O General

O General

Fui ao enterro de Hermes, o belo. O brilhante caixão de mogno refletia, com desdém , os que caminhavam em derredor, simples figurantes do belo cortejo. Ali dentro, repousando em delicado acolchoado forrado de cetim, protegido dos olhares curiosos , estava o verdadeiro astro, Hermes, ainda mais belo, vestido em um bem talhado terno bronze. A urna, de oito alças, flutuava sobre os paralelepípedos das ruas, em seu vôo horizontal, como se dispensasse as mãos firmes dos que a sustentavam. Perguntássemos a uma das mulheres ali presentes, ela diria que Hermes foi o mais belo homem daquelas paragens. E o mais belo defunto. Aliás, algumas delas, certamente remoíam saudades do morto, e as remoeriam ainda por muito tempo . Pude vê-las tentando conter as lágrimas e apagar reminiscências de tempos não muito distantes.

Hermes falecera cirrótico, aos 65 anos, doença que se manifestara uns seis meses antes, embora os sintomas fossem de mais tempo. Ele nunca se queixara de nada, pelo contrário, batia no peito em desafio às entidades nosológicas, gabando-se de “saúde de ferro”. Entretanto, não seria um exercício de perspicácia notar que o desafio já fora aceito e que o desfecho não lhe seria favorável, haja vista a tonalidade esverdeada da pele e a proeminência do abdome, embora a camuflasse com roupas apropriadas.

Acelerou-se o cortejo ante a ameaça de chuva, o que seria um acinte à importância do evento, um dos mais concorridos de que se tivera notícia naquela cidade. Por fim, o túmulo. Mausoléu de gosto discutível, abrigo final dos Robledo, de antiga linhagem espanhola. Realçava, fixo ao mármore, o retrato de Dom Carlos, o patriarca, ladeado pelo filho Francisco, assassinado aos vinte e oito anos, em circunstâncias duvidosas . Dizia-se que fora baleado por um marido traído. Ali descansaria Hermes, em boa companhia, não sem antes os discursos de praxe . Falou Augusto Cardoso, pretenso grande orador de enterros e mais enterros. Como sempre, falou ao morto, como se escutassem, se é que não escutam. Se o ouviu, Hermes deve ter-se emocionado ao elogio direto à sua “prodigiosa inteligência” e “profundo senso de respeito à família”. Augusto Cardoso prolongar-se-ia por muito mais tempo, se os primeiros pingos de chuva grossa não tivessem surgido. Apressou-o, ainda mais, a intervenção de Morô, notório bebum: ”que nada ! Não era nada disso ! Era muito é macho ! E digo mais ... Não disse: calaram-no . A retirada foi precipitada pela chuva e pela ameaça de nova intervenção de Morô, que pudesse comprometer a honra do finado.

Desci pela aléia principal e passei pelo grande portão de ferro fundido, travessia derradeira à única verdade.

A chuva despencou a pingos grossos e obrigou-me a entrar no bar do Jarvis, famoso pelos tira-gostos de fogão de lenha, embora não se pudesse classificá-lo na letra A, no que concerne ao quesito limpeza. Foi então que vi Paulinho, sentado a um canto menos iluminado do boteco. Fui ao seu encontro e, antes que me sentasse, o vi tomando uma lambada de aguardente, certamente de qualidade inferior, a julgar pelo odor de caldo de cana emanado da porção oferecida ao santo , bem aos pés da cadeira em que me assentei .

- Então, Paulinho, fostes ao enterro de Hermes ?

- Não só fui, como conferi !

- Conferiu !?

- Quis ter certeza de que o desgraçado ficou lá mesmo .

Um misto de amargura, alegria e tristeza na voz de Paulo, despertou-me para a possibilidade de uma história, ainda que inspirada nos efeitos da mardita , que já se faziam notar na voz dissonante e nos titubeios de Paulo Silva. Propus mais uma cerveja, o que me daria mais tempo . Paulo aceitou “desde que pudesse encorpar com mais uma pinga”

Paulo Silva, funcionário aposentado dos correios, era pessoa honesta e respeitada , cujo único deslize foi candidatar-se a vereador numa das eleições mais concorridas de que se teve notícia na pequena cidade. Sua incursão foi desastrosa desde o início, quando o taxaram de ateu, o quê, de fato, era uma verdade. Mau político, ele o confirmou : ‘sou mesmo – e daí?”. Conseguiu eleger-se a duras penas, embora seu nome constasse no boletim de não tementes, publicado pela Igreja. Renunciou ao terceiro ano, dos quatro de seu mandato. Instado a explicar-se , negou-se a dar detalhes , dizendo apenas que não se dispunha a maracutaias e baixarias. A crônica política da cidade , no entanto, foi mais específica. Hermes, o chefe político e presidente do partido, em parceria com o prefeito, empurrara na câmara uma obra superfaturada, com benefícios e dividendos ao edis . Paulo soltou a língua e tornou-se corpo estranho. Preferiu renunciar. A Hermes não interessava cargos, ainda que participasse intensamente do processo político. Era o presidente , o elemento de ligação aos deputados e secretários. Até Magalhães Pinto lhe tinha sido hóspede numa tarde.

- Se queres mesmo saber, fui sim amigo de Hermes ... E inimigo! Sinalizei dúvida – Paulo me fez calar.

- Hermes de Filgueira Robledo sempre foi um vencedor ; Paulinho, eu, um perdedor. Meu nome sempre foi um problema : fui até preso ,uma vez, por trapaças de homônimos. Não fosse Hermes e sua gente eu teria ficado trancafiado por um longo período.

Na infância, quando brincávamos de “cowboy”, Hermes era o mocinho; eu, o bandido. No primário, as notas dez eram minhas; o líder, o grande orador da formatura, imagine quem ? Ele mesmo ! Numa montagem de teatro, eu deveria encarnar um general, de farda e tudo . Fui substituído por ele, por causa de seu físico avantajado. “não ficaria bem um general franzino – atirou-me dona Lazinha, a professora. Atingiu-me como um punhal ! Fui rebaixado a tuaregue, vencido e mandado ao cárcere pelo general. Na verdade, sou obrigado a reconhecer que o general de Hermes foi mesmo exuberante. As reminiscências de infância, até que me parecem engraçadas, mas fizeram-me um grande mal naquela época. Fui sendo acometido por um sentimento de inferioridade em relação a Hermes e outros como ele. De que me adiantava não ter adversários no jogo de xadrez, e ser eterno reserva no futebol ? A bola teimava em rebater em minhas canelas, enquanto Hermes era aclamado por todos. No ginásio, fui novamente o melhor aluno ; Hermes, o orador. Neidinha só tinha olhos para ele. Nunca consegui aprender a dançar , enquanto ele dava show em todas as modalidades. Adultos, passei no concurso para os correios ; Hermes herdou o cartório da família. “ A uns morrem as vacas, a outros parem os bois”.

Irrelevante ! Tudo irrelevante mas ...

Betinha – jamais o perdoarei ! Jamais !

Neste momento, pude perceber a emoção na voz embargada de Paulo. Uma profunda mágoa desenhou-se no semblante daquele homem, envelhecido para a idade. Uma amargura visceral , que me espantou pela intensidade, me deu certeza de que algo extremamente grave ocorrera. No entanto, uma curiosidade desmedida poderia trazer o homem à razão e fazê-lo interromper a narrativa, o que seria um desastre. Aliás, quase que a vaca foi pro brejo quando José Neno, vereador da situação, entrou no bar, fugido da chuva e, sem que o convidássemos , veio a nós em tom coloquial :

- Estou emocionado com o desenlace de Hermes. Amanhã mesmo, vou propor lá na câmara a mudança do nome da Avenida Santos Dumont para Hermes Robledo. Afinal , o quê temos a ver com o inventor de balões ?

Paulo, saído de um engasgo, sofregamente e no mesmo tom , atacou como uma naja:

- Vá, seu puxa-saco, faça isso ! Afinal, bem que o finado andou dividindo leito com sua cunhada . Coloque isto no seu arrazoado lá na câmara. Os seus colegas edis vão aprovar sua indicação sem obstáculos. E mais, o homem não inventou balões, mas o avião, seu burro.

Atônito, Zé Neno, sem mais palavras, escafedeu-se como um raio, com chuva e tudo.

Paulo descarregou seu ódio :

- Só me faltava esta, o nome do safado justo na rua em que moro !

Tratei de acalmá-lo, servindo-lhe mais uma dose, atirada direto ao esôfago. Custou a voltar ao enredo.

- Betinha , Betinha, eu ia dizendo ...

Balancei a cabeça, fingindo desatenção. Ele prosseguiu : Betinha era filha de dona Zenília, viúva de Tião Paçoca. Conhecera-a aos dezoito anos, ele vinte e três. Encantou-se à primeira vista e tudo indicava que o namoro progrediria para um final feliz. Estavam sempre juntos, as mãos dadas, assíduos freqüentadores das missas de domingo . Não se passava um dia em que não estivessem juntos. Num memorável baile , animado pela famosa orquestra Cassino de Sevilha, a moça foi apresentada pelo namorado ao amigo Hermes, que até a convidou para dançar, com o consentimento de Paulo, é claro. O rapaz, constrangido, ficou de olho. Hermes trouxe-a após a seleção de boleros magistralmente executados pelo famoso conjunto. Deixou-a com elogios : “exímia dançarina – digna de um par à altura”. Com o comentário, o belo, naturalmente satirizava o desajeito de Paulo com a arte da dança, arrancando sorrisos dos circunstantes. Estranhamente, nesta mesma noite, ao levar a moça à sua casa, foi convidado a entrar . Dona Zenília dormia a sono solto ... Ficou no quase. Paulo queria tudo às direitas, na hora certa . Decisão lamentável !

Betinha era um encanto de moça, emendou Paulo : olhos azuis, pele clara, um lindo sorriso . Sorriu, também, embora lhe marejassem os olhos.

O primeiro sinal de que as coisas poderiam complicar-se, Paulo o teve no domingo, após a missa. Betinha alegara compromissos em casa, despedira-se com inusitada frieza, dispensando a companhia dele , delicada, mas firmemente. A moça subiu a rua enquanto o rapaz, desconsertado, desceu as escadas do adro. Hermes surgiu ao pé da escadaria, como por encanto. Trocaram poucas palavras. Paulo estava absorto, incapaz de interpretar a atitude de Elizabeth .

Tudo desabou na quarta-feira. Paulo tomara um caminho diferente em direção ao trabalho, atravessando o parque público. Deixou a alameda principal e tomou uma das secundárias . Junto ao canteiro de rosas que ladeava o caminho, deu com Betinha, ao lado de Hermes,em animada conversa , toda sorrisos. Pelo visto, estavam se despedindo, o safado com as mãos dela entre as suas, mais demoradamente do que necessário. Desvencilharam-se constrangidos, quando o viram. As palavras eram desnecessárias ; falaram os olhos. Cada um tomou seu rumo, se é que ainda havia algum para Paulo Silva. No dia seguinte, Elizabeth comunicou ao moço sua intenção de romper o namoro, alegando motivos inconsistentes . Nem precisava fazê-lo . Paulo já o sabia : Belzebu, encarnado no mais medíocre dos Robledo, a envolvera em seu manto de beleza e encantamento. Impossível resistir . De novo, o tuaregue abatido pelo general.

A vida seguiu. Betinha era agora a nova namorada do belo. Paulo recolheu-se em silêncio, descrente de tudo e de todos. Desabaram-lhe os princípios religiosos e o agnosticismo lhe deitou raízes. Doía-lhe mais a insistência de Betinha em tratá-lo como amigo . Mostrava indiferença e retirava-se. Retirou-se ainda mais quando surgiu o boato que Betinha estava grávida. Daria tudo para não vê-la com a barrigada espanhola. Viu-a outras vezes, ainda mais linda, visivelmente orgulhosa de seu estado, embora as mães solteiras não fossem bem aceitas àquela época.

Entretanto, a gravidez não fora bem aceita pelo general. Recusou-se a se casar. Aliás, já se falava de uma tal secretária do prefeito de uma metrópole vizinha, vista algumas vezes acompanhada de Hermes . Não demorou e todos já o sabiam. Paulo, longe de sentimentos de vingança, sentiu-se ainda mais culpado por ter perdido a amada, agora abandonada, embora os Robledo lhe garantissem recursos para o acompanhamento da gravidez. Foi desnecessário : uma hemorragia fulminante, por descolamento de membranas, matou mãe e filho. Betinha foi sepultada junto ao filho, numa triste tarde de segunda feira.

Hermes , casou-se um ano depois com a tal secretária, mulher medíocre como ele e que não lhe deu herdeiros. Passou a beber desmesuradamente.

Paulo jamais se casou. Deixara uma rosa, naquela tarde, sobre o túmulo de Betinha, a uma quadra do mausoléu dos Robledo.

Zevito
Enviado por Zevito em 24/09/2016
Código do texto: T5770852
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