BODOQUE - O CACHORRO PESCADOR

Sei que a verdade às vezes as coisas tem um jeitão esquisito que até parece mentira, mas a verdade é sempre verdade!

Está é uma história da minha infância e se passou pelas bandas do Ribeirão Doce, um pequeno povoado, que ficava uns 15 km de Iacanga que situa-se a 400 km de distancia de SP. Na época estes vilarejos eram chamados de Patrimônio, denominação que antecedia a categoria de município. Ribeirão Doce, pertencia, portanto ao município de Iacanga. Ali moravam na década de 60, umas 300 pessoas. Cresci andando por quelas bandas, então posso contar:

Haviam no patrimônio do Ribeirão Doce várias fazendas e sítios. A economia do local girava em torno delas. Havia uma em particular, muito grande, chamada, Faz Ribeirão Doce. Fazenda de café e gado e nela moravam vários caboclos que trabalhavam no cultivo das plantas e do cafezal e ainda na criação de gado de corte. Um dos caboclos mais conhecidos e mais antigos da fazenda, chamava-se Sebastião Pereira, conhecido como Tiãozinho.

Tiãozinho era trabalhador como poucos, mas seu ponto fraco era a pesca. Nunca vi gostar de pescar daquele jeito. Mãducéu!!!

Voltava do eito por volta das 5.30 da tarde com sol ainda a pino e mal chegava ao ranchinho, já pegava a "tralha", de pesca, formada por varas de pesca, embornal, chumbadas e anzóis, além de um pequeno enxadão para arrancar minhocas. Levava também alguns empates de aço, colocados próximo ao anzol, para o peixe não cortar a linha) e claro, vários tipos de linhas de pesca das mais grossas às mais finas.

Ele sempre saia para dar uma pescadinha no riozão que passava no fundo da fazenda. Nome do rio? Ribeirão Doce, claro!

Uma vez no rio, ele pegava o remo e a canoinha estreita feita de um tronco escavado e descia rio abaixo, ou subia rio acima, para pescar nos lugares favoritos que só ele conhecia. Eram os seus “Poços cevados”, onde jogava quirela de milho para atrair os peixes e onde havia muito peixe, devido o trato constante. Não entregava estes lugares de pesca para ninguém. Maior segredo.

De fim de semana podia esquecer de Tiãozinho. Ele passava todo fim de semana pescando. Voltava sempre carregado de peixes que vendia na praça do povoado no domingo à tarde. O danado tinha uma sorte incrível. Era imbatível e gostava da fama de bom pescador que desfrutava. Ficava todo cheio, quando elogiavam suas habilidades.

Ele gostava tanto de pescar, mas tanto, que resolveu até treinar seu cachorrinho BODOQUE na arte da pesca.

O cachorrinho não largava o Tião e já era companhia certa nas pescarias, bastava o Tiãozinho pegar suas varinhas de pesca e lá estava o Bodoque a saltitar pelos caminhos estreitos.

Assim ensiná-lo a pescar foi um passo. Ele sempre pulava dentro da canoa e ia ele de timoneiro com o rabinho abanando e olhos acesos nas ondas formada pela quilha do bote. De tanto ir ao rio e acompanhar a pescaria, não é que o danado do cachorro aprendeu mesmo a pescar. Te conto como foi:

- No início, Tiãozinho ensinou Bodoque a ficar boiando na água, metade do corpo dentro d'agua, próximos aos peixes que, as vezes, passavam ao seu redor, atraídos pelas iscas atiradas na água. O cachorrinho ficava lá horas e horas boiando e quando pensava em voltar para a canoa, lá vinha bronca do Tiãozinho. Quando permanecia por longo tempo, ganhava um naco de linguiça que o Tiãozinho levava no embornal.

Tiãozinho ensinou Bodoque a tentar pegar os peixes com a boca, mas os peixes sempre escapavam. Vai daí, que ele teve uma ideia brilhante.

Um dia ele prendeu com fita isolante o "batonzinho" do cachorro, deixando-o para fora e parou de jogar iscas costumeiras. Os peixes vinham, então, loucos para morder o troço do Bodoque, achando que era uma salsicha apetitosa e aí...pá... Bodoque com medo do ataque, metia-lhe os dentes na fuça do peixe e depois que o pegava, não havia Cristo que o fizesse solta-lo.

Também sô... pudera...batonzinho só tem um...e quando a integridade da ferramenta está em jogo, não tem acordo... Ah ali ninguém tasca!! .... Tomar uma mordida ali, é ruim, hein? úúúú... nem pensar.. !!.

Depois de alguma prática, BODOQUE aprendeu a pôr para fora, por conta própria o negócio e também aprendeu a nadar até o barco para entregar o peixe bufando, para Tiãozinho.

Logo a coisa se sofisticou tanto que Tiãozinho o ensinou a levar o peixe para a casa e a partir daí a coisa ficou fácil para ele.

Tiãozinho as vezes, quando estava atarefado cozinhando, nem ia pro rio. Mandava o Bodoque e dentro de meia hora, lá estava ele com um curimbatá, bagre ou piava na boca.

Bodoque ganhou fama rápido. Tentaram comprar o cachorro. Ofereceram troca por um cavalo ou uma vaca de leite, mas qual o quê! Tiãozinho, não vendia, não trocava nem emprestava o Bodoque. Nem mesmo para o fazendeiro ele cedia o Bodoque. Era seu e pronto. Maior ciúme do cachorro. Bodoque virou uma atração em Ribeirão Doce e ate en Iacanga, há longos 12KM de distancia, duas horas à cavalo..

Um dia de manhãzinha, encontrei o Tiãozinho desesperado na beira do Rio. Bodoque sumira!

- Minha Nossa Senhora, me acuda, gritava ele!

- Meu cachorrinho, sumiu, “home du céu!”...desde ontem à tarde!!!

Eu o mandei ao rio pegar um peixe e ele não voltou. “Percurei” ele a noite toda e nada, dizia desconsolado. Acho que uma sucuri pode ter engolido ele. Ô desgraceira sô...!!! E lá ia ele de um lado pro outro do rio desesperado. O pobre era só lamentação.

Com pena dele, dei-lhe a ideia de pegarmos a minha canoa de aluminio com motor e descer rio abaixo e ver se achávamos alguma pista do Bodoque. Cinco horas depois, nada. Nem sinal do cachorrinho pescador! À noite ele aparece, tentei consolá-lo.

Na volta, para acalmar o pobre homem, convidei-o para dar uma pescadinha no dia seguinte para espairecer e continuar a busca. Disse a ele que iria a cidade logo cedo e lhe compraria novos equipamentos de pesca, varas de pesca importada com carretilha, linha grossa, super resistente, para pegar peixe grande e mais tarde comprar-lhe-ia outro cachorro e ele com o tempo poderia ficar treinado em pesca também. Tiãozinho não ficou muito entusiasmado, mas não ia resistir a um convite para uma pescaria, não é mesmo?

Na manhã seguinte, com a nova tralha, lá estávamos nós dois, no meio do riozão a pescar no meu barco a motor.

De repente, não mais que de repente, um puxão na vara do Tiãozinho..mas não foi um puxão qualquer. Foi um puxadão mesmo. Foi tão forte, que o Tiãozinho que estava na outra ponta do bote, veio voando em minha direção e pá.... trombou comigo e caímos os dois para dentro d’agua, atirados com violência. Pior é que fiquei enganchado no barco e o peixe nos arrastando para o fundo do rio com barco e tudo.

A puxada foi tamanha, que o Tiãozinho que caiu na frente, mergulhou e enfiou a cabeça na lama do fundo do Rio e ficou com os pés para cima. Eu tive mais sorte e caí pro lado, batendo as costas no fundo do rio. O barco soltou-se de mim e ficou a deriva. O rio tinha uns 6 metros de profundidade. Quando comecei a nadar, vi o pobre, naquela situação, então agarrei-o firme nas pernas e o puxei para cima.

Já na superfície, olhamos e vimos a vara de pesca do Tião boiando num remanso, subindo e descendo como se tivesse tomada por algum espírito ruim. Afundava e boiava e quando boiava subia vários metros fora d’agua, tal a força que a subjugava.

Tiãozinho nadou até ela, amarrou a linha na carretilha grande e de dentro do bote, começou a tentar içar o peixe. Foi aí que o bicho enfezou de vez. Deu um carreirão pela água, arrastando o barco em alta velocidade pelo rio acima. A sorte foi que 50 metros adiante, o barco enroscou em uma árvore gigantesca que caíra no leito rio e lá ficou enganchado, segurando o peixe. Com a batida, Tiãozinho foi novamente arremessado por cima do tronco da árvore caída e mergulhou no rio, perdendo até botina, além do boné com o impacto.

Tiãozinho que conhecia o negócio de pescar como ninguém, agiu rápido. Nadou até a margem e ordenou-me que fosse até a fazenda e pegasse uma mula e amarrasse nela o Chinchão, uma barrigueira bem grossa e trançada que passa no corpo do animal e que é usada para laçar e içar os bois arredios.

Logo cheguei com a mula na beira do rio, toda paramentada, Tiãoziinho engatou a ponta num laço de couro e amarrou este no chinchão na mula. Nesta altura dava pra escutar o urro bravo do peixe, vindo do fundo do rio, levantando bolhas na água. Era assustador !

Preso pelo laço, agora amarrado na mula,Tiãozinho ordenou que eu montasse na Gaúcha e puxasse o peixe para fora.

- Agora quero ver se esse peixe sai ou não. Gritou ele!

Gaúcha era uma mula jovem, forte e alta. Logo que dei o sinal ela arqueou para içar o peixão. O esforço da coitada foi grande, mas inútil. De joelhos a mula metia toda sua força de empuxo na direção contrária à do peixe, mas o peixe continuava irredutível. Não mexeu nem um centímetro.

Vendo a situação dei um grito pro Tiãozinho :

- Espera aí que vou buscar o trator. Com a mula não vai dar. O peixe é muito resistente! Deve estar enroscado em algum tronco no fundo do rio.

Eita..gritou Tiãzinho....! Que bicho dos infernos é esse!!

Dez minutos depois lá estava eu com seu Ambrósio no Massey Fergusson 296 com tração 4x4 na beira do barranco do rio.

-Agora quero ver, gabava entusiasmado Tiãozinho. Nesta altura, entretido na luta com o peixe, ele nem se lembrava mais do pobre Bodoque.

Laço amarrado no pino de engate do trator, a máquina começou a urrar, queimando óleo diesel, para arrastar o diacho do peixe para fora.

As rodas grandes de traz começaram a afundar na terra mole, mas as da frente garantiram o serviço. 5 minutos depois a cabeça do bruto, começou a aparecer finalmente.

Gentem.... !! Não parecia um peixe! Parecia um monstro pré-histórico, saindo da água. O peixe tinha uma cabeça do tamanho da frente de um submarino de .guerra.

Quando tiramos o bicho da água é que vimos o tamanho da encrenca. O rio, que tinha uns 40 metros de largura e baixou sua água, quando o peixe saiu. Podia se ver a margem mais baixa a indicando que o nível da água tinha diminuira uns 3 centimetros.

A esta altura, tinha se juntado várias pessoas para ver o peixe. Daí a pouco, providenciaram uma carreta Scania da companhia que fazia uma estrada na região para encarrar o peixe e levá-lo para o patrimônio. Com ajuda de uma retroescavadeira, dois guindastes, içaram o colosso para cima e o colocaram no Scania. O caminhão rangeu quando o guindaste sotou o bruto em cima da carroceria.

- Metade! Porque a outra metade foi para fora o rabo arrastando no chão. O Scania urrou para sair do lugar em direção ao povoado.

Quando chegamos ao patrimônio com o peixe foi aquele tumulto. Gente das fazendas próximas se aproximavam para ver o peixe. Mediram o bicho 12 metros !!

Estavam todos ainda embasbacados com o peixe quando de repente escutaram um ruído fino que parecia vir de dentro dele. A turma saiu correndo. O bicho parecia estar vivo. O cabo Norato, já pegou o revolver, pronto para dar um tiro na boca do infeliz, atentando com cuidado, para ver de onde vinha o rosnado.

Norato aproximou o gancho do guindaste na boca do peixão e prendeu-o no lábio superior do gigante e o operador do guindaste começou a abrir a bocarra do bruto.

Com a boca aberta, em que cabia um homem de pé, pode-se ouvir melhor o grunhido vindo das entranhas do peixe Parecia um rosnado de raiva. Cabo Norato, ia entrar para ver o que era, mas recuou, disse que tinha família e aquilo não era afinal, serviço da polícia.

Quando a boca do peixe se abriu de vez, Zecão do Bispo um baiano arretado e caçador de tatu, não se fez de rogado. Com sua cartucheira dois canos, Belga calibre 24 na mão, resolveu entrar na barriga do peixe disposto a descobrir o que havia lá e matar a alma da criatura de vez. O barulho soou ainda mais forte.

Todos ficaram arrepiados e apreensivos e lá foi Zecão do Bispo para dentro do peixe, passando pelas guelras gigantescas, já adentrando na garganta. Todos esperando pelo tiro, quando Bispo dá um grito com eco.

- Hei pessoooaaar, adivinhem quem está aqui dentro? Dou um doce, se acertarem, disse lá do fundo, para a ansiosa plateia.

Quem..? perguntaram todos a uma só voz.....!!! Diz logo, homem!!

-O Bodoque gente...!!!! De fato, o Cachorrinho estava lá, grudado no fígado do peixe e com um chamado do Tiãozinho, saiu para fora todo molhado de sangue e sujo de um limbo verde.

Mais tarde, quando abriram o peixe é que viram que Bodoque já tinha comido um bom pedaço do fígado e uma parte do estômago do peixe.

Foi uma alegria só. Tiãozinho não parava de falar, que seu cachorro iria matar o peixe mais cedo ou mais tarde. Gente ..aí a fama do BODOQUE cresceu mesmo, até para outras cidades da região, virou celebridade e era muito comum as pessoas virem ao patrimônio, só para conhecer e tirar fotos com ele e o orgulhoso Tiãozinho. Imagina se houvesse internet naquela época daria milhões de curtidas!

Tiãozinho já passando dos 70, ainda conta nos dias de hoje, as estórias do Bodoque a quem encontrar. Que orgulho tinha aquela figura do seu cachorro!

- Eita cachorrinho batuta.. encarou o peixe sozinho, diz ele!! Se deixasse ele matava o peixe mesmo. Peixe do tamanho de uma casa. Ah se não matava!!! O fígado do monstro já tinha ido pro vinagre, depois ele iria comer o coração do bruto!

Para encurtar a estória, eles cortaram o peixe todo e dividiram os pedaços. Deu carne para todo mundo. Até gente de outras cidades próximas levaram o seu naco. Foi um tal de comprar freezer para armazenar o peixe que parece que a Brastemp aumentou as vendas de freezers, naquele mês no estado em 10%.

Olha não quero impressionar, mas faz muito tempo que esta estória aconteceu, e, no ano passado, depois de longa ausência, fui até Ribeirão Doce, agora já uma cidadezinha pacata e bucólica. Mudaram o nome dela para BODOQUE.

Quando cheguei lá, o pessoal mais antigo, meus conhecidos, ia fazer churrasco de peixe curtido no sal e me convidaram para degustar.

Claro que aceitei. Ainda mais eu que curto uma de vegetariano de ocasião. Quando perguntei que peixe que iriam servir, falaram-me que não sabiam o nome, mas era um peixe grande que estava congelado e curtido no sal há muito tempo, mas que era o melhor que havia pra churrasco, por causa da gordura.

Nem acreditei que ainda poderia ser carne daquele peixe, mas também não perguntei...quem iria ligar para a estória do animal que se vai comer, não é mesmo?

Que o bicho era gostoso, ah isso era !! Carne consistente, com sabor curtido no sal, de primeira mesmo. Muito boa! Nunca vi nada igual! Melhor ainda com aquela cachacinha da região!

Ah ...quando saia da cidade é que dei conta que na praça central havia uma estátua de Bodoque. Mando aí para vocês verem os heróis de Bodoque city. Fotos do PEIXE? Bem eu mesmo não tirei, mas havia um lambe-lambe no local que tirou. Está nas publicações abaixo já digitalizada e colorida, mó chique!

Vejam só demorou mais de 50 anos para eu achar esta foto no facebook, nem acreditei quando vi, bendito face! Eu queria mesmo ter tirado uma foto do peixe com a minha maquineta, porque sempre me chamaram de mentiroso, mas com aquelas máquinas antigas não daria para enquadrar o peixe tão grande, não é? O bicho era colossal.

Esta foi a história do peixe pré-histórico do Ribeirão Doce! Como dizem os caipiras de lá:

- "sô se acredita bão, mas sucê não acredita, pode perguntá que a coisa foi assim ou ainda pior!

Celio Govedice
Enviado por Celio Govedice em 27/04/2017
Reeditado em 02/12/2020
Código do texto: T5982924
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