A maldição - Parte I

I

As visitas nas terras dos tios estavam cada vez menores, as distâncias à percorrer se tornavam maiores e a disponibilidade de tempo e dinheiro para fazer a viagem favorita era ínfima. Por isso, toda vez que chegava na fazenda de sei lá quantos hectares ela aproveitava cada segundo no meio das plantas e animais, evitando assim os tediosos conflitos e conversas de familia ao redor de uma mesa com bebida.

Adultos adoravam sentar em mesas, encher a cara de alcool e falar das vidas alheias, como se as próprias fossem perfeitas e sem falhas. Mesmo ela tendo mais de 28 anos, preferia se enquadrar no perfil de criança e fugir das discussões que não levavam a nada. Preferia mil vezes olhar o mundo como se fosse a primeira vez, passar mil vezes por uma arvore e a cada vez ver um inseto novo, um galho que brotou ou uma folha que caiu. Isso era um exercicio que sempre fazia, estando só ou acompanhada de alguém.

Naquela tarde após o almoço não foi diferente. Atravessou a varanda de sombras da casa com passos rápidos, chegou na piscina de água morna, se abaixou bem devagar, como se fosse levar uma bronca, molhou as mãos para passar no rosto e aproveitou para olhar ao redor e escolher qual caminho seguiria; qual porteira deveria pular daquela vez sem fazer barulho?

Sorriu ao ver sua imagem borrada na água artificialmente azulada e optou pelo caminho que mais existia árvores com folhas. Em 3 gestos já havia subido e pulado uma porteira. Quase não existia impacto da terra nos pés, de tantas folhas espalhadas pelo chão. Passou por dentro de um curral abandonado, onde aranhas fizeram cortinas de seda para garantir seu alimento; em alguns pontos as mesmas teias que se amarravam mostravam mobiles rodopiantes macabros de pequenos insetos mortos pendurados. Parou ali por alguns instantes, inspirando o ar com aroma carregado. O chão estava com uma espessa camada de poeira, mas as madeiras grossas que seguravam a cobertura de telhas antigas de barro parecia brilhar de tão negro. Talvez o cheiro fosse o óleo queimado que passaram na madeira para afungentar os cupins.

Andou mais, desceu pelo caminho que não era mais usado para despachar o gado. O mato tomava conta de tudo ao redor, mas não parecia ser deileixo do proprietário, e sim, capricho da natureza. Pendões de sementes de capim dourado dançavam entre as grades de madeira que ela insistia em pular como se fosse um moleque.

O caminho de árvores que estava há uns 200 metros após uma descida ingreme de pasto parecia chamar. As plantas gesticulavam abraços e acenos que ela insistia em retribuir tocando em suas folhas. Em alguns momentos as folhas eram borboletas, em outros, besouros coloridos.

“ Seriam borboletas as flores que podem voar? Ou seriam flores as borboletas voando?”

Assim que pisou na estreita estrada que ligava a fazenda a um leito de rio abriu os braços para sentir o vento ainda morno.

Um galho de árvore estalou no chão ao ser pisado. O caminho entre as árvores secas pelo outono era misterioso. As cores das folhas ao chão bordavam um tapete natural que mudava de tom a cada sopro.

Caminhou por quase uma hora e sentou-se em um galho deixado crescer ate o meio do leito do rio. Os pés ficaram dentro da água que corria vagarosamente enquanto as pernas balançavam desenhando redemoinhos na terra do fundo raso de pouco menos de um metro de profundidade.

Não sabia explicar com palavras, mas sentia uma imensa vontade de gargalhar. Sentia-se invadida de felicidade, como se sua vida pertencesse aquele lugar, mesmo não estando ali muitas vezes em sua vida.

Correu as mãos acariciando o imenso galho da árvore, fechou os olhos e respirou fundo. Deixou o corpo cair na água corrente e rasa. Sentiu o impacto frio e o fôlego se esvair, era como morrer por um segundo e voltar a vida de novo. Abriu os olhos só quando estava em pé, com a água na altura de sua cintura.

O silêncio foi quebrado com o som de passos apressados, crianças correndo pela estrada que ela havia passado. Ficou atras do galho, ainda dentro da água, esperando ver em que local da margem do rio ficariam.

Ficou surpresa ao ver que eles corriam desenfreadamente e assustados uns brigando com outros.

“ Idiota! Falei que não era pra entrar lá! Tem um diabo morando la dentro!!”

Ela mergulhou mais uma vez e reapareceu no meio do rio curiosa em ver e ouvir o que diziam, mas as vozes ficaram distantes rapidamente. Nadou mais um pouco no local que conseguia ver o chão e voltou para a margem caminhando devagar.

Uma lufada de vento derrubou mais folhas das árvores, deixando a água salpicada com varias formas e desenhos. Ela deteu-se mais uma vez olhando o capricho de redemoinhos pequenos entre as folhas, até que o frio bateu em sua espinha. No caminho de volta notou muitos galhos quebrados na estradinha, mas não conseguia ficar muito tempo olhando as mudanças porque seu corpo tremia cada vez que o vento teimava em acenar para a estrada. Isso e a fez voltar rápido para a casa onde pais e tios ainda conversavam sem notar seu sumiço de horas.

Ainda olhava a estradinha das árvores, agora com a sensação de ter deixado algo para trás. Apalpou os bolsos do short, pousou a mão a procura do colar com um pingente em forma de cristal de gelo que sempre usava e sentiu um calafrio ruim na boca do estômago. O colar não estava mais em seu pescoço.

Tomou um banho morno, vestiu um moletom. Ouviu seu nome ser chamado junto com o aroma de café fresco e biscoito frito. Amargura de ter perdido o colar poderia esperar alguns minutos e reaparecer após a fome ser saciada.

Após se servir sentou-se no chão, próxima aos que conversavam, com de uma chávena de café em uma das mãos e um punhado de biscoitos na outra.

“ Conta de novo aquela história dos antigos donos das terras vizinhas suas, aquelas que você nunca conseguiu comprar.”

O sol estava se pondo e as anedotas de terror eram agora as mais pedidas na roda. Estas histórias eram boas de se ouvir, então a mão escorregou pelo prato de guloseimas e se encheu de novo para abastecer a boca durante a narrativa.

A voz rouca do tio mais velho pigarreou e começou sua história:

“ Estas terras que vocês enxergam fora das minhas cercas são de um dono só. Diziam que foram de uma família muito rica que chegou aqui para fugir da guerra lá do país de onde vieram. Trouxeram muitos baús, escravos ( na época existiam escravos ainda) e construiram uma imensa casa. Até hoje podemos ver esta casa, se tivermos coragem de seguir por meio dessa mata que cresceu ao redor. Moro aqui há mais de 50 anos e nunca vi nenhum dos donos, muito raramente um empregado vê outro empregado daquela casa. Dizem até que a familia inteira morreu lá dentro e assombra o lugar para que ninguém ultrapasse os limites das cercas. 20 anos atrás ouvimos uma especie de cavalgada que entrou pela mata para visitar eles, a cidade ficou tão curiosa que muitos foram até a porteira de entrada ver se era algum tipo de festa ou cortejo funebre. Que eu me lembre, foi a primeira e ultima vez que qualquer um da cidade viu movimento naquela fazenda.”

“ Eles devem se misturar no meio do povo para nao serem reconhecidos, devem ser refugiados de guerra, com medo de gente, só pode né primo!”

O pai falando parecia até que fazia piada. Depois olhou para a mata fechada além das cercas ja escuras pela noite e perguntou:

“ Até onde vão suas cercas e onde começa a propriedade deles?”

“Minha ultima tarefa segue aquela estrada desativada cheia de árvores que vai até o rio. Passando o rio, as terras já são deles. As crianças vivem falando que enxergam árvores que andam por ali e os vaqueiros não conseguem fazer os cavalos irem até o outro lado. Parece que os animais enlouquecem de medo.”

Ela terminou o café e olhou o caminho que eu tinha percorrido a tarde. Estava amargurada por ter perdido o colar. Era um presente de um amigo que havia se mudado para outro país e que não voltaria mais. Guardava aquilo como um pedaço de alma, que agora fazia falta. O tio continuava a falar em tom bem solene:

“ Alguns dizem que tiveram um filho, que morreu quando chegou a comitiva de 20 anos atrás. Nunca se viu criança naquele lugar e os empregados que vão la arrumar cercas, bater pasto ou prestar serviços, dizem nunca ter visto nada além de um homem de meia idade que manda o que precisa ser feito e paga sem questionar valores.”

O papo começou a ficar entediante, ela bocejou e se aconchegou em uma poltrona na sala proxima. Ainda ouvia a história, mas agora o sono a agarrava com seus finos fios grudentos. Entre os cochilos e as conversas um sonho começou a florescer.

Uma mão branca aparecia por entre as folhas caidas das árvores, sem medo algum, ela agarrava esta mão e a puxava para fora. Em instantes as folhas voavam e ela não sentia mais os pés no chão. Estava sob ás aguas do rio, guiada pela misteriosa mão, envolta em folhas. Quando chegava até a outra margem, via pendurado em um galho branco o seu colar perdido. Ao esticar o braço para pegá-lo, acordou assustada, com a sensação de ter caido de um despenhadeiro.

As pessoas gargalhavam lá fora. Talvez isso a tinha acordado assustada.

Nisa Benthon
Enviado por Nisa Benthon em 23/02/2013
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