Cachoeira do Cerradão. (Foto da autora)
Pode até ser sonho, mas há tempos percebi que através da escrita posso costurar alegria e bordar liberdade, trazendo de volta tradições esquecidas e revelando a beleza e a capacidade das boas recordações provocar em mim e nos leitores alguns sentimentos adormecidos e muitas saudades.
Naquela noite, me vi na estradinha que levava até a casa de meu bisavô Joaquim Pedro. Ela não mudou tanto quanto eu nestes anos todos...Em meio à escuridão, caminhei sozinha ruminando lembranças fugidias. A curva, perto da moitinha de bambu me devolveu o conforto de pisar na terra de onde nunca saí. Afinal, conservo minhas raízes.
As estrelas pareciam boiar no leito do riachinho. Distraída, pisei sobre as pedras atravessando a correnteza. O pretume da noite aos poucos se dissolvia. De repente, um mundo antigo ressurgiu a minha frente com um encanto especial... Parecia uma volta ao passado. Num tempo entre comidas caipiras e brincadeiras na fazenda, nos rios, nos matos... Numa época em que me deixava encantar pelas histórias que ouvia dos mais velhos.
Senti um frio a percorrer-me a espinha quando vislumbrei uma luminância vindo em minha direção. Envolvido por aragem nevoenta, caminhando devagar, um senhor vestido de branco me chamou:
—Mariinha, não se assusta minha fia. Sou eu o vovô Joaquim, seu biso, pai da vó Geralda... Ieu vim mode qui ocê chamou...
—Chamei não senhor! Não ia incomodar e nem atrapalhar o seu descanso eterno.
—Uai, Sá! Tive nutiça lá adonde ieu tava qui ocê quiria prusiá cumigo. Aí, ieu venho nessa lonjura e é mintira?
—Vó Joaquim, eu nem sabia que de lá do céu se podia voltar aqui... O senhor está no céu não está?
Vovô Joaquim Pedro fez uma cara de riso.
—Bão, podê num pode não, mas adispois qui me deram o recado, fiquei curioso, iscapuli e vim... Agora conta o que cê quê cumigo.
—Olha vô, faz uns quatro anos que eu cismei de escrever umas histórias... Uns causos que eu vi de perto, outro que me contaram...A maioria são de gente conhecida nossa.
— Ieu tô sabeno...
—Já sabe? Então lá de cima o senhor tem notícias daqui de baixo?
—Ô si tenho! Ô si tenho! Cuntinua a me contá.
—Bom, eu precisava escrever um texto falando de um encontro com um personagem, aí me lembrei de que já escrevi muito sobre o senhor.
—Ieu sei... Iscrevinhô inte´dimais, Sá Mariinha, inté dimais.
—Ihh vô, o senhor não gostou? Mas veja bem, eu troquei seu nome, o nome da bisa e dos tios quando escrevia os causos.
—Ahh! Intão a sinhorinha acha que ninguém me reconheceu né? Ocê num magina o povo lá im riba caçoano de mim, quando ocê contô aquele causo meu de querê pulá da cachoêra do Cerradão.
—Verdade vô? Mas aquele causo é uma dos melhores, ganhei até medalha num concurso! Povo gosta muito dele!
—Pois fica sabeno, dona Mariinha, minha bisneta, que inté os Querubim, aquês anjinho miudinho, quando passa perto de mim faiz cara de riso e diz pros otros: “sigura o sô Joaquim, sinão ele pula lá im baxo”.
—Desculpa vovô, não era minha intenção.
—Vô pensá se discurpo ô não... Mais mi conta uma coisa: mode quê ocê num contô uns trem proibido, argum segredo do seu vô Joãozinho e do seu outro biso, o Tininho?
—Ahh, mas eu já escrevi sobre eles e as avós também. Amo demais todos vocês! Mas as suas histórias são muito engraçadas, fazem a mim e aos leitores rirem muito. É só coisa alegre!
—Ahh intão ieu sô paiaço e seus otros avô são tudo santim?
—Não me interprete mal, vô! Eu até acho que herdei um pouco desse seu jeito trapalhão.
—Hum... Num sei se gostei docê conta minhas intimidade pra todo mundo lê. Oia se pode: Cê falô inté daquês mantimento qui ieu amoitava da sua bisavó Ervira, pa leva pas cumade da cidade... Era tudo pobrezinha, com fiarada pa criá. Povo qui punha mardade nisso. Era só minhas cumade...
—Toda família sabia disso vô! Todo mundo sabia também que o senhor era um homem caridoso. Mãe conta que todo domingo era uma procissão de gente pobre da cidade, chegando na sua fazenda. O senhor mandava fazer almoço, tratava de todo mundo e ainda reservava todo o leite produzido aos domingos para distribuir aos pobres. Ela conta que aquelas pessoas pareciam formiguinhas indo embora carregando tanta coisa nas costas.
—Ieu num fazia mais qui minha obrigação, minha fia. Eu tinha muito, pricisava reparti... Isso ajudô ieu ganhá um bão lugá lá im riba...
—Vô... posso continuar contando histórias suas?
—Oia, oia o qui ocê vai contá Mariinha! Todo mundo qui conta um conto omenta um ponto. Mais segue em frente, cumpre o seu distino! Num tive tempo in vida de dizê procê, mas sempre tive uma estima danada de grande pela minha primeira bisnetinha, ocê!
—Nos veremos de novo? Eu disse emocionada...
—Fia, aprendi munta coisa do otro lado, uma é que um home nunca vai podê entrá duas vêis no memo rio, purque quando ele passá de novo por ali, o rio já num vai sê o memo, assim como o home tamém num será.
Sorriu para mim, estava com um olhar terno, me segurou a mão, nos abraçamos emocionados, deitei a cabeça no seu ombro e avistei o barrado no horizonte prenunciando o dia. Nessa hora acordei...
Corri até a janela que dava para a serra. Dirigi o olhar para o céu de um azul muito claro e saudei o dia com uma pequena oração.
.
Meu bisavô Joaquim Pedro, minha avó Geralda ao meio e tia Tertulina a esquerda.
Este texto faz parte do Exercício Criativo - Encontro com uma personagem
Saiba mais, conheça os outros textos:
http://encantodasletras.50webs.com/encontrocomumapersonagem.htm
Pode até ser sonho, mas há tempos percebi que através da escrita posso costurar alegria e bordar liberdade, trazendo de volta tradições esquecidas e revelando a beleza e a capacidade das boas recordações provocar em mim e nos leitores alguns sentimentos adormecidos e muitas saudades.
Naquela noite, me vi na estradinha que levava até a casa de meu bisavô Joaquim Pedro. Ela não mudou tanto quanto eu nestes anos todos...Em meio à escuridão, caminhei sozinha ruminando lembranças fugidias. A curva, perto da moitinha de bambu me devolveu o conforto de pisar na terra de onde nunca saí. Afinal, conservo minhas raízes.
As estrelas pareciam boiar no leito do riachinho. Distraída, pisei sobre as pedras atravessando a correnteza. O pretume da noite aos poucos se dissolvia. De repente, um mundo antigo ressurgiu a minha frente com um encanto especial... Parecia uma volta ao passado. Num tempo entre comidas caipiras e brincadeiras na fazenda, nos rios, nos matos... Numa época em que me deixava encantar pelas histórias que ouvia dos mais velhos.
Senti um frio a percorrer-me a espinha quando vislumbrei uma luminância vindo em minha direção. Envolvido por aragem nevoenta, caminhando devagar, um senhor vestido de branco me chamou:
—Mariinha, não se assusta minha fia. Sou eu o vovô Joaquim, seu biso, pai da vó Geralda... Ieu vim mode qui ocê chamou...
—Chamei não senhor! Não ia incomodar e nem atrapalhar o seu descanso eterno.
—Uai, Sá! Tive nutiça lá adonde ieu tava qui ocê quiria prusiá cumigo. Aí, ieu venho nessa lonjura e é mintira?
—Vó Joaquim, eu nem sabia que de lá do céu se podia voltar aqui... O senhor está no céu não está?
Vovô Joaquim Pedro fez uma cara de riso.
—Bão, podê num pode não, mas adispois qui me deram o recado, fiquei curioso, iscapuli e vim... Agora conta o que cê quê cumigo.
—Olha vô, faz uns quatro anos que eu cismei de escrever umas histórias... Uns causos que eu vi de perto, outro que me contaram...A maioria são de gente conhecida nossa.
— Ieu tô sabeno...
—Já sabe? Então lá de cima o senhor tem notícias daqui de baixo?
—Ô si tenho! Ô si tenho! Cuntinua a me contá.
—Bom, eu precisava escrever um texto falando de um encontro com um personagem, aí me lembrei de que já escrevi muito sobre o senhor.
—Ieu sei... Iscrevinhô inte´dimais, Sá Mariinha, inté dimais.
—Ihh vô, o senhor não gostou? Mas veja bem, eu troquei seu nome, o nome da bisa e dos tios quando escrevia os causos.
—Ahh! Intão a sinhorinha acha que ninguém me reconheceu né? Ocê num magina o povo lá im riba caçoano de mim, quando ocê contô aquele causo meu de querê pulá da cachoêra do Cerradão.
—Verdade vô? Mas aquele causo é uma dos melhores, ganhei até medalha num concurso! Povo gosta muito dele!
—Pois fica sabeno, dona Mariinha, minha bisneta, que inté os Querubim, aquês anjinho miudinho, quando passa perto de mim faiz cara de riso e diz pros otros: “sigura o sô Joaquim, sinão ele pula lá im baxo”.
—Desculpa vovô, não era minha intenção.
—Vô pensá se discurpo ô não... Mais mi conta uma coisa: mode quê ocê num contô uns trem proibido, argum segredo do seu vô Joãozinho e do seu outro biso, o Tininho?
—Ahh, mas eu já escrevi sobre eles e as avós também. Amo demais todos vocês! Mas as suas histórias são muito engraçadas, fazem a mim e aos leitores rirem muito. É só coisa alegre!
—Ahh intão ieu sô paiaço e seus otros avô são tudo santim?
—Não me interprete mal, vô! Eu até acho que herdei um pouco desse seu jeito trapalhão.
—Hum... Num sei se gostei docê conta minhas intimidade pra todo mundo lê. Oia se pode: Cê falô inté daquês mantimento qui ieu amoitava da sua bisavó Ervira, pa leva pas cumade da cidade... Era tudo pobrezinha, com fiarada pa criá. Povo qui punha mardade nisso. Era só minhas cumade...
—Toda família sabia disso vô! Todo mundo sabia também que o senhor era um homem caridoso. Mãe conta que todo domingo era uma procissão de gente pobre da cidade, chegando na sua fazenda. O senhor mandava fazer almoço, tratava de todo mundo e ainda reservava todo o leite produzido aos domingos para distribuir aos pobres. Ela conta que aquelas pessoas pareciam formiguinhas indo embora carregando tanta coisa nas costas.
—Ieu num fazia mais qui minha obrigação, minha fia. Eu tinha muito, pricisava reparti... Isso ajudô ieu ganhá um bão lugá lá im riba...
—Vô... posso continuar contando histórias suas?
—Oia, oia o qui ocê vai contá Mariinha! Todo mundo qui conta um conto omenta um ponto. Mais segue em frente, cumpre o seu distino! Num tive tempo in vida de dizê procê, mas sempre tive uma estima danada de grande pela minha primeira bisnetinha, ocê!
—Nos veremos de novo? Eu disse emocionada...
—Fia, aprendi munta coisa do otro lado, uma é que um home nunca vai podê entrá duas vêis no memo rio, purque quando ele passá de novo por ali, o rio já num vai sê o memo, assim como o home tamém num será.
Sorriu para mim, estava com um olhar terno, me segurou a mão, nos abraçamos emocionados, deitei a cabeça no seu ombro e avistei o barrado no horizonte prenunciando o dia. Nessa hora acordei...
Corri até a janela que dava para a serra. Dirigi o olhar para o céu de um azul muito claro e saudei o dia com uma pequena oração.
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Meu bisavô Joaquim Pedro, minha avó Geralda ao meio e tia Tertulina a esquerda.
Este texto faz parte do Exercício Criativo - Encontro com uma personagem
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http://encantodasletras.50webs.com/encontrocomumapersonagem.htm