COLEÇÃO SANGUE ESCRAVO _ PEQUENA CAÇA

''E por mais que tentasse reter o fluído que o mantinha vivo, ele o via escorrer por entre seus dedos. Não conseguia conter nem uma gota daquele precioso líquido.''

Rafael Ferret saía do estaleiro de uma das fluentes do Rio Negro, situada em Manaus. Onde fora avaliar as embarcações fluviais que adquirira para injetar no pacote turístico de seu mais novo empreendimento, o Resort Verão. O resort mais procurado da região.

Ele ia acompanhado de seu assistente Igor, e fechara a compra de mais duas embarcações.

E apesar de Igor não ter concordado com tais aquisições, por estarem precisando de tantas reformas que ultrapassaria o limite pré-estabelecido do orçamento, ele não se atreveu a protestar. Conhecendo Rafael, era melhor não discordar.

Eles deixaram Neguinho do Estaleiro, trazido diretamente da Bahia para o Amazonas, iniciando o trabalhando das restaurações. Apesar dele ser a pessoa mais preguiçosa que havia na face da Terra, era também o melhor perfeccionista em seu trabalho. Só por isso ainda trabalhava com Rafael, e também porque conhecia a condição de sua família.

Eles iam caminhando através da feira de peixes que ficava próxima ao estaleiro, enquanto Rafael lia com atenção a lista do material necessário para colocar as embarcações aptas ao funcionamento. Por isso, ia distraído da muvuca que estava acontecendo à sua volta. Quando, de repente, foi tomado por uma fragrância que chamou sua atenção.

Era o cheiro do seu néctar favorito, do fluido que o mantinha vivo. O sangue!

Mas não era um sangue qualquer, era um específico. O qual tinha características únicas para despertar a fera que consumia sua alma, que ditava os seus impulsos, que o cegava a ponto de torná-lo letal.

Quando nos referimos ao fluido em questão, logicamente entendemos que todos tenham semelhanças entre si. Como na viscosidade, na cor: vermelho vivo, no odor: metálico ferroso. Pois sangue é sangue.

Todavia, para órgãos sensoriais sensíveis como os de Rafael. Que eram capazes de captar qualquer minúcia de odor no ambiente, a fragrância que sentira, era a mistura de todos os odores que exalavam do recipiente que o mantinha.

E quando o sangue é misturado a outros odores dos fluidos exalados pelo corpo humano ao qual ele esta contido, torna-se único. Uma identidade olfativa.

Mesmo que, qualquer sangue pudesse servir para mantê-los vivos, havia um cheiro certo para cada um de sua espécie. Um que despertava não só seus sentidos olfativos como os gustativos, causando ânsias e desejos. E aquele cheiro que o atingira era extremamente raro, exclusivo para o seu deleite. E era tão intenso que conseguia se sobrepor aos odores fortes dos pescados. E tão atraente que sentiu-se compelido a descobrir a quem o pertencia.

Deu a volta procurando a fonte. Inclinou levemente a cabeça para o lado e fechou os olhos para apurar seus sentidos. Aspirou fundo. E o perfume delicioso penetrou em seus pulmões embebedando-o. Seus ouvidos localizaram o coração que impulsionava aquele líquido. O som do baticum no peito deu ritmo ao seu destino.

Abriu os olhos.

Era como se o cheiro ganhasse consistência e seguia ondulando através da feira. E lá estava ela, a fonte de onde vinha aquele aroma perturbador.

Igor não entendia que diabos havia acontecido a Rafael para começar a agir daquele modo tão estranho. Porém, como sempre, não interferiu em suas ações. Dado o seu conhecimento sobre o temperamento instável de seu patrão, melhor seria seguir só observando-o.

E o problema parecia ser uma menina.

Ele percebeu quando Rafael focou nela toda a sua atenção. E isso o deixou preocupado. Afinal de contas, eles estavam em uma área pública, em plena luz do dia. E por suspeitar o porquê Rafael estar agindo daquele jeito, isso o deixou ainda mais apreensivo.

A menina era muito nova, deveria ter entre seis a sete anos. Não tinha certeza. Era difícil determinar a sua idade. O que era ainda mais preocupante. Pois, apesar de Rafael ter muitos defeitos, ele sempre fora muito sútil em suas caçadas. E jamais... jamais se tratando de crianças.

Igor acompanhava-o de uma certa distância, sem saber se poderia fazer algo para ajudá-lo. A situação era tensa com certeza. Aquela menina tinha sido marcada, e se tornara um alvo para ser caçada pelo predador mais perigoso da face da Terra... Rafael.

Felizmente, ninguém à sua volta notara que uma criança estava sendo seguida por um maniaco assassino. Mas nem por isso deixava de ser um momento tenebroso.

Ela o atraiu como um imã. Rafael deslizava entre as pessoas que se movimentavam entre as barracas da feira. Ele não via ninguém, e se aproximava lentamente com os olhos focados em sua caça. Suas presas roçava levemente seu lábio inferior, chegando a feri-lo. E, inconscientemente, sugava o seu próprio sangue sem tirá-la de suas vistas um só segundo.

O homem que a levava pela mão deveria ser seu pai. Ele deduziu pela maneira protetora como a guardava.

Eles pararam em uma barraca. Rafael aproveitou essa deixa para se aproximar mais. Mas, nesse exato momento, seus olhos se cruzaram. E alguma coisa que a menina viu, a deixou assustada.

Rafael parou no meio do movimento. Como um predador à espreita, preste a atacar. E ao observá-la, ele notou seus traços físicos pela primeira vez.

Tratava-se de uma descendente indígena. Seu cabelo reluzente preto-azeviche era comprido, sua pele era de uma tonalidade acastanhada, sua boca era pequena e seus olhos amendoados eram negros; mas se via um rastro de outra cor em sua iris. Um cintilar... azul? Talvez fosse apenas um reflexo. Mas não. Havia realmente um toque azulado. Exótica. Bela! E se deixou cativado por um momento. Preso naquele negro olhar. Mas um contravento o despertou. Foi atingido mais uma vez pelo cheiro e se viu novamente envolvido pelo desejo. E sem controle dos seus atos, a língua de Rafael flutuou entre seus lábios.

Ele a queria. Precisava diminuir a distância. Ela estava a dois passos. Havia muita gente à sua volta, mas se ele fosse rápido... Seria como uma lufada. Ela simplesmente desapareceria da mão de quem a protegia... Da feira... Da vida...

Mas se houvesse qualquer empecilho, ele não responderia por seus atos. Muitos poderiam sofrer as consequências. E com certeza, aquele pai teria que ser eliminado.

Já estava tudo arquitetado. A sua mente ia inconsciente planejando cada movimento, estabelecendo limites, eliminando obstáculos. E por fim, ele a teria. De uma maneira ou de outra.

Ele estendeu uma das mãos... Igor o segurou.

Ele ainda tentou se desvincilhar de seu assistente e estendeu a outra mão em direção a pequena, mas Igor tesou em seu braço. Isso o enfureceu. Seus lábios se retraíram e suas presas se salientaram em um rosnado de advertência. Mas apesar da tensão do momento, Igor insistiu em segurá-lo. Rafael piscou. E como que despertado de um sonho, seus olhos serraram ao ver a sua caça se distanciando.

De seu peito saiu um rugido abafado que marcou o momento. Igor ficou tenso.

Rafael era rigoroso com quem atrapalhava suas decisões. Mas para sua surpresa não houve retaliações. Ele caiu em si.

Não poderia pegar aquela menina simplesmente como se não existissem regras a serem seguidas. Não. Eles não podiam mais tomar as pessoas como antigamente, porque eles já não eram mais como os seus ancestrais. Eles não eram mais como meros animais.

– Sr. Rafael, por um segundo eu pensei... Está tudo bem? – Igor perguntou, assim que notou diminuir a tensão em seus músculos. Mas estava temeroso. Temia a represália, mas ao mesmo tempo estava preocupado com Rafael. Conhecia-o. Ele nunca teria se perdoado se alcançasse seu objetivo.

– Tudo bem, Igor, – disse Rafael, colocando a mão no ombro de seu assistente – obrigado por me chamar a razão. Mas foi por pouco... muito pouco – disse ele consternado.

Antes, eles foram chamados de “vampiros”. Mas eles eram muito mais do que uma lenda. Eram uma espécie evoluída. Bebiam sangue? Sim. Precisavam. Mas, nos tempos atuais, viviam em meio aos humanos como qualquer outro cidadão civilizado. Porém, as suas verdadeiras identidades fossem invisíveis para a sociedade. Pois seguiam as normas de sua Comunidade, a do Sangue Escravo, para caçar. E só assim, podiam viver com liberdade.

E uma das normas, referia-se a idade estabelecida pela Comunidade para caçar. A captura de seres humanos para satisfazer suas necessidades biológicas. Pelas normas, não poderiam tomar nenhuma caça de menoridade.

Entre quinze a dezoito anos, seria preciso ter a tutela legal. Pois, só de posse da guarda desses menores poderiam subjugá-los à sua vontade. Por isso, era quase inexistente a caça de humanos com idade inferior aos dezoito anos. Porque era muito complicado.

E abaixo dos quinze anos o sangue era totalmente proibido.

Existia um esquadrão ante trafico do sangue infantil, que era usado como uma droga poderosa e viciante. Pois quando consumida entre os integrantes da Comunidade levava os usuários ao desespero, a ponto de se tornarem instáveis, imprevisíveis, agressivos. Capazes de matar uns aos outros sem motivo, quanto mais os humanos. E matar humanos era algo fora de cogitação. Só em extremo caso. E por causa dessa atitude, não era mais aceitável o consumo do sangue dos pequenos vulneráveis. Pois as consequências que essa droga provocava, colocava-os em evidência, tornando-os visíveis. Podendo desencadear uma luta pela sobrevivência. E isso era desnecessário.

Por isso o sangue infantil fora proibido.

Contudo, como tudo que é proibido, o sangue infantil se tornara alvo de extremo interesse. E por mais que fosse combatido o trafico da curiosa droga, ela era comercializada por baixo do pano, no câmbio negro.

E Rafael era um dos responsáveis por essa frente de vigilantes que atuava na captura e punição dos monstros que traficassem crianças ou usassem o sangue delas para ganhar dinheiro, e de qualquer usuário. E quem fosse pego cometendo esses tipos de delitos, considerados gravíssimos, poderia ser sentenciado à morte.

Então, dava para imaginar o desespero de Rafael quando ele percebeu que a caça, que ele tanto desejava, estava fora de seu alcance. E sentiu na pele o desespero que sentiam os viciados, mesmo sem ter experimentado uma gota daquela droga.

Imagina se ele tivesse conseguido alcançar seu objetivo?

– E agora, Sr. Rafael, o que faremos? – perguntou Igor, preocupado com o semblante pesado do patrão, que continuava observando aqueles olhos negros-azulados se distanciando. Nunca o vira tão taciturno.

Inconformado com a situação, Rafael percebeu que naquele momento nada poderia ser feito para aplacar sua cólera. Apesar de que, sua vontade fosse de capturá-la a qualquer custo. Mas ele não poderia ir de encontro aos seus próprios princípios, que era nunca pôr em perigo uma criança. E naquele momento ele era o perigo. Um assassino... O monstro.

Nos próximos segundos que se seguiram, ao vê-la ir embora pelas mãos daquele homem que a protegia, ele teve que lutar consigo mesmo.

Parecia um pesadelo.

Nunca pensou como aquilo poderia ser tão dolorido.

– Tenho que admitir, esse foi o maior desafio que já enfrentei em minha vida. – Rafael respirou fundo, desconsolado – Vamos, Igor. Temos um trabalho a fazer. Às vezes, é necessário admitir quando perdemos uma batalha – Rafael engoliu o orgulho ferido, respirou fundo e deu às costa para a caça mais preciosa que já encontrara.

Jussara Pires
Enviado por Jussara Pires em 18/02/2024
Reeditado em 20/02/2024
Código do texto: T8001545
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