"Odnan e o gelo filosofal"

Odnan era um jovem inquieto, que tinha uma sede insaciável de conhecimento. Consumia livros de forma voraz, como se fosse um beduíno bebendo o último litro de água gelada e cristalina no deserto. Não se contentava com uma explicação, queria saber outras versões sobre o mesmo assunto, outros prismas, outras vertentes. Muitas vezes tirava a sua própria conclusão, mas, por várias vezes, as dúvidas o afligiam. Até que num momento de transe sobrenatural, seu subconsciente materializou um gênio bem na sua frente, ao lado da prateleira de livros e do computador...

Fala, Odnan, o que você quer?

Quem é você?

Sou um gênio, tipo daqueles da lâmpada, mas nem venha fazer três pedidos. Comigo é apenas um, e fala logo que eu não tenho tempo a perder...

E-eu... E-eu... Eu quero ter o conhecimento pleno de tudo!

Toma. Este é o gelo filosofal, e, como todo o conhecimento adquirido, ele não se derrete, a não ser que eu tenha que intervir. Toda dúvida que você tiver, toque no gelo e teu subconsciente lhe trará, automaticamente, a resposta.

Sé.. sério?

Odnan fez um teste. Pensou qual seria a raiz quadrada de 3.908.529. Rapidamente o número 1977 apareceu em sua frente. Pensou na capital de um país desconhecido: Tuvalu. Como num passe de mágica, o nome Funafuti soou em seus ouvidos. Ficou maravilhado! Carregava o gelo filosofal consigo por todos os lugares, sem abandoná-lo por um segundo sequer.

E assim Odnan tornou-se um adulto respeitado por tamanha sabedoria. Prestava consultorias empresariais, governamentais, consertava rádio, casamento, garapeiras e reatores nucleares.

Fez fama, fortuna, viveu numa correria desenfreada movida pela vaidade de quem tudo sabia. Até que no aniversário de 42 anos, numa crise de meia idade, começou a pensar na morte. O que viria depois dela? Largou trajados a rigor no saguão de sua mansão, e para se concentrar na resposta, tocou o gelo filosofal. Obteve meia resposta: "Só Deus sabe. Mas você pode recorrer a alguns livros e até a algumas pessoas para tentar uma resposta que o convença. Caso contrário, só morrendo mesmo, para saber, de fato".

Desesperado, abriu a Bíblia sagrada, que dizia que as almas permaneciam adormecidas até à volta de Jesus, aguardando o julgamento final. Não contente, recorreu à literatura Kardecista, que dizia que os espíritos desencarnavam procurando evolução constante. Mandou uma mensagem para um amigo ateu, que disse que após a morte, nada mais acontecia, e que este era o fim da linha.

Três versões diferentes para um mesmo assunto. E deveriam ter mais respostas dentro de outras culturas, outras religiões. Percebeu que não tinha o conhecimento pleno, que não sabia de tudo! Atônito, abriu o cofre e empunhou a arma que tinha adquirido legalmente por ser "colecionador". Só passando para o outro lado da vida é que teria a resposta, de fato...

Eis que um sujeito estranho, penetra da festa, entrou no quarto trajando smooking e bebendo uísque. Suas mãos quentes como lava de vulcão derreteram o gelo filosofal em um milésimo de segundos.

Tua ambição por conhecimento já foi longe demais, alcançou o patamar da heresia! Recolha-se à insignificânca de um mortal comum...

Houve um fenômeno neurológico no cérebro de Odnan, como se fosse uma diminuição nas descargas elétricas. Uma contração sensorial, uma espécia de "Big Bang cerebral às avessas". Ele manteve-se culto, articulado, mas dentro dos padrões normais de alguém que construiu o conhecimento, e não o adquiriu repentinamente. Bebeu, dançou e comemorou o aniversário de 42 anos.

Enquanto isso, o velho gênio que trajava smooking e bebia uísque aguardava o Uber no portão principal da mansão de Odnan: Era hora de partir para nunca mais atender os desejos de nenhum humano megalomaníaco. Ele também aprendeu uma lição genial, por incrível que pareça...

* O Eldoradense