O CORAÇÃO DA RAINHA

O reino de Aluap é comandado pela rainha Egnes, que mora em um luxuoso castelo no alto de uma montanha. O castelo é cercado por muros tão altos que quase chegam a tocar o céu. Os guardiões vigiam a cada segundo a morada da rainha. Lobos com dentes afiados e olhos sangrentos eram os principais guardiões do castelo. Alguns coelhos ficavam na porta principal, também para impedir a tentativa de alguém ou alguma coisa atingir Egnes. Os coelhos pareciam fofos, mas ninguém poderia tocar neles. Soltavam bolhas de sabão pelas orelhas todas as vezes que sentiam ameaçados. As bolhas eram tóxicas, causavam queimaduras insuportáveis e rapidamente levavam a morte.

Egnes aparecia todas as tardes na janela central do castelo para que todo o reino de Aluap a adorasse. Era um ritual obrigatório para todos. Quem se recusasse já sabia o fim que teria. Às três horas da tarde ela surgia com seus cabelos loiros, olhos tão azuis quanto a água do mar e sua pele macia como uma almofada e branca como a neve. Era muito linda. Qualquer homem desejaria casar com Egnes, mas por trás de tanta beleza escondia um coração cheio de maldade.

Era manhã. O sol ainda estava pouco tímido e se hesitava em aparecer. O povo e os seres do reino já estavam trabalhando. Todas as moedas arrecadas eram entregues a rainha. Naquele dia um jovem rapaz chegou a Aluap. Estava em uma carroça. Um cavalo já um pouco idoso a puxava. Dentro da carroça podia se ver um amontado de coisas, que estavam cobertas por um pano vermelho. Era impossível saber o que o jovem trazia. Mas o volume de coisas era perceptível.

O jovem desceu da carroça e cumprimentou um gnomo que passava ali.

- Olá.

- Quem é você? Eu nunca o vi por aqui. O gnomo não escondia a desconfiança.

- Hali. Meu nome é Hali. Eu venho do sul. Sorriu o jovem.

O gnomo continuou desconfiado, mas não interrompeu a conversa.

- Hum... O que lhe trouxe até aqui? Todos em Aluap lutam pra sair daqui e não é comum alguém querer habitar neste lugar.

- Como disse Sr... Hali parou esperando que o gnomo lhe dissesse seu nome.

- Marlus.

- Muito bem. Como disse Sr. Marlus venho do sul. Uma terrível guerra está devastando tudo por lá. Depois que eu perdi minha família, não tinha mais o que fazer naquela terra.

O gnomo abaixou a cabeça e ao se levantar seu rosto mostrava uma expressão de tristeza em ouvir as palavras de Hali. Uma lágrima escorreu em seus olhos.

- Venha, disse Marlus. Vamos até minha casa. Provavelmente você deve estar com fome e sede. A caminhada do sul até aqui não é dos trajetos mais curtos que conheço. Em minha casa poderemos conversar melhor.

Hali assentiu com a cabeça e acompanhou Marlus.

Chegaram a casa do Sr. Marlus. Uma gnomo regava as flores na janela. Era Norvinda, a esposa do gnomo.

- Querida, temos visita.

Hali encostou à carroça próximo a casa de Marlus e entrou. Fez suas saudações a Norvinda.

- Linda casa.

- Obrigada.

- Este é Hali mulher. Nós encontramos agora a pouco e já somos amigos. Parece que nos conhecemos há anos.

- Oh que bom. Se for amigo de meu marido, é meu amigo também. Sorriu Norvinda.

O jovem Hali sentou-se a mesa e fartou-se de pães, vinhos, doces, frutas e água. Comeu tanto que chegou a pensar que iria explodir.

- Agora que você já matou a fome, vamos conversar mais um pouco. Eu fiquei curioso com uma coisa. O que você carrega naquela carroça? Indagou Marlus.

- Hãm... São livros. Respondeu Hali.

- Livros? O que seriam livros? Marlus estava curioso.

Hali percebeu que eles não sabiam do que se tratava e espantou-se.

- Livros são... como posso dizer... Várias páginas cheias de palavras que fazem a gente viajar pra bem longe, sem sair do lugar. Permite que a gente imagina coisas. Podemos ficar até mais sábios em lê-los.

Marlus e Norvinda se olhavam sem entender nada. Estavam surpresos.

- Vou mostrar a vocês. Venham. Hali abriu a porta da casa e retirou o pano que cobria os livros. Uma multidão de pessoas e criaturas estranhas se aproximou para ver o que era.

- Livros! Muitos livros. Cada um escolha o seu e embarque em uma aventura. Senhor Marlus e senhora Norvinda, não fiquem sem. Hali estava animado.

Foi uma festa quando o povo de Aluap conheceu os livros. Estavam espantados, curiosos e também felizes. Hali estava contente em ver aquelas pessoas e algumas criaturas e seres mágicos tão encantados. Ele sabia que sempre que abria a sua carroça aquilo era capaz de causar aquelas sensações. Os livros tinham aquele poder.

Por trás de uma árvore um lobo observava tudo. Seus olhos estavam efervescentes de sangue. Os dentes tão afiados, capazes de ferir com apenas um toque. As orelhas estavam levantadas. Seu pêlo era uma mistura de cores no tom preto e cinza. Estava pronto para atacar, mas apenas assistia aquela cena.

Depois de tanto observar, o lobo foi embora.

- Majestade, trago notícias. O lobo Adolph invadiu o salão do castelo onde a rainha estava ceiando.

- Diga Adolph. Espero que seja realmente uma notícia importante, a ponto de interromper o meu jantar.

A rainha Egnes estava sentada à mesa, enquanto ao seu lado alguns de seus servos estavam de pé. Eles olhavam a comida enquanto sua barriga rosnava de fome, mas só podiam comer o resto.

- Um jovem chamado Hali acaba de chegar a Aluap. E trouxe consigo algumas coisas também.

- Como assim? Quem é este rapaz que ousa entrar em meu reino sem minha permissão? E que coisas ele trás?

- Ele vem do sul majestade. E trouxe... O lobo parou e interrompeu a fala. Ele sabia que suas próximas palavras iriam deixar Egnes revoltada.

- Fale logo!!! Egnes gritou espetando o garfo com força em um pedaço de carne que estava em seu prato. Estava nervosa.

O lobo então sabia que não teria outra alternativa, senão contar tudo o que sabia sobre Hali. Se quisesse sair vivo do castelo era preciso abrir a boca.

- Livros senhora, livros. Ele trouxe livros. Uma velha carroça repleta deles.

A rainha Egnes levantou-se e virou a mesa. Toda a comida e talheres de ouro caíram no chão. Os servos fartaram-se dos alimentos.

- Não pode ser. Traga este homem até a mim.

Adolph juntou a alcatéia e foram em busca de Hali. Já sabiam onde ele estava abrigado e por isso não foi tão difícil encontrá-lo.

- Viemos em busca do jovem Hali. A rainha Egnes quer ele. O lobo entrou ferozmente na casa de Marlus.

- Nunca ouvimos falar neste nome Adolph. Saia daqui.

Adolph sabia que Marlus estava mentindo para proteger seu novo amigo. Sentiu o cheiro dele de longe. O lobo deu uma dentada no braço de Marlus, ferindo o gnomo. O sangue jorrava como uma fonte abundante de água.

- Você sabe o que eu sou capaz. Não me subestime. Entregue-o.

Hali surgiu do fundo da casa.

- É a mim que vocês querem. Soltem o gnomo.

Os lobos amarraram Hali com uma corda e foram o arrastando até chegar ao castelo de Egnes. Os galhos que estavam no chão machucaram o rosto do rapaz.

Chegando ao castelo, Adolph puxou Hali com a boca e o jogou violentamente aos pés da rainha.

- Aqui está majestade.

- Obrigada Adolph. Sua recompensa está aqui. Apontou a rainha para um grande cordeiro que havia sido morto. Agora saia. Ordenou Egnes.

Hali estava assustado.

- Quem é você? O que vai fazer comigo?

- Cale a boca! Gritou Egnes estilhaçando um ramo de espinhos sob o corpo de Hali.

Egnes tinha uma coroa de ouro. Vestia um lindo manto azul com pedras muito brilhantes. Brilhavam tanto que faziam inveja ao brilho das estrelas.

- Meu nome é Egnes. Rainha Egnes. Eu comando o reino de Aluap. E você deve se dirigir a mim como majestade, assim como os outros.

- Tudo bem, majestade – respondeu Hali.

- Creio que já saiba o motivo pelo qual está aqui. Você chegou a minhas terras achando que poderia passar despercebido aos meus olhos. Causou um tumulto no reino com essa carroça ridícula que te acompanha.

Hali ficou em silêncio. Estava com medo.

Só pensava no pior.

- Livros são proibidos em meu reino. São uma maldição. Graças a você as criaturas e pessoas daqui estão mais sábias. E isso não é nada bom – Egnes caminhava lentamente ao redor de Hali.

- O que fará comigo?

- Nada resta a você meu caro Hali senão a morte. É o fim de todos os traidores. Também mandarei destruir sua carroça e todos os livros, e também matar seu cavalo. Os lobos saberão cuidar dele muito bem – Egnes soltou gargalhadas que puderam ser ouvidas no reino todo.

Hali foi arrastado até um cômodo escuro do castelo cercado por grades de ferro. Ficou preso ali amarrado em correntes.

Enquanto isso Egnes preparava a morte do jovem.

- Majestade. Fizemos tudo conforme ordenou. Mas algo de estranho aconteceu.

- Fale logo Adolph.

- Queimamos a carroça de Hali, destruímos os livros, matamos o cavalo e bebemos seu sangue mas... Um livro não se queimou.

- Como assim?

- Ele não se queimou em meio as intensas chamas que se alastravam na fogueira. Trouxe para vossa majestade.

O lobo Adolph entregou aquele livro a Egnes. A rainha ficou impressionada com aquela situação. Como era possível um livro não se queimar – pensou.

Egnes entrou em seus aposentos. Começou a folhear as páginas daquele livro. Algo a despertou.A história que ela esteve lendo a deixou curiosa. Falava sobre amor. Dois jovens que venceram tudo e todos para viverem um grande amor.

Será que aquela história de amor amoleceu o coração da rainha?

Nem ela mesma sabia disso.

Egnes saiu de seu quarto e foi até o local onde Hali estava preso. Ele se assustou quando a viu.

- Eu quero saber por que este livro, justamente este livro, não se queimou – indagou a rainha.

Hali sorriu e disse:

- Essa é uma história de amor majestade. E nada é capaz de destruir um amor verdadeiro. Nem o tempo, nem as pessoas, nem o mal e nem mesmo... as chamas ardentes do fogo.

Egnes não escondeu o espanto. Jamais tinha visto algo similar.

Adolph rosnava ao ver aquela cena. O lobo queria que Hali fosse morto logo.

- Amor? O que é amor? O que você sabe sobre amor? Gritou a rainha.

- Amor é... um sentimento verdadeiro, real, bonito que une as pessoas. Um sentimento que faz bem, que deixa qualquer um feliz. Mas só pode definir mesmo o amor quem já viveu um. Creio que não saiba o que é.

As palavras de Hali feriram o coração da rainha. Era como se uma espada estivesse lhe transpassado o coração.

- Majestade não deve ter conhecido o amor. É tão má. Mas não é possível que por trás de tanto mal, de tanta perversidade, de tantas coisas ruins não possa existir um coração, uma mulher que seja capaz de... amar.

O lobo agitou-se ainda mais e tentou atacar Hali, mas Egnes o impediu.

- Não entendo majestade. Trouxe o traidor até aqui e até agora nada aconteceu com ele. Por que não o mata logo ao invés de ficar dando ouvidos a ele – Adolph estava visivelmente irritado. Mostrava a ira em sua face.

- Silêncio. Solte Hali.

- Majestade?! Indiginou-se o lobo.

- Solte-o logo. Berrou Egnes.

Depois de ser solto Hali foi convidado a sentar-se a mesa com a rainha. Havia uma fartura de comida.

- Nunca pensei que as palavras de uma outra pessoa pudessem me comover.

- Majestade não deve ser tão má assim – disse o jovem Hali enquanto comia um pedaço de carne.

- Engano seu rapaz. Sou sim muito má. Mas não tem outra maneira. Eu sou assim. Sou capaz de matar. Você deveria ter medo de mim.

- Não tenho medo.

- Eu matei a antiga rainha do reino. Rainha Sophia já estava muito idosa, a idade muito avançada. Já mostrava sinais de esquecimento, não se recordava dos protocolos e rituais que deviam ser seguidos, enfim, não servia mais para a posição de uma rainha. Eu sabia que a próxima rainha seria eu, mas não queria esperar por muito tempo. Foi então que eu resolvi adiantar a morte de Sophia.

- Por que está me contando isso? Perguntou Hali.

- Eu confio em você. Nunca disse nada sobre meu passado a alguém. No começo quando chegou aqui minha intenção era mesmo matá-lo.

- E não vai fazer isto?

- Não. Através de você eu conheci o amor. Aquele livro me encantou. Sempre pensei que só existissem sentimentos ruins no mundo. Foi assim que fui criada e por isso me tornei essa rainha que você conheceu.

Egnes nunca imaginou que algum dia pudesse dizer aquilo. Uma lágrima escorreu de seus olhos.

- Peço perdão por destruir sua carroça, seus livros e por matar seu cavalo. Egnes estava ajoelhada aos pés de Hali. Nunca se viu aquela cena em nenhum arredor de outros reinos.

- Levante-se rainha. Eu te dou meu perdão. Mas levante-se.

- Chega! O lobo Adolph atacou Hali. As garras estavam mais afiadas do que nunca, capazes de cortarem uma cortina de fumaça. Os olhos sangrentos e cheios de ódio. Os dentes grandes e compridos.

Adolph deixou Hali muito ferido. Havia muito sangue no chão. O ataque do lobo foi feroz e muito violento. O jovem Hali agora estava sem vida. Estava morto. A rainha Egnes tomou o rapaz em seus braços e chorava exaustivamente.

- Você não me deu outra alternativa Egnes – disse Adolph abandonando o castelo com o restante da alcatéia.

Hali foi capaz de mudar o coração da rainha. E mesmo morto ela nunca se esqueceu dele.

Fim!

Luccas Nascimentto
Enviado por Luccas Nascimentto em 01/01/2017
Reeditado em 01/01/2017
Código do texto: T5869110
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