Não-me-esqueças

Meu nome é Ana, moro em um sitio com a minha mãe, Maria, e não aguento mais.

Várias vezes já pensei em tirar minha própria vida, mas quem cuidaria dela? Sim, já cheguei neste ponto. É um desespero que toma conta de mim completamente e não sei o que fazer, realmente não faço ideia de como agir, como prosseguir, parece que estou enlouquecendo.

Mas, em meio ao eminente começo de uma crise, olho para minha mãe e vejo alguém que precisa mais de mim do que qualquer outra pessoa, até mais que eu mesma, já que quase sempre me esqueço de mim para cuidar, zelar e ensinar tudo que ela já esqueceu. Às vezes ela não lembra nem quem sou, e por alguns minutos recorda e o carinho que recebo faz valer a pena tudo que estamos passando.

Eu sofro, mas ela também. Não deve ser fácil perder-se de si. Não ter mais capacidades básicas, noções simples do dia a dia e voltar a ser criança, mesmo com 80 anos.

Morávamos na cidade, mas quando a doença começou a aparecer ela quis voltar a morar no sitio em que havia crescido e estava desabitado desde que meus avós morreram. Dizem, e estou confirmando diariamente, que as memórias recentes são apagadas primeiro e depois as mais antigas. Algumas lembranças ficam, mas geralmente todas embaralhadas e confusas.

A única coisa que quero, mais que tudo, é ter forças para continuar. Já que quanto à doença não há o que fazer, não existe cura para o Alzheimer. Meu psicológico está inteiramente abalado, é algo que além de acabar com o doente abala totalmente o cuidador. Mas, o amor supera todas as dificuldades, e a amo mais que tudo no mundo.

Levanto cedo e vou até a mata, ao lado do sitio, para procurar ervas. O dia não começa sem chá aqui em casa. É a única coisa que consegue ajudar a acalmar minha mãe, que às vezes acorda agitada.

Aqui é tão silencioso. Ouço alguns pássaros cantando bem longe e posso até escutar o barulho das folhas das árvores quando o vento, delicadamente, faz sua dança matinal. Neste lugar sinto a paz que tanto me falta, e acredito que seja assim que, mesmo sem querer, acabo recarregando minhas energias para enfrentar cada dia de uma vez. Acabo andando muito e entro demais na mata, o que é estranho, já que sempre encontro todas as ervas que preciso bem no começo. Mas hoje, não estou entendendo, elas sumiram! Passei tempo demais aqui e preciso voltar. Espero que ela acorde calma hoje e não pergunte do chá.

Enquanto volto pelo caminho que percorri escuto um assobio bem alto, que susto! Ando mais e mais rápido e a impressão que tenho é que algo, ou alguém, está me seguindo. Corro pela mata e a saída parece não chegar nunca. Outro assobio, desta vez ao meu lado, e quando olho não vejo ninguém. Um redemoinho atravessa meu caminho e vejo um vulto em seu interior. Estou ficando louca! Tropeço em um galho no chão e o redemoinho passa de novo. Levanto, corro apressadamente e, enfim, vejo a claridade da saída. Saio da mata assustada, perdida, será que estou tendo alucinações?

Volto para casa com as pernas bambas e o coração na mão.

Quando entro na sala a vejo sentada em sua cadeira, balançando para frente e para trás.

— Oi, mãe. A senhora está bem? — pergunto.

— Oi. Quem é você? Viu minha filha lá fora? — disse, esquecendo novamente quem sou.

— Vi sim. Ela pediu para que eu ficasse esta manhã aqui te fazendo companhia, quer alguma coisa? — falei, já acostumada com a situação.

— Quero chá. — E agora?

— Tudo bem. Só um momento que vou preparar. Já volto.

Saio da sala e vou para o quintal, preciso encontrar alguma coisa, qualquer coisa. Um frio sobe por minha espinha quando me lembro do que aconteceu a pouco na mata, mas não posso ficar parada enquanto minha mãe pede uma das poucas coisas que ainda gosta, ainda mais sabendo que sem isso é extremamente difícil deixá-la tranquila o dia todo.

Olho ao redor, dou alguns passos e quando percebo, bem perto dos meus pés, um macinho com todas as ervas que precisava. Mas, quem faria isso? Ninguém mora aos arredores. Vou para a cozinha, lavo tudo e faço o chá. O que no mesmo momento apazigua a situação. Fico com isto na cabeça o resto do dia. Decido que assim que colocar minha mãe na cama à noite tentarei descobrir o que está acontecendo.

No final da tarde começo a fazer o jantar. Mas, algumas coisas estranhas acontecem: queimo a comida, coloco açúcar no arroz no lugar do sal e várias vezes perco os utensílios que estou usando. Quando, enfim, consigo terminar já é tarde e logo que acabamos de comer ajudo minha mãe a se deitar.

Continuo com meu plano de desvendar esse mistério. Saio de casa decidida a entrar na mata se for necessário. Dou alguns passos, olho tudo, respiro fundo e vou. Quando chego bem perto das primeiras árvores vejo algo que simplesmente não consigo acreditar: um menino negrinho, com uma perna só, usando um gorro vermelho e um cachimbo no canto da boca. Não sei o que fazer!!! Será coisa da minha cabeça? Será que é real? Estou vendo, encostado na primeira árvore da entrada da mata, o Saci!

Aproximo-me, já estou aqui mesmo. Enquanto ando ao seu encontro, ele está olhando em minha direção com um grande sorriso no rosto.

— Oii! — ele grita, acenando.

— Você existe mesmo? Você é... O saci? Saci Pererê, de verdade? — falo, sem acreditar nas palavras que estão saindo da minha boca.

— Claro que sim, qual o motivo do espanto? Estou aqui vivinho em folha, em planta, em natureza e em alegria por me apresentar. — Nunca vi ninguém tão animado ao me conhecer.

— Mas, você estava me assustando mais cedo, não estava?

— Sim. Mas posso explicar: você entrou na mata para pegar minhas ervas sem pedir permissão. Eu preciso proteger tudo isso, acha que é fácil cuidar de tantas coisas? Não é não. — ele é tão feliz, até esqueço de todo medo que estava sentindo.

— Não sabia que tinha que pedir permissão. Na realidade, não fazia ideia que você poderia existir de verdade. Achei que fosse apenas uma lenda.

— Vocês e suas descrenças. Descartam todas as possibilidades por apenas acharem demais para suas imaginações nada férteis. Tudo que não conseguem explicar acham melhor deixar para lá. — Diz ele, com uma grande tristeza no olhar e no tom de voz.

— Temos crescido assim. Conforme as gerações vão passando, pior está ficando. — Falo, pensando em como isso é triste. Esses seres tão importantes, esquecidos. Cuidando de tudo no escuro. E todos nós com os olhos fechados demais para sequer, por um momento, pensarmos na possibilidade de suas existências.

— Tudo bem. Você não tem culpa. É um problema que vem se agravando com o passar dos anos. Mas ainda tenho esperanças em dias melhores. — Diz ele, sorrindo de novo para mim.

— Espere aí! Você quem fez toda aquela confusão na minha cozinha, enquanto estava preparando o jantar? — falo, me lembrando de tudo que deu errado.

— Não sou ruim, como alguns falam por aí. Mas, gosto de fazer travessuras. Também não dá para ignorar minha natureza. E outra coisa, você mereceu por colher minhas ervas. — Disse, soltando uma gargalhada estridente.

— Pelo jeito você é um menino bem peralta, não é? — falo, com carinho. — Preciso entrar. Minha mãe pode acordar a qualquer momento.

— Nos vemos depois. — Ele diz, e sai pulando para dentro da mata.

Volto para casa, deito na cama e penso em tudo que aconteceu. Confesso que senti certa afeição por aquele menino. Mas, na mesma noite, minha mãe acorda assustada e insiste em querer ir embora. Chora. Chora muito. E parte meu coração, em mil pedaços, mais uma vez. Não aguento mais passar por esta situação. Não consigo mais!

E, em meio ao desespero, penso naquele garotinho lá fora, pulando por entre as árvores. Começo a me lembrar das coisas que meus avós contavam sobre ele. E uma ideia passa por minha cabeça. Quem sabe, se eu o capturar e pegar seu gorro, ele realize meu desejo de curar minha mãe? É a única forma de acabar com essa doença maldita. Preciso tentar!

Assim que amanhece, procuro as coisas que preciso para realizar meu plano; uma peneira de cruzeta e uma garrafa escura com uma cruz na rolha. Deixo tudo separado para aguardar o momento certo. O que eu não esperava é que, enquanto estava fazendo isto, o menino estava observando tudo pela janela. Quando o vejo seus olhos estão cheios de lágrimas e ele desaparece em um redemoinho.

O que foi que eu fiz?! As chances de salvar minha mãe estavam acabadas, e magoei aquele menino que havia sido tão simpático comigo. Às vezes nós fazemos coisas pensando nos fins, mas não medimos as consequências dos meios. Entristeci o saci, um ser mágico, e ao contrário do que dizem: bondoso.

Eu poderia ter pedido ajuda. Poderia ter feito tantas coisas diferentes. Mas o desespero tomou conta. E, quando achei que tudo estava acabado, tenho uma grande ideia! Tem que dar certo!

Dou uma olhada pelo vão da porta do quarto e minha mãe está dormindo.

Vou até o quintal e pego um ramo de miosótis. Entro na mata e ando até um local onde as árvores dão espaço para os raios de sol entrarem. Coloco o miosótis em uma pedra iluminada pelo sol e com os olhos cheios de lágrimas falo, “Não sei se está me ouvindo, mas fui uma completa idiota! Sei que deveria ter agido de forma diferente, me desculpe! Mas, estou desesperada. Minha mãe está piorando e a amo tanto, mas tanto, que chega a doer. Não quero perdê-la, Saci, você consegue me entender? Eu errei com você, e não há nada que eu fale que possa apagar o que pensei em fazer. Você é e merece sempre continuar sendo livre. Continuarei cuidando e zelando por minha mãe, queria tanto que ela tivesse te conhecido, seria uma grande e boa surpresa. Enfim, me perdoe. E não-me-esqueças.”

Volto para casa com o coração partido. Espero que ele tenha me escutado. Faço meus afazeres e enquanto isso minha mãe fica brincando no quintal com bonequinhas de pano. Sempre dou uma olhada para ver se está tudo bem e se ela continua no mesmo lugar. Mas, quando termino de fazer o almoço e vou até a porta da cozinha para avisá-la, não consigo acreditar no que estou vendo: o saci, ao lado dela, brincando e rindo. Depois de muito tempo vejo minha mãe sorrindo e realmente se divertindo.

Às vezes nós não aceitamos a vida que temos e as condições em que vivemos.

Às vezes nós queremos mudar nosso destino e o das pessoas ao redor.

Às vezes o amor é tanto que queremos tirar o sofrimento de alguém de qualquer forma.

E, às vezes, a solução é mais simples do que poderíamos pensar e não seja aquela que imaginávamos.

O que pude aprender é que não existem curas milagrosas. Nem mesmo o Saci poderia mudar a situação da minha mãe. Mas, a simplicidade muitas vezes é a saída.

Hoje nós temos um amigo. Hoje ela tem alguém que a diverte e a faz feliz todos os dias. E hoje, me sinto aliviada por estar ao lado dela em todos esses momentos.