Sombras Tristes

O Velho Cão havia me aconselhado a procurar por caça na floresta mais ao sul, a chamada Floresta Iluminada. Ouvia raposas falarem que as copas das árvores eram tão espessas que se encontravam no alto, como mãos que se entrelaçam. Durante a noite, eu mesmo já ouvira gritos zombeteiros vindos de lá, o vento trazia tanto sons quanto cheiros misteriosos. Mas os gritos não me assustavam, era preciso mais que uma algazarra para desconcertar um cão do exército. Se o Velho havia dito que lá encontraria comida, era porque certamente encontraria. Quando é velho o cão, se ladra é porque tem razão.

Mas a floresta se mostrou menos iluminada do que o nome sugeria, corria silenciosamente por sobre troncos e me esgueirava por baixo de arbustos. Meus olhos demoraram para se acostumar com o local, mas meus ouvidos estavam de pé e meu focinho sentia aromas nunca antes experimentados. Sentia um forte cheiro de bananeiras, raposas, medo e de pelos encharcados. Quanto aos pelos, constatei que eram os meus.

O chão parecia molhado e me lembrava o convés do navio que chegara deste lado do mundo, o convés, por sua vez, me lembrava a tristeza que carregava em meu coração pesado de sonhos incompletos e a esperança que eu ainda fingia ter. O que vem depois da caça? Uma refeição sem sentido.

As coisas estavam calmas, até eu farejar um cervo, cem metros depois já estava o vendo, além de escutar. Seus pelos eram mais claros do que os que eu já tinha encontrado e tinha algo dócil demais em seu focinho, era quase canino. Isso me fez repensar, se mataria alguém que lembrasse a mim mesmo, lembrei que a resposta era sim. Na guerra tive de matar irmãos de espécie, mas nunca de raça. Assim, então, o persegui ferozmente. Meus latidos eram firmes e alertavam a criatura para desistir da fuga, mas ela não me dava ouvidos e continuava a saltitar pela floresta escura, tão rapidamente quanto uma cobra.

Havia passado tanto tempo o perseguindo que já o nomeara como Cervinho, decidi que estava na hora de ter meu jantar, enchi meu peito militar de ar e flexionei as articulações para saltar no pescoço da criatura. Mas então uma mão cabeluda puxou minha cauda com a força de três cães.

Quando virei meu pescoço, vi que era uma criatura semelhante aos humanos, parecida em particular com meu antigo dono. Como o seu puxão não havia sido amigável, não pensei em ideia melhor que fugir. Ele insistia em me seguir, quando me voltava em sua direção e rosnava, ele sempre subia em uma das árvores com um sorriso zombeteiro nos lábios. Era inútil enfrentá-lo, tornei a correr insistentemente na direção oposta a do primata. Descobri que já não sabia em que direção estava correndo, na confusão com o Cervinho perdi completamente os pontos cardeais e debaixo daquelas árvores, não tinha um sol para me ajudar. Claramente não estava correndo a Norte, senão já teria chegado em saído da Floresta Nada-iluminada.

- Deixe-me em paz, símio! - gritei em um alto latido, mas a criatura apenas riu em resposta e puxou a minha cauda pela sexta vez. Eu estava contando, pois seria o número de mordidas que devolveria no pescoço daquele valentão, quando ele não tivesse árvores para se pendurar.

- Venha me encontrar onde meus dentes possam te alcançar, escória da floresta! - lati novamente, estava com tanta raiva que já não conseguia considerar um cenário onde o macaco sairia vivo. Era a morte dele que eu queria e era isso que eu conseguiria, assim que o atraísse para fora dali. Porém, antes disso, ele puxou minha calda mais uma vez.

Virei-me com meus olhos vermelhos de tanto ódio e o encarei, rosnando como um verdadeiro cão da raça Boxer. O macaco não retirou o sorriso de seus lábios zombeteiros, ele sabia que eu não o alcançaria tão rápido quanto ele saltaria.

- Por que faz isso, criatura saltadora!? - perguntei-lhe, com a voz tão grossa quanto poderia estar. - Por ventura, mordi seus parentes ou subi em suas árvores?

- Cão bobo, cão bobo! Uuuuaaa! - guinchou ele e lhe fez uma careta aterrorizante. Pegou um punhado de terra molhada e lançou no meu rosto canino. Me sacudi, entristecido.

- Um dia lhe capturarei e matarei de morte canina, bípede. Se você se desculpar por estas transgressões e me deixar em paz, talvez eu não volte para a sua ruína. - falei com uma latido que deveria soar verdadeiro, mas pareceu até para mim bem melancólico. Percebi que não era possível usar diplomacia quando o primata lançou um graveto em meu focinho.

Já sem paciência, avancei em sua direção e saltei para mordê-lo, quase senti o gosto de sua morte em minhas presas, poderia jurar que havia sangue em minha boca. Mas no momento seguinte ele estava no alto de uma árvore, gargalhando, e batendo palmas.

- Uuuuaaa! Uaaaa! - continuava a guinchar e rir.

- Eu juro pelos meus pelos que um dia me banquetearei de tua carne e farei de teu sangue meu vinho. - sabia que era inútil tentar escalar, mesmo se conseguisse subir, o macaco saltaria para outra árvore tão naturalmente quanto um pássaro voa ou a chuva cai.

Corri tão rápido quanto um Galgo Inglês, estava exausto e quase não conseguia reunir forças em minhas patas. Contei mais três puxões em minha calda. Dez puxões era o total. Dessa vez não me virei, aguentei suas provocações com relutância mental e segui em frente como um bom cachorro. "Fugir hoje, para latir amanhã", dizia sempre meu irmão, do outro lado do mar.

Minha visão estava embaçada de tanto nervosismo, se a criatura me segurasse e me amarrasse, eu estaria completamente perdido. Nem mesmo meus vários irmãos podiam me salvar, oceanos nos separavam. Mas quando pensava que ele já estava me alcançando, vi a luz se mostrar em frente. Percebi que a floresta naquele ponto estava em cima de uma colina, mas quando tentei parar já rolava ladeira abaixo. A cada giro podia ver o sol se encimando, não sabia se minhas patas estavam doloridas ou tão somente cansadas.

- Agora a situação ficou peluda. - resmunguei, enquanto me erguia cheio de dores. No topo da colina o símio me encarava, altivo e glorioso, nos limites de sua floresta. Descascou uma banana, aquele ponto da floresta estava cercado por bananeiras, e a lançou na boca. Devorou a fruta tão rapidamente quanto um cão filhote bebe leite. Agora o sol me mostrava que estava a sul da Floresta Iluminada. Assim, para encontrar o Velho Cão novamente ou eu encarava o bípede raivoso ou dava a volta na floresta. Me custaria dias, no entanto não sabia quantos mais conseguiria ficar sem comer. De uma coisa tinha certeza, ele não sairia do seu refúgio cheio de galhos.

- Um macaco comendo uma banana, o que vem a seguir? - lati baixinho. - Um coelho comendo uma cenoura?

Estava faminto e com um juramento a cumprir, não era o melhor estado em que o grande Boxer havia estado. Segui na direção oposta à floresta, com passos lentos e pensamentos tristes. Devaneios de memórias, do meu tempo de glória, me perturbavam constantemente. Tentava ignorar os sons que o primata fazia, de longe, e as gargalhadas que ele lançava para me provocar. Ele queria que eu voltasse e assim que chegasse, ele daria um jeito de puxar minha cauda e rir do meu focinho. O seu rosto estúpido estava gravado e desfaria o seu sorriso um dia, com minhas presas pontiagudas.

Desde que desembarcara neste continente, há três meses, nada de bom acontecera. Meus passos eram curtos, desalinhados e desanimados. No momento em que avistei um vilarejo, esperei que não estivesse esvaziado como todos os outros a norte da floresta. Pelo menos com algum humano lá, poderia ter a esperança de jogarem uma ponta de osso para um velho cão magro. Talvez se soubessem que eu era um verdadeiro veterano de guerra, me dessem seus próprios pratos, era isso que deveriam fazer. "Arrisquei minha vida servindo o país", pensei que poderia dizer, mas lembrei que não estava no país pelo qual lutava. Minha nação me abandonara aqui, assim como meu dono.

Ouvi patas silenciosas, ao menos o macaco não estragara meus ouvidos. Então parei, tentando detectar de onde vinham. O cheiro de sangue de coelho me entregou a posição e prontamente eu estava observando um enorme Pastor Alemão.

- Você, encachorrado, parece bem esfarrapado pro meu gosto. Andou entrando em confusão no território dos pastores?

Por essa meu cérebro canino não esperava, perambulei na parte norte e lá não se tinham notícias de cães governando aldeias. Uma coisa era certa, pelo cheiro de urina que vinha de lá, haviam marcado bem seu território.

- Fui para a floresta caçar, mas um macaco não parou de me importunar. Sabe se naquele vilarejo há pessoas, cão amigo? - falei, tomando cuidado com as palavras.

- Me chamo Colt da raça Pastor Alemão, vira-lata. Devia mostrar respeito ao falar com um cão de nascimento elevado. - disse o pomposo cão com seu pelo amarelado com manchas negras em locais característicos. - Devia se curvar.

- Fique sabendo que está insultando Androme da raça Boxer, sou mais raro e meu nascimento fica a três degrais mais alto que o seu. - lati, enchendo o peito orgulhosamente, naquele momento parecia tão alto quanto Colt e a fome parecia ter sumido. Podia citar inúmeros feitos em batalha, mas só a minha raça havia feito o Pastor entender com quem falava.

O cão então parecia estar ponderando sobre minha frase. Rodeou-me, mas tomei o cuidado de nunca ficar de costas para o cão de guarda.

- Eu nunca havia visto mesmo um vira-latas com tantos músculos. Acho que não existem cães da sua raça por aqui, - ele falou com uma voz mais agradável. - não o importunarei mais, Vossa Caninidade. Mas já que não sabe a quem pertence aquela aldeia, deve estar perdido pra cachorro.

- Eu estou sim. - admiti. Não conhecia nada a sul e precisava voltar com comida para o Velho Cão.

- Pertence ao clã dos Pastor Alemão, eu sou um cão patrulheiro e estou em uma missão. Preciso ir agora.

- Eles me darão comida na sua aldeia?

- Você é de uma raça nobre, certamente. Mas ninguém dá comida a ninguém de pata beijada. " De onde venho, eles davam ", pensei em silêncio. Queria estar de volta no meu quartel e rir dos insultos que os soldados diziam uns aos outros enquanto afiavam espadas.

Assim, voltei-me para o sul e caminhei vagarosamente, quase sem energia. Naquela direção havia uma outra floresta, esperava não encontrar macacos ali também. Colt seguiu para leste, mas, com algum dó, deu meia volta e me encontrou.

- Se me ajudar em minha missão, te alimento quando voltarmos. - ele falou, tentando parecer mais duro do que era. Perguntei-lhe prontamente qual era a missão que sua aldeia tinha lhe conferido, então o Pastor Alemão começou a latir:

- Matar um pescador que prendeu um amigo nosso. - disse ele, e começou a correr para leste novamente. O segui com uma velocidade menor, eu tinha de me fortalecer para acabar com o macaco e levar comida para meu conterrâneo. Se matar alguns humanos era o que eu tinha de fazer para me manter vivo até lá, faria isso com pesar, mas faria. Na guerra já havia matado dezenas de homens, ao passo que tentavam me cortar com espadas. Matar um pescador com uma vara de pescar não seria dever difícil.

Allan Marques
Enviado por Allan Marques em 29/07/2017
Código do texto: T6068423
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