DESEJO DE SANGUE

Estar presa na eterna “meia vida” ligada à noite sem fim, não é o fim para mim.

Embora pareça algo nada natural: Eu gosto disso.

Gosto dos privilégios, da velocidade, das habilidades, da visão aumentada e também da minha nada habitual forma de enxergar as coisas, mesmo que isso seja bem questionado perante todos os outros que convivem comigo.

Para quem ainda não percebeu: Sou uma vampira.

Não daquelas que conseguem andar no sol, comem qualquer coisa e ainda sobrevivem para contar a história. Essas que aparecem nos filmes e mais parecem personagens de desenhos infantis, não desmerecendo os desenhos, claro.

Posso dizer, então, que sou mais do tipo que dá medo, que não sobrevive sem sangue e vive andando por aí nas noites sombrias. Não seria mentira, mas os outros não concordariam com a parte “do tipo que dá medo”.

Prefiro não tirar a vida das pessoas que me ajudam a me alimentar, assim como acho melhor os que o fazem por livre e espontânea vontade. Geralmente são homens que se oferecem, e claro que na maioria das vezes é devido à atração física, mas confesso que considero grande parte deles bem sem graça. De qualquer forma, é simples: eles me dão o que eu quero e, ás vezes, eu dou o que eles desejam.

Essa noite estou especialmente faminta e vou à caça. Costumo frequentar bares, já que baladas são muito barulhentas e quando estou com fome isso incomoda bastante.

Andando pela noite, não há mais nada que passe pela minha cabeça a não ser sangue. Consigo me concentrar e continuar pelo caminho, prestando atenção na lua, na rua, em tudo, menos nas pessoas.

Chegando ao bar, começo a observar e ser observada. Agradeço imensamente, em pensamento, aos que aderiram à moda do cabelo platinado, assim meus cabelos que são brancos, longos e ondulados acabam não chamando atenção indesejada: efeito colateral de ser o que sou, todos têm cabelos assim. Alguns homens tentam puxar conversa e nada me atrai. Não está fácil por aqui hoje. Nada diferente, nada interessante, envolvente.

Até que...cabelos vermelhos como o fogo, pele branca, sardas levemente desenhadas nas bochechas, óculos de grau, um corpo esculpido que não consegui deixar de olhar cada detalhe colado na calça jeans e na blusa xadrez caindo pelas costas. O que tem nessa mulher que está chamando tanto minha atenção? Não tinha mais ninguém para mim, mais nada, além dela. Isso não é comum, pouquíssimas vezes provei do sangue feminino. Mas hoje, não há nada que eu queira mais. Simplesmente preciso dela, quero sentir seu gosto descendo por minha garganta, saciando toda a agonia.

Ela está sentada em uma mesa com outras mulheres, me aproximo e me sento à mesa ao lado, peço uma bebida e aguardo o momento certo.

Observo cada detalhe, cada gesto, até que, enfim, ela percebe minha presença e timidamente corresponde aos meus olhares. Ah! Se ela pudesse ler meus pensamentos, não sei bem se sairia correndo ou ficaria, provavelmente a primeira opção.

Meus olhos faíscam, o desejo é visível e a sede está quase incontrolável.

Levanto-me e faço um sinal com a cabeça para que ela me acompanhe. Espero que dê certo. Eu quero que ela queira, não vou usar minhas habilidades, quero que ela sinta, que ela faça, quero que seja real.

Saio do bar, aguardo do outro lado da rua, e ela aparece na porta, me procurando com o olhar, e juro que se eu tivesse um coração como os outros ele estaria saindo pela boca.

Vejo-a andando em minha direção e simplesmente não consigo parar de olhar. Ela me hipnotiza, mas não deveria ser o contrário?

Não consigo me controlar, assim que ela se aproxima simplesmente a beijo, como nunca havia feito em toda minha existência. Fomos andando para trás, aos beijos, até bater as costas dela no muro; um beijo diferente e quente apesar da frieza que rodeia todo meu ser.

Com nossos lábios tocando um ao outro começamos a conversar.

— Qual seu nome? — pergunto, sentindo minha garganta queimando.

— Sophia e o seu? — ela responde, com a respiração ofegante.

— Elorah! Gostaria de ir para um lugar mais tranquilo? — confesso que estou com receio da resposta.

— Quero sim! Vamos! — ufa.

Vamos caminhando pelas ruas da cidade, queria poder leva-la para minha casa, mas seria estranho e com certeza a assustaria.

Passamos por um hotel e resolvemos entrar. O quarto é acolhedor, em tons pastel e uma lareira em frente à cama. Estou com tanta sede, mas como farei isso? Ela mexe comigo de uma forma estranha e não sei o que fazer. Mas não posso, não consigo ignorar minha natureza.

Enquanto estava em meus devaneios ela me beijou novamente, e que beijo! Ela me queria, assim como eu a queria. Dava para sentir o cheiro do tesão entre nós, e descobri que até o momento não conhecia o que era realmente desejar alguém, querer alguém dessa forma. Quando percebi nossos corpos estavam nus, e cada centímetro de pele que se tocava era eletricidade pura, era vontade de verdade e tudo era tão real que eu não sabia mais o que era realidade.

Comecei a beija-la no pescoço e a vontade era incontrolável demais! Até que falei:

— Eu sei que você sente tudo que estou sentindo. Não entendo o que está acontecendo aqui, entre nós, mas apesar de nos conhecermos agora, confia em mim? — Não vou forçar, não vou machuca-la assim.

— Também não estou entendendo. Mas é forte. É intenso. Sou sua, eu confio, faça o que quiser.

E pela primeira vez, apesar do fogo que arde dentro de mim, apesar do consentimento, eu não queria. Mas é o que sou e não consegui me controlar.

Lentamente beijei sua boca, fui descendo e cheguei ao pescoço, e com todo o cuidado que pude comecei a sentir seu liquido, quente, que em contato com meus lábios nunca havia sido tão doce e inebriante. Um breve gemido saiu de seus lábios, e dos meus, e fizemos amor como nunca.

Foi incrível! Nós nos encaixamos como se fossemos feitas uma para a outra. Senti seu gosto em todos os sentidos possíveis e até impossíveis. Foi mágico, quem diria, uma vampira sentindo uma magia tão pura em algo.

Poderia ficar horas tentando dizer em palavras e não conseguiria. O fogo e o gelo se misturaram numa dança feita de toques e sentidos aguçados, excitados, inusitados.

E quando tudo voltou a ser real estávamos deitadas, uma ao lado da outra, em uma cama de hotel, não entendendo nada, mas sentindo um infinito de coisas. Estávamos ligadas e, me arrisco em dizer, que o amor em sua forma mais verdadeira e única de fato existe. Não era apenas paixão. E mesmo que o amor, como sempre escutei por aí, seja algo que precisa ser construído, tijolo por tijolo, aqui nesse quarto em apenas uma noite de amor foi construído um edifício.

E estávamos, também, confusas. Ela sabia o que eu era. E eu, como jamais havia imaginado ser possível, estava envergonhada por ser.

O dia em breve irá amanhecer e preciso ir embora.

— Sophia, você está bem? Preciso, infelizmente, ir para casa.

— Olha, Elorah, estou perdida. Deveria estar com medo, correr por aquela porta e nunca mais querer ver você. Mas não entendo, não sinto medo. Apenas não sei o que pensar. Não sei como agir de agora em diante depois dessa noite.

— Machuquei você? — disse, olhando para seu pescoço com as marcas deixadas por mim.

— Não, isso não é nada. Só não quero que vá embora, mas ao mesmo tempo quero. Entende? Quero você, mas no fundo sei que dessa forma não será possível. Desculpa. Pode ir. Quero ficar aqui mais um pouco pensando e logo também vou. — disse ela, quebrando em mil pedaços uma parte de mim que nem eu mesma sabia que tinha.

Saio do hotel e juro que se pudesse chorar, choraria.

Eu, que sempre amei ser o que sou, agora me vejo querendo com todas minhas forças ser diferente, por ela.

Volto para casa e adormeço pelo resto do dia, como sempre.

Quando anoitece, já estou pensando nela e em uma forma de fazer com que as coisas mudem. Simplesmente não consigo suportar a ideia de passar toda minha eternidade longe daquela mulher. De que me adianta uma eternidade de solidão?

Quando não sabia o que era sentir algo assim, a solidão estava confortável para mim. Mas agora, não mais.

Acabo lembrando que talvez exista uma saída. Vale a pena arriscar minha “meia vida” para viver uma vida inteira ao lado dela? Não consigo pensar em nada que valha mais.

Saio apressada, com a ideia fixa de que dessa noite não passa. Vou até a casa da feiticeira que jurou ter feito a cura para que voltássemos a ser humanos — essa que ninguém acreditou e nem quiseram acreditar, quem iria querer perder a vida eterna? Só eu —. Expliquei a situação, e ela de bom grado cedeu um frasco com um liquido vermelho. Bebi. E no mesmo instante, ela que estava cooperando desde que havia pisado em sua casa, começou a rir, gargalhar, e disse:

— Você acredita mesmo que há uma cura? Garota ingênua. — e ria cada vez mais.

— O que você fez? — perguntei, engasgando.

— Uma poção que está te enfraquecendo o bastante para que eu a mantenha aqui, por quanto tempo eu quiser. E quando não quiser mais, acabo com essa sua “vida”. Assim como vocês demônios acabaram com a vida de muitas de minhas ancestrais.

Como eu pude ser tão inocente? Estava tão cega que nem cogitei a possibilidade de estar caindo em uma armadilha estúpida dessas. Agora está tudo acabado. Não terei mais a eternidade, nem uma vida humana e nem Sophia ao meu lado.

O que essa mulher fará comigo de agora para frente é um mistério, mas com certeza me trará muito sofrimento enquanto ela me manter aqui.

Sinto-me fraca, com dificuldades para ficar em pé e estou trancada em um espaço minúsculo onde apenas vejo os tijolos das paredes, uma porta de madeira e o pior, bem acima da minha cabeça, próximas ao teto, duas janelas de vidro. Ela pensou em tudo mesmo. Assim que o sol nascer...acabou!

O fim deve estar próximo. O tempo parece que gosta de nos afrontar, já que sempre age ao contrário do que deveria, passa rápido demais quando queremos que ele passe devagar e para quando poderia passar mais rápido. Enquanto estou aqui pensando no que acontecerá em breve, escuto a feiticeira dizendo:

— Espero que você sofra bastante. Bom banho de sol.

E pude ouvir, se afastando, sua risada de contentamento. Acabei dando o que ela queria. Espero que ninguém mais cometa esse erro.

Começo a ver a claridade entrando pelas janelas, e agora apenas quero que acabe logo e a dor não se estenda por muito tempo. Falta pouco, e a única coisa que queria era dizer para a Sophia o que tentei fazer e o que sinto. Morrer, de novo, não seria tão insuportável se eu tivesse a chance de apenas vê-la pela última vez. Os primeiros raios de sol me atingem de tal forma que apenas torço para tudo acabar. A dor é angustiante, sinto como se estivesse fritando minha pele onde o sol está pegando, minhas pernas queimam, sinto bolhas estourarem em tudo. Por favor! Por favor! Pare com isso. Com o pouco de voz que consigo soltar apenas suplico pela piedade de alguém, qualquer um, apenas me tirem daqui ou acabem logo com isso!

E, em meio ao sofrimento, pude ver a feiticeira entrando, fechando as janelas, e apaguei, não vi mais nada. Quando abri os olhos novamente ela estava me observando, apenas para abrir a janela e me torturar de novo e de novo. Simplesmente não aguento mais!

A noite chega, escuto um barulho no outro cômodo e alguém gritando:

— Onde ela está? Fale agora ou você vai se arrepender! Eu sei que ela está aqui!

Ouço barulhos, coisas quebrando, será que estão lutando? O que está acontecendo? Essa voz, eu conheço, será possível?

A porta abre num estrondo, olho para cima e simplesmente não consigo acreditar no que estou vendo.

— Sophia? O que você está fazendo aqui? Como me encontrou?

Mas quando olho diretamente para ela e consigo focar minha visão, que está fraca, apenas consigo dizer:

— O que você fez? — e tudo fica escuro.

Quando abro os olhos estou em casa e Sophia está em pé ao meu lado. Seus cabelos estão brancos, como os meus, caindo em ondas por seus ombros.

— Por que fez isso? — pergunto, ainda sem acreditar no que estou vendo.

— Procurei você na outra noite, no mesmo bar. Você não estava e precisava te ver de novo. Fiquei lá por um tempo, procurei pelas ruas ao redor e encontrei um rapaz, chamado Arthur, com os cabelos iguais aos seus. Perguntei de você e contei sobre nós. No mesmo momento, ele olhou para o meu pescoço e entendeu tudo. Disse que tinha sumido e que nunca faz isso. Fiz o que era necessário. Eu vi, antes de você ir embora do hotel, seu olhar de tristeza pelo que havia feito e sabia que se quisesse ficar com você teria que fazer uma escolha.

Eu, que nunca cogitei pedir para que ela mudasse por mim, tentei mudar por ela.

E ela, que provavelmente jamais pensou em ser uma vampira, mudou para me salvar e podermos ficar juntas.

E agora, pelas escolhas feitas, teremos toda a eternidade.

Pensando bem, o amor, na verdade, é isso mesmo: escolhas e consequências.