A FUGA (Dez ciclos atrás...)

“No coração das Trevas, agonizam no poço as almas

Uma tênue luz surge, uma inusitada fuga urge” –

Segundo Livro das Profecias – Cap. 1:1

Qualquer ruído de pedras ou ossos sendo levados pelo vento seria suprimido pelos gritos de desespero vindos do enorme calabouço ao centro da Cidade Morta. Aquilo que poderiam ter sido casas, não passavam de escombros. Um cemitério urbano. A morte serpeava pelos ossos e agitava as mortalhas espalhadas pelas ruas. Acima de todo este horror, enormes corvos voavam em círculos. Aguardavam ansiosamente mais uma refeição que logo seria despejada da casa mortuária.

Os limites da cidade não eram definidos e tampouco havia muros ou pontes uma vez que ninguém seria louco o suficiente para tentar invadi-la. Um caminho se estendia fora da urbe negra. Era uma via arterial que ligava a Cidade Morta ao restante do Reino Oblivius.

Longe das dolorosas lamúrias do calabouço, podia-se ouvir uma carruagem que lentamente se dirigia para a cidade sem vida. À frente dela, quatro cavalos negros avançavam em direção ao seu fúnebre destino. O cocheiro, um cavaleiro espectral, conduzia calmamente os prisioneiros, ou melhor: os espólios de uma guerra não travada. Sua armadura negra opaca intimidava tudo ao seu redor. Uma áurea pesada e entorpecida envolvia-o

Pouco antes de adentrar a sombria urbe, um dos quatro cavalos mudou sua direção e sua guia enroscou em uma das rodas laterais. Não houve tempo para reagir. A carruagem tombou violentamente. O cocheiro, deitado no chão e ainda absorto em sua calma viagem, levantou-se e desembainhou sua enorme espada. Uma luz cinza e opaca emanava dela. Somente os cavaleiros espectrais possuíam tais armas.

O cavalo errante contornou a carruagem e deteve-se em seu interior. Em pouco tempo, de modo muito ligeiro, debandou para o caminho inverso, carregando um homem e seus pertences.

O cavaleiro que a tudo assistia indiferente, bateu fortemente sua espada contra sua armadura emitindo um zumbido sinistro. No mesmo instante, os cavalos restantes puxaram a carruagem colocando-a novamente em pé e um deles cavalgou em direção ao cavaleiro. Ao embainhar sua espada, os dois cavalos restante retomaram seu caminho rumo ao calabouço.

Já próximo à entrada do reino, o fugitivo ergueu um objeto luminoso que abriu uma passagem. Ao atravessar o portal, o cavalo negro desvaneceu-se. Aos poucos a passagem começou a se fechar. Antes de sumir por completo, um vulto cinza atravessou o portal e o fez se abrir novamente.

A escuridão da Cidade Morta foi substituída por um profundo azul emanado das águas que banhavam os limites do Reino Polarus. O homem, já sem o cavalo negro, corria no denso chão de neve. Quase sem fôlego e segurando uma bolsa, marcava seu caminho com uma trilha de sangue. A espada cinza o atingira nas costas.

Sem se dar conta, estava perante o enorme cavaleiro espectral.

Com apenas um movimento curto de mão, o enorme ser deferiu outro golpe na perna do homem que, de joelhos agonizava de dor.

De repente, ouviu-se um choro. Os gritos de desespero se mesclaram com um choro delicado.

Impaciente, o cavaleiro ergueu sua mão direita e sua espada voou em sua direção. Ao agarrá-la, proferiu:

[ Aqui acaba o seu sofrimento! ]

Uma velocidade absurda moveu o cavaleiro em direção ao homem já sem forças. Sua espada desenhava exatamente a trajetória de um anglo de 180 graus.

Antes que a opaca espada cinza selasse o destino do homem, um raio azul decepou o braço esquerdo do cavaleiro que começou a urrar de dor. Atrás do homem, uma enorme sombra gélida cobriu-o. Um par de olhos azuis perscrutou o cavaleiro.

[ O que é... você? ]

Enormes asas agitaram-se e um estrondoso vento levou o cavaleiro ao ar. Mais um raio atravessou-lhe o corpo mutilando-o em pedaços.

Em pé, permanecia apenas a espada cinza que, sem seu brilho, não representava mais perigo algum.

Voltando-se para o homem, a ave colossal diminuiu seu tamanho e revelou-se uma águia. Suas cores difusas e quentes trouxeram paz para homem que, em seu último suspiro, suplicou:

- Proteja minha filha. Proteja minha Le-nah...

O último suspiro de agonia se foi e só restou um choro abafado.

A águia se aproximou do bebê. Aos poucos, os soluços de choro foram ficando mais espaçados. O calor do animal místico envolveu o pequenino ser. Um calmo sono o silenciou. A crescente tempestade de neve cobriu o seu pai e silenciou sua dor.

A águia, novamente, com seu tamanho colossal, alçou voo rumo à montanha azul. Em suas garras gigantes, descansava o bebê.

A neve se intensificou. Os restos mortais do homem e do cavaleiro espectral foram sepultados pela rigorosa tempestade que se fez. Em pé, restava apenas a espada sem vida.

Alexandre Mazarin
Enviado por Alexandre Mazarin em 26/06/2022
Reeditado em 04/07/2022
Código do texto: T7545906
Classificação de conteúdo: seguro