Abbëdria e Yipô

Sob a Lua se escondia Yipô, a noite em sua mais tenra existência. Contavam histórias acerca desta forma em movimento, alguns diziam que não tinha rosto, que nada mais era que um corpo sombroso e assustado, sempre fugindo da luz e dos olhos humanos. Era soturno e escutesse som que fosse, de vozes à ginchares, corria e se escondia no breu criado por ele próprio, pois assim narravam os velhos: a escuridão era sua capa. Yipô era, antes de qualquer coisa, uma expressão vívida da Solidão e tinha pouca desenvoltura. Constantemente tropeçava no desfortúnio, ao que se considerava bom conhecido do azar que andava em seu encausto. O destino lhe reservara a má sorte e contra isto nada havia que fazer.

Yipô, ao contrário do que postergavam em histórias infantis, tinha uma casa. Tertezi, em I´vëru. O buraco do esquecimento viria a ser chamado de casa pela Noite e nele Yipô dormia por grande parte de sua vida monótona. Mas seus dias não se resumiam à hibernação. Saía a vagar vez ou outra quando Amir transbordava sua luz timidamente em noites invernais. Ele detinha fascínio por terras ermas, mas sempre se ausentava em pântanos, regiões tão desprezadas quanto seu nome. Nelas suas atividades se resumiam a caminhadas entre as torsas das árvores, a descoberta de buracos de animais rasteiros e a submersão em lagos, onde pescava. Logo descobrira que os peixes locais eram pouco apetitosos— apesar de ele próprio não ter apreço por sabores. Deixara, por fim, de matar os pobres animais para olhá-los nadar entre suas pernas ou encarar os olhos esbugalhados sob a água. Era tedioso, mas tolerável.

Certa vez, Yipô descera os vales de I´vëru em diração à Adeeiron, na periferia de Ellrur. Já aproximava-se do ápice notuno quando erguera os olhos. Vira uma inesperada rachadura no céu, constatando que aquela era uma noite de Tríade, rara ocasião em que as três Irmãs Chaban, filhas de Amir, encontram-se com a mãe no céu noturno. Yipô se esquecera da ocasião que inegavelmente trazia fartura aos olhos, mas em consonância anunciava festividades por todas as florestas. Adeeiron não haveria de escapar. Apressara os passos, na esperança de alcançar as sombras do pântano antes que verdejantes criaturas saltitantes o pisoteassem.

Alcançara as terras abandonadas, se abrigando sob os braços em ninhal de uma velha árvore. À frente Adanânces atravessavam a trilha carregando comes e bebes. Algumas despojavam seus corpos humanos, outras se vestiam com as longas cabeças de garça.

— Este lugar precisa de um toque de flores— disse uma fadinha arborista, ao que as amigas sorriram. Carregavam buqueres no ar.

Yipô consternou-se ao avistar um chamuscar crescente em sua direção. Eram Chongos com suas lanternas. Guiavam os convidados eufóricos. Cantavam e dançavam, trazendo rebuliço à mata. As árvores despreguiçaram-se, torcendo as raízes. Yipô quase fora amassado pela Domézia na qual se escondia, mas alertou-a de sua presença com um muxoxo.

— Que faz aí?— sussurou a árvore.

Yipô suspirou profundamente— Estou evitando grandes comoções, Abraçadeira— disso ao que se recostou na árvore e cochilou.

As três Chaban já ocupavam o centro do céu quando cochichos o despertaram. Uma luz folgosa crescia entre as árvores, acompanhada por vozes. Foi quando avistou a fonte da luz. Pois que grande beleza enxergou, despojando vestes brancas e leves, levadas ao mais envergonhado vento. Tinha sobre a cabeça uma coroa de estrelas a guiar-lhe pelo caminho. Yipô olhou com incredulidade a pele onde vivia um tênue brilho e, mais estupendos que o luar pálido, os olhos ensolarados e preenchidos com uma alegria desconhecida. Levantou-se. Podia escutar melhor a voz da mulher.

— É a voz de um anjo— a Abraçadeira falou, ao perceber o interesse da Noite.

— Hum— concordara, percebendo que as palavras lhe fugiam.

— Não está sozinha.

Yipô apertou os olhos. De fato a mulher era acompanhada.

— É outra adanânce— disse a Noite, desanimada.

— Por que estás triste?

— Carrego certo desapreço por adanânces. São manipuladoras e vaidosas. Quem as suportaria?

— Ora, ora. Alguém está muito interessado. Adanânces, ao que sei, não usam coroas de estrelas, Yipô.

— Que seja— murmurou, dando as costas à cena— Não é como se estivesse em posição de sentir qualquer coisa.

— Bobagem! — a árvore ainda assistia a cena e agora a narrava— Elas pararam. Mas que coisa. Veja, veja. Estão deixando algo para traz.

Yipô virou-se— Uma sapatilha de seda. Por que fariam isso?

A Noite deixou a árvore e tentou se aproximar. As duas mulheres falavam em segredo.

— Sabes que não concordo com esta façanha, Abbëdria.

— Preciso o fazer. Que outra forma encontrarei de descobrir a alma que me é destinada? Estou impedida de visitar estas terras.

— Magia e amor são duas coisas que não devem andar juntas.

— Que poderia dar errado? É simples.

— Achas mesmo que sua alma gêmea encontrará o objeto? E o que ela estaria fazendo aqui, neste lugar fétido?

— Ela pode estar em qualquer lugar, assim disse a velha Siópilos.

— Pode demorar séculos.

— Esperarei na eternidade. Agora, peço apenas que visite os locais vez ou outra para constar se alguma das sapatilhas desapareceu.

Yipô voltara à árvore.

— E então, que estavam falando?

— Algo acerca de uma sapatilha mágica.

— Mágica? Por isso eu mesma não pude enxergá-la. Só isso?

— É... Parece que seu amor verdadeiro será o único capaz de ver o objeto.

A árvore sorriu abismada— Mas tu não viste a sapatinha?

A Noite assentiu.

— Ora, Yipô. E o que entendes disso?

Caixa de palavras:

1. Torsas: passagem entre árvores.

2. Amir: Lua

3. Tríade Luar: Encontro de Herne, Serne e Erne no céu.

4. Ápice Noturno: Momento em que a Lua (as Luas) ocupa o centro do céu (equivale à meia-noite).

5. Domézia: Também chamada de árvore abraçadeira, é uma espécie solitária, conhecida por seus galhos que se fecham, escondendo seu tronco, como se abrassasse a si mesma.

6. Yipô: Noite.

7. Abbëdria: Dia.

8. Adanânces: mulheres que se transformam em garça. Possuem poder de cura, mas a medida que usam este poder envelhecem.

9. Chongos: Extensões de árvores. Servem para capiturar almas que perderam seu corpo e as entregam como alimento às mães das florestas. Também são guias florestais.

Lyadri Pondraci
Enviado por Lyadri Pondraci em 24/02/2024
Código do texto: T8006386
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