A maldição - Parte II

Aquele dia amanheceu diferente. Os raios de luz que entravam pelas frestas da janela eram mais fortes, incomodavam mais. Os passaros faziam mais ruidos lá fora e o vento cantava ao entrar pelos vidros desgastados.

Levantou-se cuidadosamente para não tropeçar nas raízes que cresciam ao redor de sua cama, de seu quarto, de sua casa. Vestiu uma tunica azul escura que lhe cobria até as mãos e pés, colocou o capuz grosso escondendo até os longos fios de cabelos e saiu do quarto. Um cheiro de terra pairava no ar. Tudo tinha gosto de terra naquele lugar.

Um homem grisalho estava na cozinha rustica com o fogão de lenha aceso, preparando algo.

“ Bom dia, temos café e bolinho de milho frito.”

A voz ecoou pelas paredes, ricocheteou no ar e pousou nos ouvidos dentro do capuz azul escuro. A mão fria, cheia de pequenas escamas e de cor estranha apareceu por entre o tecido e apanhou a comida vagarosamente. Enquanto mastigava olhou para as janelas fechadas com seus olhos negros brilhantes.

De novo os raios de sol que passavam pelos pequenos buracos entre as tábuas de madeira maciça dilatada estavam incomodando. Naquele dia, seguiu o caminho oposto de seus aposentos, para a surpresa de seu tutor. Seguiu o corredor até o final e olhou a porta da frente por longos minutos.

Era obvio que algo o incomodava e o chamava para sai, a mão direita instintivamente pousou no lado esquerdo do peito, como se algo ali doesse. Seria aquele o momento de sair, depois de tantos anos confinado?

Sentiu a mão forte do tutor que cuidava de suas coisas desde os primordios dias pousar em seu ombro. Deu um passo para tras, se desvencilhando do toque e dos pensamentos e voltou ao quarto vagarosamente, observando os desenhos que a claridade pintava no chão de pedra polida pelo uso.

Deitou-se na cama fria, fechou os olhos e viu nitidamente algo brilhando em algum lugar. Como se fosse uma visão. Abriu os olhos e percebeu que havia ressonado e sonhado. Lembrou uma estrela brilhando na água. Após algumas horas lutando contra as vontades e necessidades se levantou . De forma decidida foi até a porta e saiu, sob o olhar assustado e feliz do senhor que vivia com ele.

“ Meu mestre se libertou de uma amarra hoje.” Murmurou para si mesmo enquanto unia as mãos em um gesto em oração.

O ruído da tunica longa arrastando no chão de folhas e o desenho das sombras das árvores criaram uma aura estranha ao redor daquele rapaz. Ele não costumava andar durante a luz do dia. Treinava artes marciais a noite, cavalgava em silêncio, vivia em sombras, sem companhia. Mas naquele dia, desejava mais do que tudo andar no sol.

Com ouvidos sensiveis, ouviu os passos de crianças caminhando em sua direção. Em vão, tentou se esconder atrás das árvores. Mas a curiosidade dos pequenos é grande. A menor das crianças olhou em seus olhos por entre os galhos baixos de seu esconderijo e quase puxou totalmente seu capuz para saber o que havia ali dentro.

Oviu-se um grito histérico vindo do pequeno, desencadeando uma corrida desenfreada de pânico entre o bando de garotos.

Nosso amendrontado amigo de capa subiu rapidamente na árvore mais próxima, como se pertencesse a ela, assim que viu as crianças correndo pelas cercas opostas a sua propriedade.

O coração estava apertado, um pouco descompassado, atento; novamente um ruido lhe chamou atenção: algo caindo nas águas do rio. Não eram as crianças, sairam correndo rapido demais e seria improvavel terem passado no rio para tomar banho.

Enrugou a testa, esperou mais um pouco entre os galhos da árvore e desceu sem fazer um barulho.

Caminhou entre as árvores, se escondendo para chegar até o local dos sons.

Havia uma moça no rio. Nadava, o que fazia ele se sentir bem, pois não saberia o que fazer se ela estivesse em algum tipo de problema. A viu sair da água, olhar ao redor e voltar pela estrada que ele sempre evitou caminhar.

Respirou profundamente. O vento acompanhou seus pensamentos e revirou as copas das árvores com certa cadencia. Ele segurou o fôlego e olhou para o chão, como se controlasse a força da brisa. Na borda do rio, balançando com as pequenas ondas, algo brilhava. Parecia uma estrela em meio as águas. Quando abaixou para pegar, viu uma corrente com o pingente em forma de cristal de gelo.

Ficou paralisado com a ideia de ter que ir atrás de uma pessoa para entregar aquele artefato. Lembrou dos gritos das crianças à pouco. Guardou o artefato no bolso da túnica sem pensar em nada e voltou para a casa incomodado com a claridade.

Nisa Benthon
Enviado por Nisa Benthon em 18/04/2013
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