A Montanha dos Contos Perdidos

Uma menina descalça e de vestido branco corria solitária pela floresta de copa alaranjada. Ela usava uma coroa de flores na cabeça.

Ela não fugia. E também não queria chegar a lugar nenhum. Ela simplesmente corria, como se a vida da floresta dependesse disso, enquanto seu longo cabelo quase branco se movimentava como se estivesse embaixo d'água, assim como o seu vestido. Os pés muito sujos e rosados esmagavam folhas douradas num chão de terra escura. As sombras das folhas altas deslizavam pelo seu rosto.

Ela levava uma borboleta na mão.

Todas as folhas da floresta variavam entre o vermelho vivo e o marrom morto das folhas secas. As cores do outono.

No centro da floresta havia uma imensa montanha. A garota podia vê-la quando escalava as árvores. Era uma montanha misteriosa, e a menina nunca conseguira se aproximar dela. Nenhum caminho levava até lá e, por mais que ela tentasse, a montanha se mantinha sempre a uma mesma distância. Ela já havia perguntado para a dona Coruja, sua tutora, inúmeras vezes do que aquela coisa se tratava, mas ela sempre respondia:

-Eu... não tenho certeza. Mas eu sei.

Uma criatura misteriosamente engraçada, a dona Coruja.

A floresta era cheia de criaturas peculiares. Havia mariposas gigantes que moravam nas folhas laranjas e se camuflavam nelas. Às vezes copas inteiras eram habitadas somente por essas mariposas, e a menina nunca sabia dizer se uma árvore estava realmente seca ou se os animais haviam migrado. Elas viviam dizendo frases aparentemente sem sentido e que eram sempre continuadas pelas outras, formando uma história sem fim que deixava a garota ansiosa para saber o que aconteceria depois.

Havia pássaros da altura da menina e que possuíam rostos humanos. Suas plumas eram negras e longas. Tinham as mais bela vozes que a garota já ouvira em toda a sua vida. Cantavam à noite, mas choravam no raiar do dia. Passavam a tarde reunidos em um único lugar, no chão da floresta, olhando para o vazio. A garota nunca falou com nenhum deles, e eles não pareciam notar a presença de ninguém mais na floresta.

Enquanto corria, além de observar atenta as diversas formas de vida do lugar, a menina via também versões mais novas de si mesma espalhadas pela floresta. Passou por uma delas, uma criança de dois anos que dançava enquanto um sapo tocava violino. Era o senhor Morg, ela lembrava. Ainda era capaz de ouvir suas melodias vindas do centro do lago onde ele morava. Ele estava sempre bem arrumado, com aquelas vestimentas típicas de violinista, mas nunca utilizava calças. Tocava música em cima de uma vitória régia.

Outra criança surgiu enquanto a menina corria. Era outra versão dela, de uns cinco ou seis anos, que brincava de coletar plumas prensando-as entre as páginas de um livro em branco. Sempre que fazia isso as penas se tornavam uma ilustração que ficava estampada no livro para sempre(ou até que o vento as soprasse para fora das páginas).

Essas outras meninas estavam por todo lugar, mas a garota não podia interagir com elas no momento. Ela sempre brincava com elas, e achava divertido que as pequeninas acreditassem que ela era a sua mãe. Porém a menina possuía assuntos a serem resolvidos, não podia ficar apenas correndo e se distraindo com os seus fantasmas ou brincando com qualquer outro ser daquele lugar fantástico. Ela tinha entre nove e dez anos de idade agora, e se sentia mais responsável pela floresta. Ela cuidava de tudo ali, desde consertar as asas de um passarinho machucado até lidar com um lago que podia, de repente, ficar suspenso no ar por dias, recusando-se a descer. Era uma visão linda, pois os peixes ficavam à mostra no ar, dentro do lago flutuante, mas isso deixava os pobres animais mortos de medo de cair dele.

E, além disso, a floresta também possuía os seus perigos, que vinham se tornando mais ameaçadores nas últimas semanas com a chegada dos Agouros.

Na verdade eles sempre existiram, mas o seu aparecimento era uma raridade. Agora eles surgiam "do nada" numa frequência incomum.

E, enquanto corria, a menina começou a sentir que estava sendo observada. Sem virar muito a cabeça, com o canto do olho, ela pôde ver que aquela árvore a estava perseguindo. "Então não é uma árvore", pensou.

De repente uma enorme criatura tomou forma atrás dela, muito magra e retorcida e que usava uma máscara completamente branca e fechada, sem abertura para olhos, boca ou nariz.

A criatura, fazendo sons horríveis que deixavam a menina um pouco tonta e exausta, a alcançou rapidamente e parou no seu caminho. Aquilo, então, começou a se abaixar lentamente até aproximar a sua superfície branca e vazia da face da menina. O ar vibrava e a garota ofegava, imóvel.

O Agouro levou a mão até a máscara e a tirou.

A garota já havia enfrentado alguns desses monstros, mas a visão do rosto deles nunca se tornava mais fácil de suportar. Era como o pior dos pesadelos, e ela se sentiu mais uma vez arrancada daquele mundo magnífico e levada a um lugar podre e sem emoção. Tudo parecia sem valor e falso, tudo parecia estar desmoronando por fora e por dentro dela, chegando ao fim. Era a visão do fim do mundo.

Mas a menina sabia o que fazer. Se concentrou o máximo que pôde, quase sem respirar, e lentamente estendeu para o monstro a mão fechada que segurava a borboleta. E a abriu.

A coisa ficou paralisada por um momento de eternidade antes de o seu rosto subitamente começar a rachar. Ela pôs as longas mãos negras na face e saiu correndo de perto da garota.

Depois de alguns metros de fuga cega o monstro parou, se encolheu e se transformou numa árvore morta.

A menina continuou com sua corrida, mesmo fraca e abalada. As cores das asas de sua borboleta estavam desbotando. Agora ela podia considerar que estava fugindo. Mas a corrida a revigorava e mantinha sua mente afastada daquela visão aterradora.

A luz do sol escorria pelas copas das arvores como mel pelos dedos, fazendo os raios parecerem uma cortina macia de luz dourada. Ela corria.

Depois de vários metros ela estava cansada, mas mais tranquila. Até que, de repente, os raios de luz começaram a se movimentar, tal como uma cortina de verdade, como se uma mão houvesse deslizado suavemente por trás dela, o que fez o mundo à frente da garota estremecer, ondular e parar.

A menina parou. Ela fazia alguma ideia do que poderia ser, por isso não se assustou tanto. E esperou.

Subitamente, literalmente do nada, suspensa no ar, uma mão apareceu, saída de trás da cortina de luz. A mão se agitou puxando a cortina para o lado, e um entalhe negro apareceu no mundo. De dentro dele saiu uma pessoa.

A menina ja havia ouvido falar desse acontecimento em histórias. Ela pôde reconhecer as descrições que a dona Coruja havia feito desse momento enquanto narrava contos atrás da luz de um fogueira, mas nunca acreditou que isso podia vir a acontecer um dia. Ela estava sentindo uma mistura de medo e ansiedade. Era como se estivesse fazendo parte de uma profecia.

Essa pessoa que saíra de trás da cortina não possuía rosto. No lugar dele havia uma grade. Atrás dessa grade, um espaço escuro e profundo onde algumas borboletas se encontravam presas.

A figura se aproximou da criança lentamente. Abriu o rosto, soltando a tranca da grade com uma das mãos sujas. A menina estendeu a mão e guardou lá dentro a sua própria borboleta. A pessoa trancou o rosto novamente e voltou para o buraco suspenso no ar, andando de costas, de algum modo olhando para a menina. Suas vestes longas faziam as folhas secas no chão sussurrarem.

A garota observou tudo espantada e atenta, até a figura misteriosa e medonha sumir junto com o rasgo no mundo.

Anoitecia agora, mas floresta nunca ficava realmente escura. Uma luz prateada se espremia por entre as folhas acima, e a menina sabia que era hora de seguir o caminho até a velha Gruta e descobrir o que estava acontecendo. Era onde podia conseguir algumas respostas, a dona Coruja havia dito isso também.

Ela não corria mais, mas andava apressada. Já podia ouvir ao longe(ou perto, mas muito baixo) o canto melancólico dos pássaros de vozes aveludadas. Sentia que a floresta a observava de fora agora, e isso a perturbou. Ela sempre sentira o lugar pulsando dentro de si. Algo estranho acontecia.

Ela andou por uma longa distância, quase tão longa quanto aquela noite, até chegar onde uma imensa árvore repousava. Era uma árvore que parecia fincar suas raízes no Tempo, fazendo a garota pensar em como as coisas grandiosas do mundo pareciam resumir em si o próprio mundo. Ela quase duvidou da sua própria existência diante daquilo.

Ela percorreu a árvore de cima a baixo com seus olhos, e viu que as raízes retorcidas formavam uma espécie de gruta na base daquela majestade de ser. Ela se dirigiu para lá, e entrou.

Ficou um tempo encarando o escuro, quebrado apenas por um raio frágil e prateado que penetrava o teto da Gruta com dificuldade, deixando uma listra luminosa no chão.

-Olá?- disse a menina para as folhas na terra úmida e para a escuridão.

As folhas e a escuridão não responderam, mas outra coisa respondeu:

-Criança da floresta. Olá. Em que posso servi-la?- a voz era uma voz que só algo que morava na gruta de raízes retorcidas na base da árvore poderia ter.

A garota tirou a coroa de flores da cabeça e a depositou gentilmente ao lado dos seus pés descalços.

-Eu gostaria de saber o que está acontecendo com a floresta.

A coroa começou a alargar-se no chão. Não demorou muito até que ela formasse um círculo amplo o suficiente para que a menina se sentasse no meio dele. As flores ganharam raízes e cresceram um pouco, flores e grama verde. A menina deu um passo para dentro do círculo e sentou.

-Não há necessidade disso- disse a voz, carregada de folhas secas e poeira.

-Eu uso o meu círculo quando suspeito de algo desconhecido. Eu não conheço você. E as coisas têm ficado muito estranhas. E então? Por que os Agouros estão aparecendo tanto?

A voz demorou um pouco antes de responder.

-Alguém está espalhando retalhos de sombra pelo chão da floresta. É por eles que os Agouros entram no mundo.

-Ãh? Por que alguém faria isso?

-O mundo está acabando, criança. Como todos os mundos acabam um dia. Alguém está entregando-o nas mãos dos Agouros.

-Nossa... acabando? Como assim? Isso tem a ver com a pessoa sem rosto?

-Hmm... então você já viu o sem-rosto. Essa criatura está limpando o mundo antes de fechá-lo. Está atraindo os Agouros. Está recolhendo as borboletas, as plumas e tudo aquilo o que mantém os monstros afastados.

-Então... é ele que está espalhando os retalhos de sombra. Eu vi alguns pela floresta. Não posso acreditar... Quem é essa pessoa? Ela está mesmo entregando o mundo assim tão facilmente? Sem mais nem menos?

-Talvez- disse a voz, que havia mudado repentinamente, como se estivesse sendo abafada por uma máscara.- O sem-rosto está quase terminando seu trabalho para assim fugir. Antes que seja tarde. Como é tarde para você agora.

A garota pôde ouvir galhos sendo arrastados pelo chão, e uma placa branca e redonda tornou-se visível sob o fraco raio prateado que entrava na Gruta.

-Agora observe, criança. Observe o fim do mundo.

A garota se encolheu no círculo de flores e murmurou algumas palavras numa língua quase esquecida. As flores envolveram o seu corpo e, subitamente, ela não estava mais ali.

* * *

A garota sentiu o golpe de um chão gramado contra o seu corpo. Ela perdeu o ar por um momento torturante, virou-se para o lado ainda deitada e começou a choramingar. Ela se sentia sozinha e extremamente ameaçada. Os Agouros estavam dominando tudo, até mesmo coisas sem forma como a voz na Gruta.

Ela se sentou e esfregou os olhos com mãos sujas de areia.

Subitamente a menina percebeu que vários olhos diminutos a olhavam através da fraca luz prateada. Ela só percebeu onde estava quando ouviu uma voz:

-Olá menina. O que faz no jardim de rostos?

-Eu não sei-disse, com uma voz cansada. - Fui trazida aqui pelo círculo de flores. Não pensei para onde estava indo, só num lugar... distante...

Enquanto falava, flores e mais flores com rostos humanos se juntavam ao seu redor. Elas eram maiores que flores normais e seus rostos eram do tamanho da palma da mão da menina.

Elas podiam andar livremente pelo jardim, e somente por ele, sem nem retirar suas raízes de sob o solo. E esse jardim ficava perto dos limites da floresta, numa área que não era exatamente uma clareira, mas um lugar onde as árvores ficavam mais afastadas umas das outras.

-Você pensou num lugar realmente distante.-disse uma flor com voz masculina atrás dela.-Nós não recebemos muitas visitas. Mas escutamos tudo o que acontece ao longe. O seu mundo está acabando, não é?

As flores não possuíam expressão facial. Até tinham, mas seus rostos, estranhamente, permaneciam congelados naquela expressão que antecede um sorriso.

-É verdade mesmo, não é?-disse a menina-Achei que não podia mais confiar na voz da Gruta desde que ela se transformou num Agouro. Mas parece que é verdade.

-Sim, sim-disse uma flor fêmea- É... sim. Mas você parece tão triste...

-E por que não ficaria? Estamos prestes a morrer. O mundo... está morrendo. Os retalhos de sombra estão por toda parte. O sem-rosto levou minha fonte de poder contra os Agouros. Tudo vai acabar para sempre. Eu... vou morrer.

Começou a chorar de novo.

-Não, menina. Não. Está tudo errado. Pare de falar. Vocês pessoas falam, falam e não dizem nada. Tenha calma.

-Como assim "calma"? Vocês não percebem que vamos morrer e...

-Não. Você não vai morrer, criatura. Mundos acabam, mas não morrem. Este mundo está indo para outro lugar.

-Um lugar? Mas que tipo de lugar é esse?

-Para a Montanha dos Contos Perdidos, é claro.-disse uma flor muito seca e de rosto enrugado.- Aquele lugar inalcançável antes do fim de tudo. É de lá que os seus fantasmas vêm. É para lá que todas as histórias vão quando são contadas pela última vez. Bom, pelo menos pela última vez durante um longo tempo.

-Nossa... a montanha. Eu nunca soube o que ela era. Mas esperem um pouco aí! Eu ainda não sei. Como assim "histórias"? Nós somos histórias?

-Histórias, contos, memórias, chame do que quiser.-disse a flor seca- Todas as histórias de todas as pessoas que vêm aqui.

-Outras pessoas? Existem humanos além de mim aqui?

-Obviamente que sim, minha flor. No momento, o seu mundo está acabando.E, provavelmente, o de outras pessoas também. Mundos acabam todos os dias. Esse lugar é imenso o suficiente para abrigar todos sem que ninguém se encontre. Além do mais, não sei se as pessoas veriam umas às outras se se encontrassem aqui. Pessoas diferentes vêem lugares diferentes. Você vê essa floresta, pois você é você. Não é?

-Eu... não entendo...

- Você deve falar com a sua mãe sobre isso. Ela pode te dizer o que está acontecendo, o que já aconteceu e o que vai acontecer. Ou até mais.

-Ué... e o que poderia ser mais do que isso?

A flor manteve aquela expressão imutável de quem está com vontade de sorrir. A garota se sentiu perturbada.

-Mas... faz tanto tempo que não vejo minha mãe... acho até que ela está me evitando por alguma razão estranha.

-Todos visitam suas histórias antes do fim do mundo.

-O que?

Mas de repente uma sombra passou pelo jardim, escura o suficiente para se destacar nas sombras da noite, e a menina se sentiu fraca e vazia. Tudo o que ela pôde ver foi o brilho de pequenos olhos se afastando antes de desmaiar.

* * *

A menina acordou sentindo que seu corpo pendia do alto e balançava suavemente. Estava sendo carregada por mãos frias e duras e mortas. Com os olhos semicerrados ela viu que estava... não sabia onde estava, e nem o que era aquele lugar. Era apenas vazio, sem árvores. Uma área infinita onde a floresta não existia mais, coisa que ela nunca havia visto. E aquela imensidão cinza acima dela, que era o céu, era de uma incompreensão assustadora.

A menina sentiu seu corpo sendo depositado no chão. Deitada, pôde ver com dificuldade a margem da floresta muito ao longe, uma esperança agora inalcançável.

E então ela ouviu alguém falando atrás de si:

-Oi, pequena.

A garota rolou o seu corpo lentamente, se virando para trás.

-Mamãe?- disse, levantando e dando passos cambaleantes em sua direção.

-Sou eu, querida.

Ela estava sentada numa pedra no meio de um pequeno lago, tão pequeno que parecia mais uma poça grande. No reflexo do lago a menina viu uma criatura com o rosto todo branco atrás de si. Ela se sobressaltou.

-Fique tranquila. Eu o mandei trazer você aqui.

Esse foi o verdadeiro fim do mundo para a garota. Não. Não podia ser verdade. Sua mãe não comandava os Agouros. Com certeza havia uma explicação para aquilo.

Ela olhou para a mãe incrédula e começou a chorar, realmente chorar, pela primeira vez desde que as coisas começaram a ficar estranhas.

A mãe se levantou da pedra e pulou para a margem do lago sem nenhum esforço. Depois olhou para o monstro e, com um aceno, o deu uma ordem, e a criatura foi sumindo lentamente dali, aos poucos de tornando uma neblina negra, começando pelos dedos, depois os braços até o seu corpo inteiro se dissolver no ar do fim do mundo.

A mãe se aproximou da criança e estendeu a mão em direção ao seu ombro.

A menina se afastou, olhos ardendo.

-Você é minha mãe? É mesmo? Pois ultimamente as coisas têm ficado tão estranhas que eu não me surpreenderia se você não fosse...

-Não. Eu não sou. Mas você nasceu de mim.

-O que você está tentando dizer?-a menina gritava.

-Eu sou você, criança. Mais velha. Eu sou você.

A menina sentiu dentes de gelo atrás do seu umbigo, e estremeceu.

-Isso é impossível.

-Sim. Mas não neste mundo. Eu criei você, fingindo que tenho novamente dez anos, e a coloquei aqui. Eu tenho dezoito agora. Eu estou sempre voltando para o passado e tentando recriar a mim mesma, já que não sou capaz de criar o meu futuro. Eu tenho medo. Estou sempre me reencontrando, brincando comigo, pois isso foi o que eu sempre fiz durante toda a minha vida: brincar sozinha. Nunca tive amigos nem amigas.

A mais nova olhou para a sua "mãe".

-Então... isso quer dizer que... eu sou igual às outras versões de mim mesma? Uma lembrança? Só mais um fantasma perdido na floresta?

-Eu não sei, querida. Mas você é real para mim, e é isso o que importa. Até eu posso ser uma lembrança de mim mesma. Afinal, somos todos feitos disso, não é? Memórias. Vivemos inteiramente aqui... dentro...-Ela segurou a cabeça com as duas mãos e começou a chorar baixinho.

A menina perguntou:

-Por que você quer que esse mundo acabe?

-Não sou eu. São eles. Eles me obrigaram. Eles...-e começou a chorar incontrolavelmente.

-Mamãe- disse a menina- Você é minha mãe, não é? Eu sei que é... eu sei. Pare com isso, por favor.-E as duas se abraçaram e choraram durante o que poderia ter sido um minuto ou uma hora, ou o ponto em que essas duas diferenças temporais se encontram. Foram reduzindo o choro a soluços suaves e reconfortantes, e se olharam, ainda nos braços uma da outra.

-Mamãe... quem são "eles" que a obrigaram a fazer isso?

A mais velha apenas apontou para o lago.

Ele era muito pequeno, mas a outra margem parecia estranhamente distante. Lá a garota viu duas criaturas de forma humana, mas de um tom acinzentado e esqueléticas, que se abraçavam e tremiam. Pareciam aguarda algo ou alguém. Às vezes acenavam para a margem de cá, chamando, apressando.

-Ah-disse a garota- Eu sinto que sei quem eles são. Sim. Eles são o tipo de criatura que obrigariam você a fazer isso.

-Eles dizem que eu não tenho mais dez anos. Dizem que eu tenho que mudar. Que tenho que abandonar essa minha identidade infantil e ser outra pessoa. Então, não tive escolha. Tive que arrancar o meu rosto.

A mais nova espantou-se.

-Hmm, claro... você é o sem rosto.- e depois fez uma pausa. E se sentiu desconfortável só de imaginar a cena que a outra acabara de descrever.- E... doeu? Quando você...

A mais velha apenas enxugou as lágrimas e sorriu gentilmente.

-Eu coloquei o meu rosto de volta só para vir aqui ver você. E me despedir. Me desculpe por isso... me desculpe.

A garota olhou para a versão mais velha de si mesma. O mundo começava a escurecer nas bordas.

Ela se lembrou de algo.

-A Montanha.

-O que disse, pequena?

-A Montanha dos Contos Perdidos. Eu estarei lá. Todos desse mundo. Nós não vamos morrer.

O ar vibrava e o mundo tremia de leve, mas num ritmo crescente. Um raio negro cortou o céu, e o som era o de todas as coisas chegando ao fim.

-São os Agouros! Eles já são muitos, não serei mais capaz de controlá-los... Oh, meu Deus... O que foi que eu fiz?

As criaturas tinham asas agora, e começavam a sobrevoar o céu, engolindo o brilho dos olhos das meninas lá embaixo.

-Eu vou estar aqui! Eu vou descer... vou descer a Montanha para ver você!

-Eu não sei do que você está falando!-gritou a mais velha, tentando inutilmente falar mais alto do que o fim do mundo.

Ao longe, as árvores começavam a cair. As mariposas voaram todas, deixando a floresta nua e seca. Elas gritavam suas frases, e a história formada era esta, desde o começo até o fim.

O chão começou a rachar. Um buraco se abriu na beira do nada, e tudo foi sugado para dentro dele.

* * *

A senhora estava em sua cadeira de balanço observando o mundo por uma janela velha. Ela descansava no andar de cima, no quarto, enquanto seus filhos preparavam o jantar lá em baixo. Estavam visitando a mãe doente.

Ela era solitária. Sempre fora. Mas não se incomodava com isso. Não mais. Ela tinha muito tempo para pensar em algo que atormentava sua mente há um bom tempo. Gostaria de conversar com os filhos sobre esse assunto, mas eles nunca davam a devida atenção às palavras de uma velha.

Ela tossiu, e o corpo inteiro respondeu com uma dor quase insuportável. A doença estava piorando.

Ela sentia que perdera alguma coisa. No passado. Mas sabia que não havia perdido tudo de uma só vez; algo fora se desgastando ao longo do tempo, perdido aos poucos e deixado para trás como migalhas de pão que haviam sumido e agora não mostravam mais o caminho de volta para casa. Ela não conseguia se lembrar o que era exatamente, mas sabia que era um sentimento amável e superior a tudo o que ela já havia sentido fisicamente. E sabia também que tal coisa havia rendido muitas discussões com os seus pais, discussões que trancafiavam memórias num lugar secreto, deixando um vazio no lugar.

-Mãe, o jantar está pronto!

Ela desceu as escadas carregando aquele vazio consigo. Não estava particularmente triste, mas frustrada com não se sabe o que. Só aquela sensação de que deveria ter feito algo no passado, ou evitado, para estar melhor agora.

Outra tosse, e a senhora levou a mão retorcida ao peito, apertando-o.

-Você está bem, mamãe?

-Como não poderia?- disse, sorrindo, já chegando ao pé da escada. Mas, ao soltar o corrimão, ela vacilou e caiu no chão.

* * *

Ela acordou na cama de um hospital. Abriu os olhos lentamente.

Viu os rostos de seus filhos. Somente os rostos, e nada mais. Estava cercada por olhos brilhantes na escuridão, e aquilo lhe era estranhamente familiar.

-Ela acordou. Mamãe? Está me ouvindo?

-Olá, pequena-disse, sorrindo.

A filha sorriu de volta. Os outros filhos, dois rapazes e mais uma mulher, possuíam uma expressão agradável no rosto, mas preocupados. A senhora percebeu.

-Ora, queridos, que caras são essas? O mundo não está acabando.

-O médico falou que... é irreversível, mamãe.-disse a filha que falara pela primeira vez. Era a mais nova.

A senhora assentiu com coragem.

-E vocês não estão desesperados, não é?- Disse, e uma tosse a obrigou a pausar a frase.-Já estava na hora, queridos. Estou muito velha e doente. Não aguento mais viver sofrendo. Isso será melhor para todos nós.

Os filhos assentiram, com um sorriso fraco nos lábios, mas não deixando de derramar lágrimas.

-Pequena-disse, se dirigindo para a mais nova, que estava segurando a sua mão- Você se parece comigo. Quando eu era mais nova. Parece mesmo... Ah! Não dê ouvidos a essa velha.-tossiu novamente.- Estou sempre buscando me ver no passado. Querendo me encontra comigo mesma...

Ela fez uma pausa, olhando para o nada. Ela começava a lembrar-se do que queria. Ela sorriu.

-Sim... é isso. Me deixe, filha... me... eu estou vendo a montanha.

Ela tossiu, e apertou os olhos por causa da tosse.

Quando os abriu de novo ela avistou uma montanha ao longe. Somente a montanha. E, de dentro dela, a senhora viu saírem, aos poucos, algumas versões mais novas dela mesma. Depois saíram umas criaturas estranhas, e uma floresta, e o mundo.

Lumontes (Lucas Montenegro)
Enviado por Lumontes (Lucas Montenegro) em 25/11/2017
Reeditado em 25/11/2017
Código do texto: T6182102
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2017. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.