O Preenchedor de Lacunas

Sexta-feira, happy hour, batata frita e copos de chope. Falávamos sobre economia, política, futebol e astrologia até chegarmos a um assunto bem mais polêmico: o meu passado.

"Você quer mesmo fazer isso? É como um vitral: você se quebra e tenta colar os pedaços de novo"

"Tem um buraco, um vazio que eu preciso encher... Pelo bem da minha memória"

"Se o problema é esse, eu posso te ajudar" - Começou a procurar um cartão no bolso.

"Outro psicólogo?"

"Não" - Riu - "Sabe o bairro dos ciganos? Tem alguém lá que pode te ajudar" - Me entregou um cartão e li: 'O Preenchedor de Lacunas - consiga a resposta para suas perguntas mais íntimas'.

"Tarô ou leitura de mãos?" - Perguntei.

Riu - "Eu não sei. Nunca fui, mas só vi boas recomendações na Internet. Um cigano me deu esse cartão quando eu passava por lá"

E assim eu me fui, procurando o tal 'Preenchedor de Lacunas'. Não demorei pra encontrar uma simples casa laranja que se destoava no bairro. Bati na porta e um cigano moreno, com um lenço vermelho na cabeça e um dente de ouro me atendeu.

"Pois não?"

"Procuro o preenchedor de lacunas"

"Veio ao lugar certo" - Ele me guiou para uma sala com uma pequena mesa de madeira no meio. Em cima dela, havia uma brilhante bola de cristal - "Coloque as mãos na bola e relembre. Não se assuste se algumas imagens passarem por sua cabeça"

Fiz o que ele instruiu e fechei os olhos por um rápido segundo. Tirei a mão do objeto como se tivesse sentido um choque.

"Do que você tem medo? De mim ou do seu passado?" - Ele provocou.

Me resignei e tentei de novo. Assim que fechei os olhos, ouvi um grito: "Fica longe de mim!".

Eu me afastei da bola.

"Você ainda não está pronta pra isso" - O cigano disse e eu me levantei da cadeira - " A culpa ainda te consome" - E ele me expulsou de sua casa.

Só fui passar pelo bairro dos ciganos dois meses depois, procurando abrigo de uma chuva torrencial que transformava as avenidas em oceanos. Vi a mesma casa laranja e a oportunidade de um teto para minha cabeça encharcada era tentadora demais para ser repelida por meu ceticismo.

Fui recepcionada pelo mesmo cigano, que me guiou até a mesma bola de cristal. Assim que coloquei as mãos no objeto mágico, uma voz invadiu meus ouvidos... a minha voz!

"Por que você fez isso comigo?! Por quê?!" - O timbre carregado de choro desnorteou meus sentidos e quase perdi a consciência. Senti meu ombro ser puxado para trás e meus sentidos voltaram. O cigano largou meu ombro e balançou a cabeça.

"Ainda não está pronta" - E, por sorte minha, a chuva já havia passado.

Quatro meses e dezenas de pensamentos consumidos depois, eu estava lá de novo.

"Eu vim resolver isso de uma vez!" - Invadi o cômodo da bola de cristal e o cigano sorriu cinicamente. Tomei a bola de cristal nas mãos e minha voz ecoou novamente:

"Por que você fez isso comigo?! Por quê?!" - A frase se repetiu, mas o timbre angustiado de antes fora substituído por um rugido feroz, quase inumano em sua raiva.

Meu corpo foi jogado para trás e o cigano riu em descaro - "Continua não estando pronta" - E dessa vez eu mesma saí, desejando esquecer a porta se fechando atrás de mim.

E nas contas, nos trabalhos, nos amores e nas paixões fugazes, eu me esqueci totalmente daquela casa. Apenas me lembrei dela quando estava passeando sem rumo numa noite de lua minguante. Vi o laranja se destacar nas luzes dos postes e me senti compelida a voltar. O cigano me recebeu com um olhar desconfiado e me levou até a bola de cristal. Segurei-a em minhas mãos e finalmente vi...

Memórias que eu tentei tanto reprimir passavam por detrás dos meus olhos como se fossem uma comédia romântica. Me lembrei do bom e do belo e delicadamente soltei a bola de cristal. As imagens que guardei me marcaram em forma de lágrimas e o cigano sorriu e me estendeu a mão.

"Agora está pronta"