Muralhas - Capítulo 1 de 4: Despertar

Parte I - Antes da Morte

Eu observo minha mente, enquanto flutuo em seu interior. Escura, iluminada por infindáveis pontos de luz, ela se assemelha a uma cidade, a noite. Cada ponto uma parte de mim, uma emoção, uma lembrança. Um sonho.

Outrora uma teia, os pontos de luz encadeados, cruzando o infinito de um extremo a outro. Uma rede perfeita.

Não mais.

As lembranças mais antigas, que brilhavam de forma mais intensa e mais pura, desapareceram, apagadas como se nunca tivessem existido. A escuridão parte do centro e se espalha deixando uma trilha de luzes extintas, marcando os lugares onde eu já passei.

Eu tento não pensar em quanto já perdi, quantos momentos preciosos de minha vida já desapareceram para sempre. Tento ignorar o medo e a tristeza. Não posso hesitar agora, não depois de todos os sacrifícios.

Ainda há muito a fazer.

Eu me aproximo de uma das luzes mais brilhantes entre as antigas, as próximas do centro agora negro, e me deixo envolver por ela antes de destruí-la, mergulhando em lembranças esquecidas de um passado distante.

Há aqueles que acreditam que na hora da morte, vemos toda nossa vida passar na nossa frente. Para mim é a simples verdade.

Recordação. Eu tenho cinco anos e uma irmã que foge de mim chorando. Meu pai se aproxima correndo, atraído pelo seu choro, e eu vejo em sua mente uma mistura de ódio e medo. Sua mão me atinge no rosto, aberta, mas com força bastante para me jogar ao chão.

Minha irmã se agarra nas pernas de meu pai, sangrando pelo nariz, chorando. Ela tinha me empurrado e eu respondi ferindo-a, usando minha mente como uma arma, sem perceber o quanto poderia machucá-la. Sem perceber ou sem me importar, já não saberia dizer.

Minha mãe se aproxima e percebe o que está acontecendo assim que nos vê, talvez por sempre saber que isto iria acontecer. Em gritos altos o bastante para superar o choro de minha irmã, ela discute com meu pai.

Eu não preciso prestar atenção para saber. Não preciso ouvir meu pai dizendo que eu não posso ficar, que sou um perigo para todos. Não preciso ver minha mãe, confusa e incapaz de responder, enquanto meu pai segura a cabeça de minha irmã para mostrar seu rosto sujo de sangue e dizer que eu tentei matá-la. Ele me chama de monstro.

Eu fiquei todo o tempo parado, imóvel, no canto onde caí, observando-os, com os dedos de meu pai ainda queimando em meu rosto, as marcas de sua mão ainda visíveis. Eu olho pela primeira vez para minha irmã e percebo, mesmo antes de examinar sua mente, que por dentro ela esta rindo. Por fora ela ainda chora, e de seu nariz ainda escorre sangue.

A discussão termina com lágrimas nos olhos de minha mãe e alegria nos olhos de minha irmã. Eu fico trancado em um quarto por todo o dia, e a noite mamãe vem falar comigo, dizendo que vão me levar para um lugar onde existem outros como eu, e onde eu serei feliz. Ela diz que nem ela, nem meu pai, jamais deixarão de me amar. Ela fala com tanta sinceridade que, por alguns instantes, chego a pensar que ela acredita no que diz.

Quando sai, seus olhos estão vermelhos e seu rosto está de novo sujo de lágrimas.

Acho que ela esperava que eu também chorasse.

Ao amanhecer homens vestindo o cinza do governo vão até minha casa e me levam para um carro cinza, sem se darem ao trabalho de contarem mentiras. Eles sabem que não podem me enganar.

Na porta da minha casa, minha mãe acena uma despedida, mentindo para si mesma que eu estou em boas mãos. Na janela de seu quarto, minha irmã olha para mim, e sorri. Eu não olho para nenhuma das duas.

Tenho cinco anos, e meu pai me chamou de monstro.

Eu me afasto de uma luz que se apaga, e esqueço uma lembrança que desaparece. Gostaria que não fosse tarde para chorar.

Parte II - Após a Morte

Eu abro os olhos e olho ao meu redor, mas nada vejo. Há cores que se misturam à minha frente, formas que se movem, sons ao meu redor. Emoções me percorrem sem me tocar. Mas não há nada que tenha significado.

Eu me levanto de onde estava ajoelhado, percebendo pela primeira vez que chove em mim. Algo está errado na sensação da chuva, como se eu não estivesse realmente aqui, e não fosse a mim que ela tocasse. Como se fosse uma recordação, a memória de que um dia a chuva me tocou.

Eu tento descobrir o que exatamente está errado, o que fez tudo perder significado. Tento lembrar como deveria ser a sensação da chuva tocando meu rosto. Eu tento lembrar, mas não há nada em minha mente, nada além do vazio.

Nada além do nada.

Uma pergunta então surge em mim. Eu falo, em voz alta, e o som de minha voz é estranho, como se eu ouvisse pela primeira vez. Eu me pergunto quem eu sou.

E então eu sei a resposta.

A resposta é o vazio. O silêncio. A resposta é que eu sou nada.

A resposta é que eu já estou morto.

Eu sou a morte.

Parte III - Atrás das Muralhas

O dragão se aproxima. Ele tem um hálito de fogo que queima tudo ao seu redor, garras gigantescas que rasgam os corpos de seus inimigos, e dentes brancos acostumados ao gosto de ossos humanos. Ele tem ódio em seus olhos e não pode ser detido. O dragão é a morte.

Isto não assusta aqueles que me protegem, e eles não hesitam em confrontar o monstro para proteger sua senhora, sacrificando suas vidas numa vã tentativa de vencer quem não pode ser vencido.

Horrorizada, eu vejo o primeiro entre os que me defendem ser jogado para longe com a cabeça separada do corpo, após um único golpe do dragão. Um a um, eles caem ante o poder da criatura, incapazes sequer de retardar seu avanço.

Em instantes, ele está em minha frente, sem mostrar nenhum ferimento pelo combate, mas, pelo contrário, mais forte e poderoso, como se o sangue alimentasse seu corpo, as mortes alimentassem sua alma.

Minha vontade é fugir e me esconder, reconhecendo que não posso lutar contra aquele que não pode ser vencido.

Eu não fujo.

Eu não estou indefesa.

Seu primeiro golpe é tão rápido que só o vejo depois de ser atingida. Ossos se quebram em meu peito e eu cuspo sangue. O segundo golpe rasga a pele de meu rosto e cega um de meus olhos. O dragão ergue a pata direita, com as garras escorrendo sangue, e depois me atinge com ela. Suas garras arranham minha alma, mas ao final do terceiro golpe eu ainda estou de pé.

E ainda não estou vencida.

Eu conjuro uma espada feita de cristal, e corto sua pata esquerda com ela. Ele recua e deixa escapar um grito, mais de surpresa que de dor. Do corte escorre ácido que queima o chão em que toca. A morte pode ser ferida.

Eu me aproximo e ele tenta me atingir com o braço que lhe resta, mas eu me desvio e corto uma de suas pernas. O dragão cai no chão, agora pequeno e indefeso, e eu ergo minha espada para o golpe de misericórdia.

Tudo que tenho a fazer é fechar os olhos, ou talvez olhar para o lado, baixar a espada com toda a força sobre a criatura, matando aquele que não pode ser morto, e o pesadelo terminará.

Eu não tenho força para desviar o olhar. Seus olhos são os olhos do dragão, mas seu rosto é o rosto de um homem. Do homem que deveria ter sido esquecido.

Eu sei que preciso matá-lo, sei que ele não é o traidor, o do nome que não pode ser pronunciado. Eu sei que ele é o dragão. Eu sei que ele é a morte. Mas eu hesito.

É minha derrota.

Ele ataca, e seu quarto golpe atravessa com as garras meu coração e minha alma, destruindo um e outro, e tomando minha vida.

Eu grito. Meu grito me desperta. Mas não há alívio, nem qualquer certeza que o pesadelo tenha terminado.

A porta do quarto se abre, e aqueles que me protegem se aproximam, temendo por minha vida.

- Foi um pesadelo? - Um deles me pergunta.

- Não. Mais que isso. Ele. - Minha cabeça dói, eu tenho frio e sinto um gosto de sangue na minha boca, mas não é por nenhuma destas razões que eu estou tremendo.

- Você acha que...

- Eu tenho certeza - Eu o interrompo antes que ele termine, pois sei o que ele ia dizer. - Ele está vindo.

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Ashur
Enviado por Ashur em 13/08/2011
Reeditado em 14/08/2011
Código do texto: T3158573
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