O boto amarrado
Fazia uma tarde de domingo calorenta como só ela, parecia até que o sol estava mais perto da terra, em dias como esse as margens dos rios da região recebem mais visitas interessadas em se refrescar, cair na água é a diversão do povão.
De cara amarrada no meio do povo estava Maria Daslange, senhora de meia idade, gostava de saias longas e redinhas no cabelo e de observar a vida alheia, seus olhos castanhos eram meio fechados pareciam sempre ofuscados, (só pareciam) na verdade eram ágeis e sempre esquadrinhavam tudo muito rapidamente, ela tinha também um faro aguçado pra se meter na vida alheia, Maria apesar de ter nome e sobrenome era popularmente chamada de velha enxerida, fofoqueira ou intrometida.
Entrar na água, nem pensar, seu negócio era bisbilhotar a vida alheia, e eis que ao se sentar num velho tronco de árvore seus olhos se abriram um pouco mais para ver se estava realmente enxergando direito.
A filha de sua vizinha que fazia seis meses que ninguém via passeava desconfiada pela beira do Tocantins, mas o que impressionou Daslange não foi outra coisa senão a barriga proeminente da garota, ela calculou pelo tamanho que a garota deveria estar com pelo menos sete meses de grávida.
A gestante molhou a ponta dos dedos no rio e passou a mão molhada no pescoço se refrescando de leve, distraída caminhou a margem do rio com o vento nos cabelos toda magrela, o barrigão no pé da goela teve o desprazer de passar perto de Daslange.
A mocinha coitada ate se assustou quando viu Maria lhe secando, desconfiada mudou o seu rumo, mas não escapou da língua ferina que não podia deixar uma situação daquelas passar batida.
– Essa daí, tanto fez que achou o que queria! –falou Daslange a plenos pulmões, buscando plateia, mas fosse pela sua fama de encrenqueira ou pela sua inconveniência ninguém deu bola, nem a grávida Cecília que pôs a mão sobre o bucho e franzindo o cenho virou o rosto para o lado oposto.
Mordida Daslange pôs a palma da mão ao lado da boca e disse quase gritando.
– Só falta agora dizer que é filho do boto! – Maria Daslange cuspiu as palavras irritada. Bufando de raiva fechou a cara e olhou zangada para o lado, quase caiu do tronco de susto quando notou que havia sentada ao seu lado uma jovenzinha, aquela moça surgira do nada.
Dos pés à cabeça Maria analisou aquela criatura e diferente dos demais presentes ela nunca vira a garota antes.
– Deve ser de outro bairro – pensou consigo.
– Hei de onde você veio que eu não te vi chegar. – exigiu a senhora com ares de zangada quando na verdade estava alegre por ter o que mais gostava, plateia.
– Ora, eu sempre estive aqui, a senhora e que chegou sem notar minha presença.
Daslange ouviu aquela voz ela era fininha e melodiosa quase cantada e achou que ela soava arrogante, mas também casual talvez até despreocupada.
– A senhora pode repetir por favor?
– O quê – respondeu Daslange rapidamente.
– O que foi que a Senhora falou sobre o boto?
– Mas hein? Sobre o quê?
– Boto, a Senhora falou do boto!
– Eu falei?
– Sim falou! – confirmou a garota.
– É, talvez eu tenha feito isso sim!
– Mas como é mesmo o seu nome senhorita?
– Senhora! – Respondeu a jovem enfaticamente.
– Há, desculpe – Daslange olhou novamente para as feições da garota ela aparentava dezessete, dezoito no máximo.
– Meu nome? – a garota repetiu a pergunta mais pra si do que para responder, e depois de um tempo voltou ao assunto anterior como se não tivesse sido interrompida.
– Saiba a senhora, que o boto, não faz mais isso! – Desconversou a garota sem se identificar.
A senhora pôs-se de pé e fitou novamente a moça ela era magra, e tinha olhos muito verdes e sobre ela vinha uma nesga de sol que achava lugar entre as folhas das altas árvores a beira do rio e clareava seus cabelos que apesar de pretos sob aquela luz exibiam um estranho reflexo verde.
Daslange ia protestar para saber do nome da moça misteriosa mas não sabe porque o que saiu de sua boca foi:
– O boto não faz mais o quê?
– Não mexe mais com as filhas alheias!
Daslange queria interromper a moça, e perguntar como raios a conversa sobre Cecília sem vergonha ter tomado um hum tão diferente mas não conseguiu deixar de se contagiar pela empolgação da garota de falar e decidiu escutar ao invés de falar, só pra variar.
– O boto, como a senhora deve saber tinha o hábito de aparecer em noites de são João, todo pinpão, bonito de branco galanteador ele escolhia uma garota, encantava a dita cuja e a carregava pro, no outro dia a água a devolvia a moça grávida.
– Ora todo mundo conhece essa história besta mas...
– Pois é – Interpelou a moça misteriosa deixando Daslange no vácuo com seu dedo levantado. – O que pouca gente sabe é que ele já não faz mas isso a um bom tempo.
Desconfiando da sanidade da jovem Daslange decidiu levar na molecagem.
– E como foi que se deu esse causo? – Perguntou Daslange debochadamente.
– Foi assim – começou a moça toda contente a descrição do acontecido:
Lá numa cidadezinha dessas beira rio, igual a muitas que tem no alto amazonas tinha uma moça, muito bonita, e quando essa moça pôs os olhos no danado do boto numa noite de São João, bonito, alegre, bem vestido e galanteador, Mara se apaixonou assim que seu olhar o encontrou.
Paixão, dessas que cegam, que enlouquecem e tudo mais.
Mas Mara não era boba nem nada, ela era moça danada tinhosa como só ela sabia ser, reuniu toda força que tinha e correu.
Não pra cima do boto, mas pra casa de sua tia avó.
Correu quase meia légua o sol já raiava quando vislumbrou o casebre de madeira e sua tia avó já estava sentada à porta queimando fumo em seu cachimbo e lhe fitando intensamente.
Mara ficou vermelha, se sentiu transparente, sua tia avó era a única pessoa que lhe infligia tal sensação, a moça respirou fundo, sentou desgrenhada e suada no chão ao lado da cadeira da velha e ofegou.
– Benção minha vó!
– Benção minha fia! – A velha respondeu sem olhar a sobrinha neta sentada aos pés de sua cadeira.
– Vozinha, eu corri a noite toda pra pedir um negócio pra senhora.
– Um favor – fez-se um silêncio no qual a garota concluiu sua fala – um favor mágico!
A velha anciã baixou os olhos sobre a jovem.
– Eu sei minha fia!
– Sabe vozinha? – Mara não duvidava, afinal era por isso que estava ali, por sua Tia avó ser uma afamada bruxa.
– Sei sim!
– Só tem um problema fia!
– Que é o quê mesmo vozinha?
– Fia à magia, principalmente uma poderosa como essa, ela vai cobrar o seu preço...
Mara sentiu o tom de aviso na voz da velha, ela não se daria ao trabalho de falar se não fosse importante, porém o buraco no peito era maior do que o frio que sentiu de leve no estômago e decidida replicou.
– Não me importo!
– Eu o quero tanto que chega a doer vozinha.
– Tudo bem fia, fecha os oio e fica de pé pra mim.
Vagarosamente a senhora se levantou também, entrou em casa e voltou com um galho de árvore bem verdinho, ela murmurou palavras em uma língua que Mara não entendeu, enquanto com a mão esquerda passava o galho pelo corpo de Mara subindo e descendo.
– Diga Mara, ficar com ele, isso que você quer? – A voz já não era da de sua tia avó, ela soava como se fosse falada por três pessoas ou mais, sem contar o fato de que parecia ecoar de todos os lados em sua direção.
Mara fechou os olhos e mentalizou seu amado.
– Sim eu quero!
Mara sentiu um calor percorrendo seu corpo e abriu os olhos.
– Está feito – Mas já não era a voz sinistra de antes e sim a voz de sua tia avó quem lhe falava.
– Vá pra casa menina, não corra, vá caminhando, no caminho tome um banho de rio ponha um flor no cabelo e vista aquele vestido branco que lhe que eu te dei de presente mês passado.
– Já sei onde isso vai dar – interrompeu Daslange – enfeitiçado o boto ficou com a dita cuja e depois que o feitiço enfraqueceu ele chifrou ela ou então virou boto e sumiu de novo.
– Não disse a moça, o final não é assim. – Explicou paciente.
– Mara também pensou nisso, até pelo aviso da sua tia avó, mas se tivesse que viver com o danado que fosse um período curto ainda seria melhor que nada.
– E o que houve então?
Era último dia da festa junina, e o boto apareceu sem saber da menina linda que a atenção de todos chamava trazia em seu corpo um feitiço preparado pra ele, e assim que a viu caiu na rede como peixe que é.
E enamorou-se dela e ela dele e Mara entrou no rio com o boto e o boto com ela, e desde então ele não aparece mais na festa junina, não porque não queria mais porque Mara não deixa.
– Mas hein!
– Como assim? – Questionou Maria Daslange. – O que houve com Mara afinal?
– Não foi o boto quem virou gente pra ficar com ela, foi ela que virou boto pra ficar com ele!
– “O preço” do qual a velha bruxa havia exortado! – disse a voz da moça agora um tanto sombria.
– Mas que raio de história mais sem pé nem...
Daslange não concluiu a frase de olhos arregalados notou que estava quase escurecendo, olhou para o tempo, haviam dois homens bêbados saindo do balneário sorrindo alto e quando eles se foram o silêncio se tornou insuportável, uma sensação de nervoso brotou do seu íntimo e ela fez menção de se levantar também para ir embora e deixar aquela doida pra traz.
Splash, fez a água como se um grande peixe tivesse saltado e mergulhado novamente, e esse som foi o suficiente para fazer Daslange saltar de chofre.
Vendo a água ainda revolta e o lugar limpo onde deveria estar à moça que lhe falava, Maria Daslange sentiu a perna tremer e o coração acelerar, deu as costas e começou a correr.
Ainda ouviu novamente, aquela voz fininha e melodiosa quase cantada, que soava arrogante, mas também ameaçadora.
– Tchau Daslenge!
– E não se esqueça de deixar essa sua língua grande longe do meu amado.
Naquele instante a pele morena de Daslange ficou branca feito giz e ela correu ligeiro feito gato do mato e só cessou a carreira quando alcançou os dois ébrios.
O mais gaiato e provavelmente mais porre dos dois afirmou debochado.
– A senhora tá com cara de quem viu assombração dona!
Ofegante como estava Daslange puxou um pouco de ar que parecia não querer entrar em seus pulmões, fitou o sujeito desconfiada, e disse olhando pra trás o mais firme que pôde.
– Vi não senhor...