Entre Copos e, Elfos?

"O mundo é um lugar mágico, basta saber onde procurar"

Não me lembro ao certo quando conheci Flyn, estava bêbado, que boa história não começa assim? O mundo era um lugar chato, as pessoas de modo geral eram chatas, não havia como competir. Era uma espécie de nômade dos tempos modernos, passava a vida rodando, sem destino aparente, apenas eu e meu Chevette noventa e dois, o melhor carro que já tive. Não sei explicar o por quê, tudo que sei é que não gostava de ficar parado, não gostava mesmo, me sentia mal, uma espécie de desconforto angustiante que só desaparecia quando pegava a estrada. Vivia assim, de cidade em cidade, bar em bar, porre em porre, a vida não era boa mas tinha lá os seus encantos.

Uma vez estava em uma cidade cujo nome não me lembro, detalhes como esse não importam para essa história. O importante é que a noite seguia alta, e eu estava alto se entende o que quero dizer. Estava ali na pior espelunca da cidade, bebendo como de costume, um conhaque qualquer. Havia perdido uma bocada no poker, quando se vive da sorte corre-se o risco de acabar na sarjeta, era o que meu pai costumava dizer. Talvez ele estivesse certo, talvez seu filho um dia acaba-se mesmo indo parar na sarjeta, era uma probabilidade que estava cada dia mais próxima. Em todo caso estava ali bebendo, quase sem dinheiro, quase sem vida, perdedor de marca maior, o mundo estava cheio deles, eu era apenas mais um.

Haviam copos espalhados pelo balcão, um monte deles, alguns vazios, outros nem tanto, digamos que higiene nunca foi o forte desses muquifos de canto de cidade. Em determinado ponto da noite enquanto divagava entre um gole e outro olhando para os copos que se amontoavam aos montes notei algo no mínimo peculiar. Bem, peculiar talvez não seja a palavra mais adequada para descrever o que vi, mas não encontro uma palavra melhor, então contente-se com minhas limitações narrativas. O fato é que ao fixar a visão em um ponto específico por entre copos, garrafas e pratos sujos pude ver algo que nunca imaginei existir, pelo menos não fora da ficção. Quase não acreditei naquilo que via, mas que opção eu tinha? Estava bêbado e bêbados acreditam em qualquer coisa. O fato é que ali, bem no meio de toda aquela sujeira típica de botecos de quinta categoria havia uma criaturinha esquisita surrupiando bebida dos copos alheios. A visão era por si só esquisita, o pequeno ser tinha cabelos espetados, não mais que dez centímetros de altura, orelhas estranhas e uma jaquetinha de couro. O danado pulava de copo em copo com um canudo colorido sorvendo o líquido que ainda restava no interior de cada um deles. Até um par de asas o filho da mãe tinha.

A princípio não acreditei no que via, pensei se tratar de uma mosca super desenvolvida que fora transformada em alguma outra coisa pela quantidade abusiva de bebida que havia ingerido, uma alucinação talvez, era possível. Tentei esfregar os olhos, não uma, mas várias vezes. Não fez diferença, a criaturinha permanecia ali sorvendo a bebida alheia com seu canudinho colorido. Não sei o que me motivou a fazer isso, algumas coisas simplesmente não precisam de motivação para serem feitas, apenas estiquei o braço e agarrei o pequeno ser pelas asas e o balancei em frente aos olhos.

- Ei cara me solta! - Respondeu o pequenino desaprovando minha atitude. Tinha uma voz fina e ligeiramente baixa, mas audível.

- Puta merda, esse bicho fala, acho que está na hora de encerrar a noite - retruquei.

- Não sou nenhum bicho companheiro, tenha mais educação.

- Se não é bicho o que é?

- Um elfo.

- Está brincando? Pensei que fosse um mosquito, esse bar tá cheio deles.

- Se não acredita problema seu, agora me solta seu bobão - Disse me acertando com o canudo no nariz e fazendo uma espalhafatosa algazarra.

- Não disse que não acredito - Respondi coçando o nariz - a gente vê tanta coisa estranha por aí... Ei garçom, chega mais meu chapa!

Então o garçom veio, um sujeito de cara suja e enorme bigode, trazia colado em si um avental sujo e um pano de prato em volta do pescoço, provavelmente já estava cheio de me servir.

- O que eu tenho na minha mão companheiro? - Disse lhe mostrando a criaturinha cruelmente pendurada pelas asas a se debater.

O homem me olhou com um olhar esquisito, normalmente as pessoas me olham assim então não fiz muito caso.

- Senhor, se for começar a caçar moscas de tamanho família sugiro que pague a conta e se retire.

- O quê?

- Você ouviu, agora se me permite vou servir os outros clientes, pelo menos eles não ficam me perturbando com moscas de estimação.

O garçom se foi. Olhei novamente para a criaturinha, estava bufando de raiva, poderia facilmente me matar caso possuí-se algum poder sobrenatural.

- Mas o que acabou de acontecer aqui?

- Normal, os seres humanos não podem nos ver - respondeu zangado e prestes a me estrangular.

- Então como explica o fato de eu te ver?

- Não sei, você bebe demais, talvez seja isso.

- Muita gente aqui bebe demais, quer que eu faça novos testes?

- Não é necessário, talvez você seja especial, só isso.

- Eu sou especial? - Respondi cheio de si e com um sorriso amarelo de orelha a orelha.

- Talvez, quem se importa? Agora me solta!

- Não.

- Por que não?

- Vou te vender a um circo.

- Não ouse fazer isso seu filho da puta!

- Quanto você acha que vale?

- Eu vou te matar seu desgraçado - bradou a criaturinha se debatendo loucamente e manejando seu canudo como uma espada em todas as direções.

- Calma aí carinha, estava apenas brincando, me diga seu nome e te solto.

- Flyn - Respondeu bruscamente cruzando os braços e fazendo cara de birra.

- Ótimo, me chamo Brian, igual o cantor do AC/DC, prazer em conhece-lo.

- Agora me solta.

- Tudo bem carinha, mas quero conversar contigo, promete que não vai fugir?

Flyn pensou um pouco antes de responder.

- Prometo.

O coloquei lentamente sobre o balcão. Juro que pensei que ele iria fugir, afinal quem não fugiria de mim? Mas ele ficou, talvez tivesse se afeiçoado por minha pessoa, quem sabe?

- Então Flyn, gosta de beber?

- É possível.

- Não me venha com essa seu sacana, ou você acha que não te vi sugando os restos de bebida com esse canudo aí?

- Tudo bem você me pegou, sou um elfo alcoólatra, tem algum problema com isso?

- Por que bebe?

- Por que todo mundo bebe? - rebateu minha pergunta.

- Sei lá, vai vê que é porque a vida é uma chatice sem tamanho e a bebida torna as coisas um pouco mais suportáveis.

- Preciso responder?

- Acho que não. Quer tomar o resto do meu conhaque?

- Claro - Respondeu todo satisfeito.

Sem demora o pequeno ser brandiu seu canudo colorido com maestria e o enfiou dentro do meu copo. Ficou ali sorvendo o liquido escuro por um bom tempo, podia ser pequeno mas bebia como gente grande o pilantra. Quando terminou bateu na barriga, soltou um arroto e se deu por satisfeito.

- Sabe Flyn, estou curioso, me conte um pouco mais sobre vocês elfos.

- Não há muito a contar. Somos poucos, vivemos em florestas, geralmente troncos de árvores, tudo muito chato, uma vida de chatice no meio do nada.

- Por que está aqui compartilhando de nossa sujeira e decadência quando poderia sei lá, estar com seus semelhantes?

- Queria conhecer o mundo e não ficar enfiado em um toco podre pelo resto da vida, então parti sem olhar pra trás.

- Não pensa em voltar?

- Acho que não tenho pra onde voltar.

- Nem eu.

- Que triste.

Ficamos ali por mais um bom tempo, bebendo e conversando. Flyn bebia de tudo, era um verdadeiro profissional, nada parecia derrubar o pequeno elfo. Eu por outro lado já estava quase dormindo por ali mesmo, porém isso o garçom não iria permitir. Volta e meia alguém me olhava com desconfiança, pensavam estar conversando sozinho, e de certa forma não estavam errados. Mas ninguém se atrevia a me incomodar, imaginavam que fosse louco, eu achava isso bom, quem não acharia?

Por volta das três ou quatro da manhã quando o álcool corria solto e já havia quase se mijado todo umas duas ou três vezes o garçom avisou que iria fechar. Olhei para Flyn triste, a noite chegava ao fim e isso significava me despedir de meu pequeno amigo. Éramos como dois vaqueiros perdidos na noite apenas esperando pelo estouro da boiada.

- Flyn acho que temos de nos despedir.

- Pois é, acho que sim.

- Então é isso Flyn, adeus.

- Adeus companheiro, foi um prazer beber contigo.

Flyn se virou cabisbaixo e testou suas asas prestes a decolar. Confesso que quase nunca chorei em minha vida. Mas ali, naquele exato momento a tristeza que se abateu sobre mim foi tanta que não pude evitar de derramar uma lágrima. Então como que num ato de desespero, e desespero é a palavra certa, exclamei com a voz trêmula e esganiçada.

- Ei Flyn! espere um pouco camaradinha.

- O que foi companheiro? - Flyn respondeu cancelando a decolagem momentaneamente.

- O que acha de vir comigo e conhecer o mundo?

- Fala sério?

- Seríssimo.

- Eu iria adorar - disse o pequenino com o sorriso mais sincero que tive o prazer de presenciar em todo meu tempo de vida.

Flyn então bateu asas e veio se alojar no bolso superior de minha jaqueta, mas não sem antes reclamar.

- Ei camarada, esse bolso seu anda meio sujo e tem um cheiro esquisito aqui dentro.

- Vamos dar um jeito nisso, tudo a seu tempo Flyn, tudo a seu tempo.

Desde então eu e Flyn nos tornamos ótimos amigos, mais que isso, irmãos inseparáveis. Sempre de cidade em cidade com o nosso nosso velho Chevette noventa e dois escutando rock clássico pelas rodovias esburacadas desse país. Flyn adora os clássicos, em especial o Who, diz que quer ser igual Townshend e até me pediu uma guitarra em miniatura de presente, só espero que não a quebre ao final de todo show ou essa brincadeira pode sair caro. E assim seguimos, volta e meia de porre, volta e meia de bem com a vida. Roubando no poker e vivendo da sorte, acho que esqueci de mencionar, mas quando se trata de jogo elfos trazem muita "sorte". Dizem que um dia essa boa fase acaba, afinal um dia tudo acaba não é mesmo? Mas até lá vamos viver, ainda que seja de estrada em estrada, a nossa frente apenas o pôr do sol e quem sabe uma velha canção de amor ecoando estridentemente pelos alto-falantes estourados do velho Chevette noventa e dois.

Dois vigaristas, algumas garrafas de cerveja e um mundo de possibilidades pela frente, a felicidade custa pouco é só saber onde comprar.