Muralhas - Capítulo 2 de 4: Prelúdio

Parte I - Antes da Morte

O buraco negro no centro de meu mundo cresceu, e agora domina todo o cenário. Não há mais uma teia de luzes, apenas pontos espalhados, distantes um do outro, flutuando em meio as trevas.

Agora tem início a parte mais difícil, de destruir as luzes mais resistentes e perigosas. Elas não irão se desfazer tão facilmente.

Eu me aproximo de uma das mais brilhantes, a única que ainda brilha no centro negro, a única a desafiar as trevas no centro de minha mente. Eu a observo enquanto me preparo para destruí-la, e começo a imaginar que memória tão poderosa ela poderia conter.

Quase sem perceber, eu me aproximo mais e mais, até a luz ser tão forte que se sobrepõe às trevas ao meu redor, e ela, então, começa a contar sua história. Foi um erro, mas é tarde demais, e eu deixo que ela me leve, incapaz de resistir ao fluxo de memória, que me arrasta cada vez mais para o passado.

Recordação: Eu tenho onze anos e uma criança para proteger. Seu nome é Lua, não seu nome verdadeiro, um que eu inventei para ela. Seu nome verdadeiro foi trocado por um número por aqueles que nos prendem, e ela não aceitou usar nem um, nem outro. Ela tem lágrimas nos olhos.

Lua ainda está assustada, ainda sente falta de seus pais. Foi apenas há dez dias que ela chegou aqui. Dez dias de silêncio.

Quando chegou, ela não dizia uma única palavra. Não demonstrava o menor interesse pelo que acontecia a seu redor. Quando colocavam comida na sua frente, ela se alimentava. O resto do tempo, ficava a olhar para lugar algum, sem se mover nem falar. Eu tentei perceber seus pensamentos, mas sua mente estava fechada em si mesmo, incomunicável, como se ela estivesse em coma, ou dormindo sem sonhar.

Nos primeiros dias eu costumava falar com ela, primeiro com palavras, fazendo perguntas, falando sobre minha vida, mas ela parecia nem mesmo perceber minha presença. Depois tentei lhe transmitir meus pensamentos, mas parecia haver uma muralha intransponível ao seu redor.

Seria simples desistir, não era meu problema, e seis anos prisioneiro haviam me ensinado a não me preocupar com problemas que não os meus, mas eu sabia exatamente o que ela devia estar sentido, já havia passado por isso, e eu não podia abandoná-la.

Ao final, sem falar com palavras ou minha mente, apenas prossegui, trazendo comida todos os dias, em um silêncio tão grande quanto o seu.

Eu não sei o que faria se ela continuasse assim, mas, por fim, hoje, aparentemente sem nenhum motivo especial, ela olhou para mim como se estivesse me vendo pela primeira vez, e começou a chorar. Ela tentou falar em meio aos soluços, mas as palavras não conseguiram se formar. Com um gesto, eu lhe pedi para ficar em silêncio, e através da minha mente lhe expliquei que as palavras não eram necessárias. Não entre nós e aqueles como nós.

Através de seus pensamentos, então, ela me contou sua história, e eu escutei sem interromper, sabendo que não era para mim que ela falava, mas para si mesma. Uma forma de iniciar o processo de cicatrizar suas feridas.

A história em si não me era estranha, não era estranha a nenhum de nós. Ela falou muito sobre seu pai e sua mãe. Diferente de mim, ela realmente os amava.

Eles descobriram que ela era diferente, descobriram que podia ler suas mentes. A teve falava muito sobre isso, sobre pessoas como nós, e como o governo tinha melhores condições de cuidar de nós e garantir que não feríssemos outras pessoas. Foi apenas mais fácil acreditar nisso que conviver com uma pessoa que poderia matá-los com apenas um pensamento mais zangado.

Lua ainda contou muitas coisas, não falando para mim, na verdade, apenas para si mesma. As lágrimas em seu rosto iriam desaparecer com o tempo. O ódio em seu coração iria permanecer para todo o sempre.

Uma luz brilha na minha frente, ofuscando meus olhos, e eu fico confuso, olhando ao meu redor, procurando pelo rosto de uma criança e só encontrando trevas. Aos poucos, a razão começa a retornar, e eu me lembro de que era apenas um sonho, uma recordação que deveria ter permanecido enterrada.

Eu reajo imediatamente, sabendo que, se hesitar, não terei forças para fazer o que deve ser feito, e a luz na minha frente começa a se encolher por minha vontade, até se reduzir a um único ponto, quase invisível, mesmo em meio a trevas tão absolutas. Mais um esforço e a lembrança desapareceria para sempre. Eu penso na lembrança que revivi. Eu olho para o pequeno ponto de luz.

Eu hesito duas, três vezes, no exato instante em que ia destruí-la, mas por fim decido permitir que ela continue existindo pelas poucas horas que me restam. Não passa de um pequeno ponto quase invisível, pequeno demais para ser notado.

Que diferença poderia fazer?

Parte II - Após a Morte

Eu faço perguntas, mas elas não recebem respostas adequadas, e minha curiosidade apenas cresce. Um homem sentado ao meu lado dirige um carro e tenta responder as minhas dúvidas, mas seu conhecimento é limitado e se revela inútil para os meus propósitos.

Eu pensaria que ele estava me escondendo informações, mas sua vontade está submetida a minha. Tudo que ele faz e pensa obedece meu desejo. Por minha vontade, ele responde perguntas, mas suas respostas não me agradam. Por minha vontade ele havia parado para que eu pudesse entrar no carro, e por minha vontade ele agora se dirige a uma cidade.

A viagem é longa, e eu fecho os olhos enquanto tento imaginar onde posso encontrar respostas. Minha mente se relaxa, e se espalha pelo mundo a meu redor, procurando alguém ou alguma coisa que possa responder minhas perguntas. Não há nada a encontrar, não ao meu redor.

Eu me volto para mim mesmo, procurando as respostas dentro da minha própria mente. Tudo que vejo são trevas. Algo está errado. Durante um instante, uma lembrança surge, uma imagem de milhares de luzes brilhando onde agora só existe a escuridão. A recordação desaparece antes que eu tenha certeza que ela existiu.

Em minha mente, inconscientemente, eu construo um corpo identico ao meu. Sob meus pés recém-criados, uma fina camada de pó negro, as cinzas do que aqui existiu. Eu caminho sobre ela, mas quando olho para trás, percebo que meus passos não ficam marcados.

Nas trevas da minha mente eu percorro uma jornada sem início e sem fim, caminhando através do nada, a procura de alguma coisa que tenha escapado da destruição. Procurando uma pista do que aconteceu, de quem destruiu minhas lembranças.

Eu procuro uma luz, mas não há luz alguma.

Por fim, eu paro. Me ajoelho no chão que não existe, no centro negro de lugar algum, disposto a desistir de minha busca. Estou prestes a retornar para meu verdadeiro corpo quando vejo uma luz cruzando o horizonte.

Eu corro, tentando alcançá-la. Quando me aproximo, seu brilho ofusca meus olhos, queima minha pele. Eu a toco, e meus dedos ardem. Eu ignoro a dor, e torno a luz o centro de minha existência.

Na luz se forma o rosto de uma pessoa, uma criança. Na luz flutuam sentimentos e emoções conflitantes, mas a tristeza é dominante.

Na luz se esconde uma história. Eu não consigo me aproximar o suficiente para ouvi-la.

A luz queima minha mão até me forçar a largá-la. Livre, ela foge para longe, desaparecendo na escuridão.

Eu fico só.

Nas trevas.

Parte III - Atrás das Muralhas

Eu estou sentada numa cadeira, olhando para a chuva que cai além da barreira de mentes, recordando épocas distantes, anteriores a muralha. Anteriores a traição daquele cujo nome não é mais pronunciado. Uma tempestade se forma além da janela.

Eu tive um sonho, e pensei que estava sonhando com ele, mas não era realmente ele. Eu estava sonhando com a morte.

Desde que acordei, eu tenho tentado me convencer que era apenas um sonho, que não havia nenhum significado maior. Agora já sei que não vou conseguir me enganar mais. Eu vi pela janela a tempesta que começa a se formar.

Eu só vi a tempestade uma vez, durante nossa guerra, quando tudo parecia perdido. Quando nenhum de nós ainda tinha esperança. Exceto ele. O traidor.

A tempestade surgiu sem aviso algum, e durou apenas algumas poucas horas, mas nessas poucas horas o mundo estremeceu, e todos, inclusive nós e nossos inimigos, se encolheram de medo. Apenas ele não demonstrava medo algum, mas ele nunca demonstrou medo.

Não era uma tempestade comum, e quando ela terminou, por alguma razão que nunca entendi, nós já não estávamos certos de nossa derrota. Nossos inimigos já não estavam certos de sua vitória.

Eu sempre imaginei se haveria alguma relação entre ele e a tempestade. Agora, eu sei.

A história se repete. A tempestade se forma novamente, e quando ela desabar, todas as criaturas vivas tremerão de medo, exceto ele. Só há uma diferença. Dessa vez ele não está do nosso lado. Por alguma razão, ele optou por trair a todos nós.

Seu nome foi proibido de ser pronunciado. Mas ele não foi esquecido.

Sua traição teve relação com a muralha de mentes que agora me protege, isso eu sei. Tudo começou depois que a barreira foi erguida, nos últimos dias da guerra, quando muitos desejavam minha morte.

A muralha que deveria manter meus inimigos afastados teve o mesmo efeito nele. Cada vez que nos víamos, dentro dos muros invisíveis, ele estava mais distante, mais longe de mim. Um dia ele não mais voltou. Outros me informaram que ele havia se aliado a nosso inimigos, aqueles contra quem ele até então havia lutado.

Com o tempo meu povo se mostrou mais determinado que a humanidade, e nossos pais e irmãos tiveram que se render e aceitar a derrota.

Ele não aceitou. Ao final, estava sozinho. E sozinho continuou sua luta.

Seu fim estava próximo, inevitável. Nosso poder sobre a humanidade é cada vez maior, cada vez menos lugares ele tem para se esconder. Todos sabiam que sua derrota era inevitável, exceto ele.

É por isso que eu o temo, porque sei que a muralha invisível, sustentada pelas mentes dos melhores entre o nosso povo, não conseguirá detê-lo, pois nada até hoje conseguiu. Eu o temo porque sei que ele ultrapassará todos os obstáculos em seu caminho, e virá até mim , exatamente como no sonho que sonhei.

Eu o temo porque sei que quando olhar seu rosto eu hesitarei, incapaz de matá-lo, pois ainda o amo.

Eu o odeio porque sei que ele será.

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Ashur
Enviado por Ashur em 14/08/2011
Reeditado em 14/08/2011
Código do texto: T3158893
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