O HOBBY

A velha professora Benedita era ateia e cética.
Materialista, não dava ouvidos a toda essa conversa sobre energias positivas e negativas, karma, poder do pensamento, orações, pecados, salvação e paraísos. Não acreditava em premonições, passes curatórios, visões, advinhações, incorporações de entidades, simpatias, água benta, possessões e demônios urrando e babando pela boca dos fiéis.
Balela.
Auto-sugestão.
Leitura fria.
Indução hipnótica.
Superstições.
Desesperança.
Só havia uma coisa não provada na qual ela acreditava: vida inteligente em outros planetas.
Sabia, pelo raciocínio lógico do seu intelecto, que havia outros planetas habitados, civilizações em vários estágios tecnológicos, planetas em diferentes etapas evolutivas; sabia que deveria haver planetas onde, neste exato momento, os aminoácidos estavam surgindo, ou outra molécula equivalente; outros planetas onde os seres estavam se adaptando às mudanças geológicas e climáticas, pré-histórias de civilizações, animais evoluindo em alguma direção, inteligência!
Daí a aceitar e crer em histórias sem evidências, apenas baseadas em relatos, totalmente sem provas, era uma distância enorme!
Tinha milhões de ressalvas.
Fotos de OVNIs? Qual o quê!
Tanta tecnologia e nenhuma foto nítida!
Nenhuma incontestável!
Que nada...
Se "Eles" estivessem realmente por aqui, tão perto, há muito alguém já teria capturado uma imagem convincente.
Como ela estava se aposentando, decidiu que este seria um bom projeto para os primeiros dias sem trabalhar: pesquisar os avstamentos de OVNIs.
Caçar evidências.
Cultivar sua esperança infantil.
Afinal, a isto se dedicara desde criança, informalmente e sem metodologias, por falta de tempo e mesmo por que tinha tantos outros interesses que este assunto não constituía sequer um hobby; era mais uma das coisas sobre as quais ela gostava de ler e de se informar, apenas.
Seria este o seu hobby.
Começou pelos sites de ufologia, é claro, e não se decepcionou.
Nos arquivos mais antigos, encontrou vários casos famosos de sua adolescência, quando o programa Fantástico era dedicado principalmente a casos inexplicáveis, fenômenos paranormais e coisas do tipo.
Passava horas navegando e tentando se lembrar das reportagens que vira quando criança, buscando nomes, datas, algum detalhe que, digitado na pesquisa, trouxesse à tona os registros desejados.
Foi aí que a coisa começou a ficar estranha, as colegas de aposentadoria relararam depois.
No ínicio, tudo bem.
Visitavam-na, faziam caminhadas com seu grupo da terceira idade, frequentavam feirinhas de artesanato e exposições.
Mas, as amigas disseram, aos poucos Benedita tornou-se obsecada: não mais retornava ligações nem aceitava convite nenhum.
'Estou trabalhando', dizia, 'depois te ligo', e não ligava.
Por que, por mais que pesquisasse, havia dois casos de que se lembrava nitidamente que nunca foram explicados e que não constavam em nenhum site ufológico, em nenhum fórum, nem mesmo nos sites oficiais dos programas que os havia divulgado.
Em um dos casos havia evidência física de contato com extaterrestres: Uma plaquinha de uns trinta centímetros de comprimento por quinze de largura, feita de algum material incompreensível, com inscrições e desenhos. Lembrava-se de uma representação de Saturno bem simples e alguns diagramas, linhas pontilhadas delineando trajetórias, e sinais, letras ou números, supostamente extraterrestres.
O apresentador Flávio Cavalcante entrevistara o jovem senhor, vamos chamá-lo de José, que ia contando a seguinte história:
Deitara-se para dormir como fazia sempre, mas acordara durante a noite com uma sensação de urgência. Sentia uma vontade imperiosa de sair de casa e caminhar em direção ao riacho que fazia parte de sua propriedade, e assim fez. Ao aproximar-se da pontezinha em arco que atravesssava o riacho, percebeu uma pessoa, parecia um ser humano comum do sexo masculino - não tinha cabelos nem seios aparentes - e vestia uma túnica branca com uma faixa escura que ia do ombro direito até a sua cintura, no lado esquerdo, transpassando o peito; estava escuro mas a Lua iluminava um pouco; como o visitante continuasse parado e em silêncio no extremo oposto da ponte, José lhe perguntou quem era e se estava precisando de ajuda. Sem responder nada o visitante lhe estendeu a mão, indicando que queria entregar algo: a plaquinha.
O entrevistado confirmou que entrara em contato com autoridades militares (tudo se passara na época de ditadura brasileira, lá pelos anos 70 ou 80), com profissionais de Astronomia e ufológos conhecidos e respeitados, e que todos haviam lhe solicitado a placa.
José não lhes atendera, conseguira driblar os militares por que tinha conhecimentos nos altos níveis do governo; mas permitiu que estudiosos ligados ao governo retirassem amostras do objeto, o que resultou na descoberta de que era composta de elementos naturais e artificiais, numa intricada união impossível para a tecnologia da época. Flávio Cavalcante pediu para tocar o objeto e mostrou para as câmeras que, em uma das suas extremidades, a placa havia sido cortada para retirada de amostras. Benedita recordava-se da placa e da sua aparência de cortiça, e de que o apresentador aconselhara José a não permitir mais retiradas de pedaços, uma vez que estavam danificando o artefato. Ninguém fora capaz de decifrar os escritos e desenhos que ali constavam.
O outro caso que ela não pôde encontrar na internet também estava relacionado a Saturno, só agora percebera esta conexão entre eles!
E, sendo ela própria uma das testemunhas, não podia cogitar tratar-se de algum engano de suas memórias já envelhecidas e gastas pelo tempo.
Fora numa manhã em que Seu Manuelzinho perguntara à mãe de Benedita o que ela achava que tinha sido "aquilo de ontem à noite". Como ninguém da sua casa sabia do que ele estava falando, o vizinho explicou:
_A senhora não viu?! Todo mundo viu! Uma luz no céu, linda, linda... Alaranjada, esfumaçada, crescendo e brilhando, depois sumindo devagarinho...
_Não, disse Dona Nem, a gente estava vendo um programa sobre animais...
_Pois é uma pena... Foi muito bonito, todo mundo na vila viu!
Benedita foi para a escola sem pensar no assunto, mas no ônibus era só do que se falava; na escola, os professores comentavam entre si e com os alunos; até atividades sobre o fenômeno foram feitas, uma vez que todos estavam maravilhados e intrigados.
Benedita correu para casa sem esperar as amiguinhas, tentando chegar a tempo de ver o telejornal da tarde; certamente algo seria falado sobre tudo aquilo.
Dito e feito!
Ainda viu, antes de tirar o uniforme escolar, o repórter dizendo que a luz havia sido vista em toda a cidade, e até em algumas regiões mais afastadas. Testemunhas davam depoimentos detalhados, opiniões, teorias. E a velha explicação do balão metereológico foi anunciada por um senhor de aparência respeitável e erudita. Uma imagem do tal balão caído no chão, prateado, murcho e sem graça foi mostrada e pronto.
À noite, a família de Benedita assistia à novela das sete quando Seu Manuel, aos gritos, chamava no portão:
_Dona Nem! O céu, o céu! O céu!
Precipitaram-se pela porta e, atropelando-se, saíram à rua.
Lá estava!
Toda a vizinhança aglomerou-se num círculo e ficaram feito bobos, de boca aberta, teorizando explicações e discutindo sobre o que viam:
Uma luz, sim. Mas que luz!
Era alaranjada, mas não apenas.
Revolvia-se como fumaça dentro de uma bolha de sabão, sempre em forma circular perfeita, em vários tons que iam do vermelho vivo ao amarelo ouro. Tinha a aparerência fluida, inconstante, não piscava. nem se movia em qualquer direção.
Crescia.
Aos poucos, como se estivesse se aproximando da Terra, foi 'caindo' devagar, e a Benedita-menina pôde ver Saturno - ou uma representação dele - no céu, com uma circunferência do tamanho aparente de uma bola de basquete bol.
Linda, linda, linda... Benedita lembrou-se disto. De como achara aquilo lindo.
'Saturno' caiu mais um pouco e alcançou a circunferência de um bambolê.
Depois mais um pouco e já estava enorme.
No entanto, ela recordava, não era como se caísse realmente, pois dava para perceber (ou assim lhe parecera na hora) que a imagem não saíra do lugar. Crescia, sem descer nem se aproximar.
O fenômeno repetiu-se por ainda mais duas noites.
A imagem aparecia, crescia em em três etapas e depois ia sumindo, como se soprada pelo vento.
Restavam ainda, por horas, umas nesgas púrpuras e azuladas refletindo entre as nuvens.
Benedita havia lido contos de ficção científica, vira filmes, lera gibis. Aquilo tinha a toda a aparência de ser uma holografia.
Como a imagem da Princesa Léa pedindo socorro na projeção de R2D2.
Era real, mas como se imaterial.
Foi esta a tese da menina: aquilo era uma holografia enviada por alguém para transmitir alguma mensagem...
Sim, ela sabia que Saturno era desabitado.
Mais do que isso, um gigante gasoso!
Mas... o autor da mensagem podia estar sinalizando que estava por perto de Saturno; podia querer dizer que ali havia uma estação orbital; ou que estavam estudando nosso sistema e descoberto Saturno; que eram originários de lá... e um sem número de outras hipóteses passavam pela cabeça adolescente de Benedita.
E agora... nada!
Porque não havia nada sobre estes dois casos em lugar algum?
Um dia, num fórum, encontrou uma pessoa, cuja mãe lhe contara sobre a 'luz de Saturno', perguntando se alguém já ouvira falar. Benedita entrou respondeu ao tópico, mas a pessoa não respondeu nem ninguém no fórum soube dizer quem ela era ou dar algum endereço para contato.
E foi só isso.
Benedita não iria desistir, ficara mesmo obsecada.
Meses de aposentadoria escorriam diante do computador, mas nada de novo acontecia.
Até o dia em que Benedita encontrou uma vídeo-reportagem sobre um suposto viajante do tempo detido por fraudes na bolsa de valores de New York, que alegava ser originário do ano 3.076.
Não dava explicações sobre como viajara.
Não trazia artefatos tecnológicos inexplicáveis.
Não fornecia prova alguma do que dizia.
Muito menos esclarecia o objetivo de sua viagem temporal.
O que um homem do futuro estaria querendo com dinheiro?
Mas falava num formato quase ininteligível da Língua Inglesa, que mesclava Mandarim, Inglês e outros ramos linguísticos desconhecidos.
Inexplicavelmente possuía calosidades nos pés que não condiziam com a gravidade terrestre de hoje.
Benedita aprendera em algum lugar que "pode ler-se a história de um homem através dos seus calos". Qualquer pessoa que tenha vivido em em um ambiente com uma gravidade diferente da nossa apresentaria calos em consonância com o seu ambiente anterior.
E, não muito esclarecedor mas curioso, não possuía nenhuma identificação, suas digitais não constavam de nenhum sistema de dados.
Os únicos registros de sua passagem pela Terra vinham das câmeras de segurança da Bolsa de Valores e do prédio onde alugara um apartamento há alguns meses.
Nenhuma imagem das câmeras de trânsito, nem de bancos ou shopping centers.
Vizinhos do bairro pobre e decadente onde morava disseram que ele não trouxera mobília, objetos ou malas.
Nenhum caminhão de mudanças fora visto descarregando seus pertences; ele apenas aparecera e ia e vinha nos horários mais impróprios.
A reportagem já tinha uns bons três anos e não havia conclusão nem quaisquer outros comentários sobre o caso, nem na internet, nem em lugar algum.
Tudo terminava dizendo que o alegado visitante do futuro fora preso pelo FBI.
E só.
O assunto simplesmente morrera, assim como os dois casos de que Benedita se lembrava...
Em suas declarações, o rapaz afirmava categoricamente: A humanidade do futuro havia chegado a Marte e encontrado lá, incrustadas nas rochas milenares, peças metálicas com inscrições nas quais uma figura era frequente e aparecia sempre em destaque.
O detalhe que pôs Benedita em um estado misto de ansiedade, euforia e desconfinaça era que - surpresa! - a figura onipresente nos registros marcianos não era outra que não Saturno.
Agora, pensou a velha professora aposentada com seus botões, isto não pode ser coincidência.


VIDA INTELIGENTE NA NET:
http://www.omalditoescritor.com/2011/07/eu-sou-melhor-e-mais-bonito-que-o-seu.html
Jacqueline K
Enviado por Jacqueline K em 16/02/2012
Reeditado em 16/02/2012
Código do texto: T3501892
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