O OLHAR DA FERA (PARTE 01)

Pequenos ensinamentos nascidos no clamor da batalha, que frutificaram na amizade entre guerreiros, para os quais a vida somente tem sentido se for saboreada no campo de batalha da própria vida, com sangue, suor, lágrimas, valor e dignidade.

O que vou lhes contar não é uma aventura, e, muito menos, uma fantasia. É uma história. Uma história da qual participei …, ou melhor, me envolvi, não porque quisesse, mas porque foi necessário, e isso será melhor compreendido ao longo da narrativa.

Meu nome é Axel, e durante muitos anos fui camponês, vivendo com o que dispunha e sobrevivendo com o pouco que a natureza me concedia, como também o faziam, meus compatriotas. Não conheci meu pai, que segundo minha mãe, era um maldito saxão que veio, trepou e partiu. Ela também não conheci muito bem, já que morreu muito cedo. Vivi com o apoio dos habitantes do pequeno vilarejo em que havia nascido, mas sem amor maternal, ou algo parecido.

Casei-me aos dezesseis anos, com uma mulher chamada Freida, que pelo que ela própria sabia vinha das terras germânicas, e que também não conheceu nem seu pai, nem sua mãe; ela fora roubada por invasores das terras francas e deixada à própria sorte, sendo adotada pelo velho Knut, morador mais antigo da aldeia, que a encontrou quase à beira da morte, enfiada em peles velhas, dentro do oco de uma árvore. Juntos constituímos um lar, mas não tivemos filhos, por opção, já que não queríamos por no mundo, outras vidas para sofrerem com as intempéries do tempo e a fúria de invasores e criminosos.

Eu poderia viver assim até meu último sopro de vida …, nada me importava, ou me instigava, restando apenas uma vidinha monótona e sem expressividade. Tinha uma boa mulher, alguma terra, poucos animais, uma casa quente e confortável na medida do possível …, ou seja, uma vida tolerável.

A primeira vez em que eu o vi, foi em uma manhã fria de outono. Ele surgiu em meio à bruma cinzenta que era soprada pelo vento norte. No início, ele parecia uma figura borrada aproximando-se de onde eu estava, mas, pouco a pouco, ele foi se tornando visível em toda a sua grandeza. Seu nome, soube depois, era Eijavick, e seu ofício era guerrear …, com o tempo descobri que ele amava a batalha mais que qualquer coisa. O cheiro fétido do campo de batalha, os corpos alquebrados, os membros despedaçados, sangue, dor, gritos …, tudo aquilo parecia ser seu alimento predileto. Seu peito se enchia de júbilo quando estava em batalha …, guerreando e apenas isso.

Todavia, naquela manhã ele parecia apenas mais um estranho vindo das terras mais ao norte …, terras onde nada crescia, e onde, para sobreviver, era preciso conquistar. Era mais um apenas …, uma boca faminta e uma espada servil …, quando ele se aproximou de mim, olhei para ele e vi aquele olhar! Um olhar metálico, repleto de fúria …, fúria, não ódio …, Eijavick não nutria ódio por ninguém, mas continha em seu peito a fúria dos guerreiros do norte …, conquistadores que riam ante a iminência do combate e que matavam com um sorriso no rosto.

Ele estava montado em uma linda égua de batalha …, um animal grande e imponente, cujas patas afundavam no pequeno leito fofo de terra e neve, levantando enorme flocos que se projetavam no ar. As narinas exalavam o bafo quente que esfumaçava tudo ao seu redor. Tinha a pelagem de uma alvura impressionante e seus olhos negros pareciam engolir tudo que estivesse em seu raio de ação. Eijavick apeou da montaria e caminhou em minha direção. Ele usava uma pele de urso para protegê-lo do frio, mas como ela estava entreaberta na frente, notei que, por baixo dela, ele usava uma armadura de couro enegrecido, cujo brilho polido reluzia exibindo os desenhos que haviam sido cunhados em seu peitoral.

As botas de cano alto eram também polidas e Eijavick parecia marchar, ao mesmo tempo em que seus passos denotavam uma desenvoltura incomum para quem caminhava sobre a neve ainda fofa da manhã. Ele veio até mim e cessou seus passos assim que estávamos frente a frente. Por algum tempo, não houve palavra ou som …, nós apenas nos olhávamos …, muito tempo depois, eu aprenderia que esse era o modo de Eijavick interpretar as reais intenções de um homem …, se ele pressentisse a menor sombra de ameaça, sua espada, “esmaga ossos”, era desembainhada e mais um possível inimigo estaria a caminho das profundezas da Casa das Névoas para ter com o próprio Hel.

Naquele dia, eu estava com sorte, pois Eijavick não me viu como uma ameaça. Ao invés disso, ele fez uma saudação e pediu comida a abrigo por um dia. Como retribuição ele atirou uma pequena sacola de couro de carneiro que continha algumas peças de prata e outras de ouro. Imediatamente, eu lhe devolvi a bolsa e disse que ele poderia pagar o que entendesse justo pelo abrigo, mas que a comida era cortesia. Eijavick surpreendeu-se com minha atitude e acho que esse foi o primeiro momento em que nos tornamos próximos …, mal eu sabia aonde aquela simpatia poderia chegar.

Pedi a Edda, minha escrava saxã, que servisse guisado de carneiro, pão, queijo e cerveja ao viajante, enquanto me incumbi pessoalmente de cuidar de sua montaria. Eijavick disse que a égua chamava-se “Leika, a Fiel”, e quando escovei seu pelo farto descobri a razão do nome; Leika tinha diversas cicatrizes pelo corpo, denotando que já fora alvo de ataques no campo de batalha. Mas, melhor observando cada uma delas, percebi logo que ela sempre defendera seu dono como nenhum animal jamais fizera. Aquela égua de batalha era o animal mais portentoso que eu já havia visto e seu olhar negro e profundo, escondia sua alma fiel e confiável que deitara sobre seu dono toda a sua dedicação. Alimentei o animal e depois deixei-a descansar.

Dentro do meu pequeno salão de pedras romanas, Eijavick comia o guisado e sorvia longos goles de cerveja. Sentei-me ao seu lado e desfrutei da refeição. Edda estava cozinhando carne de coelho que eu caçara na manhã anterior e Freida, minha esposa costurava uma camisa de lã que ela mesmo tecera dias antes. Eijavick parecia faminto, mas tomava cuidado em não demonstrar isso de forma escancarada.

Perguntou-me que lugar era aquele. “Terra Perdida”, eu respondi, “Um bom lugar para viver e para morrer”, completei. Eijavick olhou-me de modo enigmático e, depois de alguns minutos, soltou uma gargalhada rouca e cuja sonoridade era capaz de assustar até os mortos.

-Nenhum lugar é bom para morrer! – disse ele, quando recobrou-se do acesso de riso – Apenas o Valhala é digno dos guerreiros …, apenas o colo de uma Valquíria é o melhor lugar para descansar a alma!

Não discordei nem concordei, pois Freida, minha mulher, sempre me alertou para não cair na conversa de um guerreiro, mas, no fundo, da minha alma, eu concordava com ele. Embora jamais tivesse participado de uma parede de escudos, ou ainda ombreado com cavaleiros em uma carga de combate, meu peito ardia de desejo de fazê-lo. Meu pai fora um guerreiro, e jamais recuou ante a iminência do combate e sempre me ensinou a fazer o mesmo …, mas, ele também me ensinou que o verdadeiro homem, o homem digno é aquele que cultiva a terra, cuida dos animais, casa com uma mulher obreira, enche a casa de filhos e envelhece olhando tudo que construiu.

Pensei em quantas vezes eu quis lutar, brandir espada, vestir uma cota de malha ou um peitoral de couro e lutar, suar e vencer!

-Onde posso dormir, fazendeiro? – a pergunta de Eijavick me trouxe de volta à realidade levando de volta para o lado sombrio de minha mente os sonhos que ainda teimavam em povoar meus anseios.

-Não sou fazendeiro – respondi quase em um resmungo – Sou um ferreiro …, e você pode dormir no quarto que fica atrás da minha oficina …

-Um ferreiro! – exclamou ele – Você é um ferreiro! Um homem dos metais! E o que você faz aqui, nesse fim de mundo?

-Eu vivo – respondi um tanto lacônico.

-Não, você não vive! – retrucou ele – Você vegeta!

Eijavick aproximou-se de mim e colocou sua mão sobre meu peito …, fechou os olhos e respirou profundamente.

-Não, ferreiro – prosseguiu ele, ainda de olhos fechados – Você não vive …, aqui dentro desse peito mora um guerreiro! Um guerreiro adormecido que você insiste em conter a todo o custo …

-Bobagem! – interrompi eu, um pouco irritado com aquela conversa – Eu sou um ferreiro …

-Você quer ser um ferreiro – devolveu ele, sem alterar seu tom de voz quase solene – Mas, na verdade, você é um guerreiro …, um guerreiro adormecido.

Antes que eu pudesse dizer alguma coisa, Eijavick tomou a caneca de cerveja e sorveu seu conteúdo em um só gole. Em seguida ele se levantou e caminhou até a porta, retirando-se em direção ao alojamento que eu havia lhe indicado. E naquela noite, não ouvimos mais a voz rouca do guerreiro que veio do norte. Fui dormir com minha esposa, enquanto Edda também fazia o mesmo. Na cama de palha, coberta com lã e peles de carneiro, eu e Freida nada conversamos, embora eu soubesse que ela não apreciara a presença de Eijavick e sua conversa sobre eu ser um guerreiro; minha mulher era uma pessoa prática, pragmática e sistemática, não aceitando a ideia de um homem entregar-se, de corpo e alma, à aventura e à matança indiscriminada de viventes.

E a bem da verdade, eu mal preguei o olho naquela noite …, pensando …

A madrugada ia alta e a lua tinha um brilho esmaecido pela bruma fria que soprava seu vento inanimado e cheio de augúrios, quando fui surpreendido por uma perda de sono. Embora cansado de um dia de labuta, repentinamente, eu estava acordado sem saber o porque.

Levantei-me com cuidado para não acordar Freida e cobrindo meu corpo com uma pele de urso, objeto de uma boa negociação com uma das tribos germânicas, caminhei até a porta, encostando-me na soleira e olhando aquela paisagem, ao mesmo tempo, árida e de uma beleza indescritível. Eu fora criado naquela região e o mais longe que havia ido fora até as terras dos germanos e nada mais que isso. Peguei-me pensando em como seria minha vida se eu tivesse trilhado o mesmo caminho que meu pai …, o pai que não conheci, mas que sabia tinha sido um guerreiro saxão.

Eu aprendera o ofício de ferreiro com o velho Knut, que, por sua vez, aprendera com seu pai; mas, ao longo de minha vida, preferi ser um camponês e não um guerreiro; preferi a simplicidade da terra ao convívio com a forja e o fogo …, lembrei-me da espada que fizera quando ainda era muito jovem. Knut elogiou meu trabalho e ao brandi-la no ar, para em seguida, golpear um talo de madeira, ficou maravilhado com o corte perfeito, dizendo: “Essa é a espada de um guerreiro …, tome …, ela é sua!”.

Não, definitivamente eu não nascera para guerrear …, eu era apenas um ferreiro e um camponês esforçado e com pouco, ou quase nenhum, futuro. Olhei para a lua nublada e brilho opaco e pensei que tinha uma boa vida; uma vida pacata, segura e com tudo aquilo que um homem precisa …

Todavia, em meu âmago, eu não acreditava naquela tênue sensação de segurança e tranquilidade, que se sustentava nas vigas podres de uma vida sem emoção e sem sabor. Não, definitivamente, eu não era feliz …, ela fora roubada de mim, como a vida me roubara um pai que jamais conheci …, e agora vinha aquele estranho do norte afirmando que eu era um guerreiro e não um camponês! Virando meu mundinho de cabeça para baixo …, quem ele pensa que é?

Um vento gélido e cortante soprou do norte e quando olhei para o horizonte, vi Eijavick me encarando; ele estava de pé na porta do alojamento e sua silhueta imponente parecia preencher perfeitamente aquela moldura de madeira grossa e dura. Vi um guerreiro olhando para mim …, e logo depois vi algo como um reflexo de mim mesmo! Afinal, o que eu sou? Não sei mais o que sou ou o que fui!

“Você é um guerreiro e um ferreiro, não um camponês!”. E foi naquela noite que compreendi meu desígnio, minha razão de existir …, meu verdadeiro eu …, naquela noite eu deixei de ser Axel, o ferreiro para ser Axel, o guerreiro que ombrearia paredes de escudos com amigos de armas, que lutaria até os músculos não aguentarem mais …, e que no final de tudo, e acima de tudo, sentiria o vigor da vida fluir por suas veias, e saberia que a viver tinha um sabor diferente …, um sabor as vezes doce, as vezes amargo, mas sempre melhor do que nenhum sabor.

Foi assim que o guerreiro do norte veio até mim e transformou minha vida em algo que valesse a pena …, foi assim que eu Axel me tornei um dos combatentes das forças de Eijavick, o Vicking do Norte que nasceu para guerrear …, nascera para vencer. Esta é a minha história …, e também a dele através de mim, seu companheiro, amigo e confidente quando necessário …, e agora, no fim de minha vida, narro os acontecimentos que mudaram a minha vida e a vida nas terras geladas do norte avançando pelo continente. Narro aquilo que ainda me lembro e que a decrepitude ainda não levou consigo …

Na manhã seguinte, Eijavick já estava de pé e com sua montaria selada e pronta para partir; eu, que mal havia dormido, saí de casa, levando nas mãos um pequeno baú de madeira, contendo peixe seco, pão, leite e carne de carneiro salgada; estendi para ele, esperando que ele aceitasse. O sujeito, aceitou, mediante duas moedas de prata.

Em seguida, ele montou em sua égua de batalha e girou o animal, como se pretendesse seguir seu destino. Preparei-me para uma despedida que supus não acontecer. E Leika ainda ameaçou dois trotes rápidos, mas foi impedida pelas mãos hábeis do homem do norte. Ele girou o animal mais uma vez e trotou em minha direção. Sentindo o bafo quente de Leika quase sobre meu ombro, vi quando ele inclinou-se sobre a sela, tocou meu ombro e sussurrou em meu ouvido, com voz pausada: “Vou procurar um velho amigo mais ao sudeste …, mas, voltarei …, voltarei para buscar você …, guerreiro!”

Meu olhar estupefato fez Eijavick sorrir com um ar estranho, mas sem maldades. Ele se empertigou sobre a montaria e olhou para a porta da minha casa, onde, eu sabia, Freida e Edda estavam a nos observar. Depois de mais um minuto de silêncio ele vaticinou:

-Ferreiro, você não é um camponês …, um homem é as escolhas que ele faz ao longo da vida, e você ainda não escolheu …, prepare-se para meu retorno …, esteja pronto para viver!

Imediatamente, Eijavick golpeou a barriga de Leika com suas botas, girou o animal e partiu em cavalgada sem olhar para trás, deixando-me ali, envolto em pensamentos, dúvidas e incertezas …, a única certeza que eu tinha era que ele voltaria …, e isso não demoraria muito …

Voltei para casa, sem encarar os olhares de Freida e Edda, que eu sabia eram apenas pura reprovação. E no restante do dia eu fiquei a pensar que um homem é feito de suas escolhas …, o que eu escolhera? A resposta parecia óbvia …, mas, lamentavelmente não era ...