Você está em Walhall.

O quarto era impecável, as paredes e objetos numa tonalidade marrom claro, creme e verde. A aparelhagem médica que o mantivera vivo enquanto o consertavam, era bem superior a tudo quanto viu em Titã, Calisto, Marte ou a Terra.

–Walhall...?

–Capital do continente norte, ou Borália como nós a chamamos.

–Quem é você? – Alan ainda estava ligado à aparelhagem vital.

–Sou Djekal Baharnum Atholph, governador de Boral, uma terra muito boa.

O governador estava sentado numa cadeira comum ao lado do paciente. Nos joelhos repousava seu capacete. Seu corpo estava coberto por um macacão colante preto opaco flexível. No tórax vestia a armadura preta que brilhava em tons apagados, a poderosa armadura que demonstrou resistir ao laser e à pistola marciana.

–Acredito que seja boa para os nativos – disse Alan – mas você vem de um mundo escuro... Por quê está aqui? Sem esses óculos você é cego.

Djekal sorriu, mostrando as presas curvas e os dentes longos e afiados.

Seu rosto e sua pele pareciam de um humano branco bronzeado pelo sol. Seu rosto poderia parecer humano, se não fosse pelos olhos facetados, permanentemente ocultos por aqueles óculos pretos que formavam parte da toca que cobria sua cabeça até um pouco acima do nariz.

–O mesmo poderia dizer a você, humano. Sua querida Confederação ocupou o complexo de Alamak, estrela 820, setor 0.10, marco 1.820 a 77 parsecs daqui. É luz demais... Até para vocês.

Alan lembrou que Alamak é uma estrela branca da classe B8; a Gamma 2 da constelação de Andrômeda, perto da Anomalia de Almach.

–Claro – disse Alan – é um lugar muito luminoso.

–O quê vocês foram fazer por lá? É longe demais da Suprema Confederação.

–Você deve de saber que Alamak está perto da anomalia de...

–Sei, sim. Quantas belonaves vocês tem em Alamak?

–Não espera que eu saiba do que acontece naquele gronko do quadrante.

–Cinco naves?... Dez?... Quinze...? Talvez vinte?

–Não são necessárias cinco naves de batalha para vigiar a anomalia.

–Sim... Sim... Tem sentido. Duas seriam suficientes.

–Uma só é suficiente. A anomalia se abre a cada...

–Sei disso. O que não sei é como vocês souberam que estávamos aqui.

–Nada é impossível para nós! – disse Alan, num alarde de petulância que o fez arrepiar fazendo as costuras de sua pele doer, disparando alarmes nos aparelhos de controle vital e fazendo vir o médico para recriminar o governador.

–Não o agite, excelência. Eu já lhe disse que não está pronto; daqui irá para a câmara hiperbárica e depois ficará no tanque por um tempo. Seja breve. Quando eu terminar com ele o senhor pode fazer o que quiser. Inclusive usar a sonda mental.

–Claro, claro, doutor. Entendi. O senhor é autoridade aqui dentro. Desculpe minha pressa, mas já expliquei que a situação é delicada e este ser é fundamental.

O médico retirou-se e Djekal aproximou-se mais:

–Há coisas impossíveis sim; humano. Por falar nisso, pode dizer-me seu nome e cargo? Não que seja importante, mas tornaria mais fácil nosso colóquio.

–Claro, onde está minha educação? Eu sou o coronel Alan Claude Sarrazin.

–Coronel?... Pegamos um zuytche graúdo! Você deu bastante trabalho, coronel Alan. Sua captura e morte custaram setenta soldados xawareks, sem falar nas perdas de veículos de solo, aeronaves, danos colaterais...

–Desculpe pelo material, mas vocês devem ter de sobra. Quanto aos xawareks, lamento por eles, mas não eram bons. Tiveram suas chances, armas melhores, veículos, aeronaves... E eram muitos. Só me pegaram porque mataram meu pakakhe.

–Eu sei – Djekal parecia abatido – foram os melhores soldados disponíveis que pudemos recrutar para esta operação.

–Se esses eram os melhores, como serão os piores! Agora sei porquê vocês não conquistaram o Império Raniano – disse Alan venenosamente.

Djekal ficou sem jeito por um momento, mas se recuperou em seguida:

–Os xawareks já foram bons, há milhares de ciclos... Agora deixam a desejar como soldados. São bárbaros demais e pouco inteligentes.

–Estes xawareks... – aventurou Alan – onde os pegou? Em Xawarek Amaru? Se os tivesse pegado em Amaru Xel, veria a diferença.

–Concordo, sim. Temos alguns xawareks xelianos, são inteligentes e honrados, estão trabalhando nos... Nas... Ah... Em outro lugar.

–Forçados; como os boralianos?

–Não! Eles têm tarefas nobres. São melhores, mais aguerridos, mais altivos, respeitam as Leis de Honra Xawarek e confio plenamente neles. Não os uso na repressão porque são valentes demais e não têm medo de morrer. Por isso não quero que morram estupidamente em lutas contra a guerrilha. Preciso deles, são inteligentes demais para as minúcias de patrulhar as ruas e caçar rebeldes.

–Você pensa como eu, governador. Gostei de lhe conhecer.

–Que bom que nos entendemos. Também gosto desta conversa, coronel. Vejo que é uma criatura inteligente. A propósito... Até quê ponto a Suprema Confederação sabe de minhas atividades aqui?

–Refere-se às grandes operações de mineração, principalmente de cristal de diankrap? Ou à industria e estocagem de armamento? Talvez se refira a transformar Boral num ponto de apoio para nos atacar... É isso que está me perguntando?

Djekal ficou sem jeito. Pareceu que ia cair da cadeira.

–Ah... Sim. Isso mesmo é o que quero saber.

–Vou resumir em poucas palavras: se eu estivesse no seu lugar, faria as malas agora mesmo, porque este lugar vai esquentar – disse Alan, num blefe tão grande que o fez arrepiar, disparando as máquinas de novo e fazendo suas costuras doerem.

O governador ficou sem fala. Os passos do médico já se ouviam no corredor para expulsar o governador de vez. Alan não queria dar-lhe respiro e voltou ao ataque antes que Djekal se recuperasse:

–Meu trabalho já está feito. Não posso ficar mais tempo aqui. Como eu disse, aqui vai esquentar e não estou em condições de me mover... Seria muito pedir que me levasse com você quando evacuar o planeta? O quê é preciso fazer para solicitar a cidadania alakrana? Claro que terei algumas dificuldades para poder enxergar no seu mundo, mas vocês devem ter alguma solução para isso...

–Não! Eles não se atreveriam a...! – disse o alakrano – Ou sim?

–Não conte com o ega na gronka da blenfa, governador.

*******.

Depois de dar por encerrada a entrevista com o terrestre, instado pelo médico, o governador se dirigiu ao seu gabinete no edifício de governo.

Hung o esperava na ante-sala. Era oficial de enlace com o Império Alakros e temporariamente estava no cargo de Interventor de Greena. Agora com a captura do líder dos rebeldes, pretendia passar o cargo a um xawarek.

–Como foi o interrogatório?

–Terrível!

–Como assim?

–Ele falou até demais. E nem precisei usar a sonda mental!

–A Suprema Confederação sabe que estamos aqui?

–Você estava certo, Hung. Desculpe não ter acreditado.

–Há honra em reconhecer que estamos errados; governador.

–Sim. Eles sabem que estamos aqui. Sabem tudo o que fazemos, sabem o que pretendemos e vão nos atacar em breve. O que eles não sabem é que não estamos prontos para defender o planeta e não temos astroencouraçados. Pelo que o humano disse, deduzi que acham que estamos firmemente estabelecidos; o que não é verdade, e por isso vão desistir de desembarcar para tirar-nos à força.

–O quê eles pretendem fazer?

–Penso que o mesmo que fizeram em Mizar II com aqueles insetos militaristas.

–Bomba termonuclear de oxigênio?

–Sim. Esterilizaram o mundo deles ao ver que construíam naves estelares para espalhar-se pelo quadrante. Aqueles insetos eram um perigo até para nós!

–Então eles pensam que temos muitas forças aqui e vão sacrificar o planeta.

–Será um desperdício de mão de obra, um planeta tão produtivo...

–Estamos perante um dilema, Djekal. Se pensarem que estamos fortificados, esterilizam o planeta. Se souberem que somos poucos e fracos, desembarcam.

–Em ambos casos, nós perdemos, Hung. O que acabou por me convencer é que o agente é do tipo descartável. Pediu que o levássemos quando formos embora.

–Então é grave. Quanto tempo será que ainda temos?

–Ele não disse, mas está com muita pressa para sair daqui. Você poderia ir à metrópole, informar o Imperador e pedir uma frota de ataque.

–Talvez eu nem chegaria, Djekal. Minha nave com certeza seria percebida, e se eu conseguisse passar ainda teria muita viagem pela frente até a anomalia de Shaula, que pode estar vigiada por eles. E na improvável hipótese de que o Imperador mandasse uma frota, quando esta chegasse encontraria um pedaço de carvão em vez de um planeta. Esqueça, governador. Pense em outra coisa.

–Poderíamos trocar o prisioneiro por...

–É descartável você disse, não?

–Sim. Uma pena, uma criatura tão corajosa e eficiente...

–Demonstrou isso. Estava organizando uma bela rebelião...

–Claro! Como não pensei antes! Ele deve ter um plano para se salvar!

–Percebo. Se os nativos nos expulsassem, ele informaria seus chefes e o ataque esterilizador não aconteceria. Brilhante raciocínio, governador. Ele deve ter meios de se comunicar com a Suprema Confederação.

–Está pensando o mesmo que eu, Hung?

–Uma retirada estratégica?

–Sim. Daria tempo de sair sem combater e avisar o Império.

–Pode dar certo, governador. E depois?

–Se conheço os confederados, eles não mandarão uma frota aqui.

–Espero que não. Devem de saber que isto aqui está muito bem organizado.

–Pode ser que resolvam deixar seu agente no controle do planeta. Podem até mandar uma ou duas belonaves para vigiar o sistema.

–Bem pensado, governador, mas temos um problema...

–Temos vários problemas, Hung.

–Só temos duas naves. Os xawareks terão que ficar. Não podemos levá-los do mesmo jeito que foram trazidos. Foi um erro mandar as naves de volta.

–Eles têm uma nave escondida em Zhoro, a base deles da terra dos vulcões, mas não dá para todos. De todas maneiras são descartáveis. Se a rebelião tiver êxito, os que não fugirem ou se esconderem serão eliminados pelos nativos.

–Claro. E os confederados estarão lá fora esperando por eles.

–Mas nós podemos escapar facilmente entrando em dobra ainda antes de sair do limite do sistema. É perigoso, mas não é a primeira vez que o fazemos.

–Concordo, governador. Agora devemos pensar como faremos para convencer o prisioneiro de nossa retirada... Isso pode nos dar tempo a voltar com uma frota e retomar o planeta com vantagem. Prometeremos tirá-lo daqui.

–Eu me encarrego disso, Hung. Disponha tudo para a evacuação.

–E os xawareks? Vão se melindrar ao ver que levantamos o acampamento.

–Diga-lhes que serão levados. Concentre-os em Zhoro. Sairão da ilha e os rebeldes tomarão conta.

–Muito bem. Que briguem entre eles para ver quem embarca.

–Agora vou descansar, Hung. Preciso pensar no que vou dizer ao prisioneiro.

*******.

O coronel não conversou mais com Djekal apesar das intenções deste, que se esqueceu dele, envolvido nos preparativos de partida.

Passaram semanas e Alan foi se recuperando, graças à tecnologia alakrana e aos cuidados dos eficientes médicos nativos. Alan foi submetido a tratamento dentro de uma câmara hiperbárica por vários dias, e depois foi colocado num tanque com um liquido orgânico que cicatrizou seus ferimentos definitivamente em quatro semanas.

O boato de que o líder dos rebeldes poderia estar vivo em Walhall, pronto se espalhou pela cidade. Nas ruas começaram as manifestações de protesto, prontamente reprimidas pela polícia nativa. Em pouco tempo, esta não conseguiu mais conter o povo, e teve que convocar os xawareks de ocupação.

Um dia chegou a notícia de que os rebeldes, comandados por uma mulher, tinham derrotado a ocupação na ilha Greena. Um novo governo tinha sido imposto, com Runo e Xufu na cúpula. A polícia nativa virou a casaca em favor dos rebeldes, capturando o depósito de armas subterrâneo de Greena, escondido na base das montanhas do sul. Era parte do estoque da produção de Borália. Haviam depósitos enormes distribuídos em todo o mundo, esperando para serem usados quando a frota alakrana aportasse no sistema.

Grande quantidade de material estratégico, munição, células de energia para pistolas e fuzis laser, canhões e carros de assalto que os alakranos estavam estocando para a futura guerra contra a Suprema Confederação, passaram as mãos dos rebeldes.

Os xawareks não conseguiram recuperar a ilha nem com suas brigadas de helicópteros, que eram derrubados pelos canhões laser.

Foi no segundo mês que Alan estava no hospital, que aconteceu...

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CONTINUA EM "Vingança"

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O conto "O BLEFE" forma parte integrante da saga Mundos Paralelos ® – Fase II - Volume IV, capítulo 32, páginas 92-93-94-95, cujo início pode ser encontrado no Blog Sarracênico, sarracena.blogspot.com

Gabriel Solís
Enviado por Gabriel Solís em 01/05/2013
Reeditado em 04/12/2016
Código do texto: T4269313
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