ALEGRIA AMBULANTE *

Parecia que o céu descia à terra, abençoando a todos seus filhos injuriados e desconsolados, assim era quando na pequena cidade anunciavam a chegada do circo. Pequeno vilarejo, onde o tempo tinha preguiça, o sol queimava a pele e os dias se arrastavam sempre iguais.

O anúncio da novidade enchia os corações, a molecada se agitava, todos corriam para ver as instalações, a lona remendada sendo erguida em terreno baldio e ermo, parecendo a solenidade de levantar a bandeira nacional, as acomodações do pessoal da trupe em tendas de pano, lembrando comboio cigano, de certa forma eram errantes, como nômades, hoje aqui, amanhã acolá.

Assim, durante as preparações, aquele público impaciente acompanhava cada movimento dos trabalhadores circenses, não os enxergando como artistas mas trabalhadores, carpinteiros e eletricistas, sem as indumentárias de shows, carregando coisas, limpando à área, testando os equipamentos.de som e de luzes. O mundo encantado dos pequenos acompanhantes se descortinava aos olhos de todos, do chão batido e limpo das ervas e matos, aprontava-se o picadeiro, de tábuas empilhadas montavam-se as arquibancadas, A cortina de estampa colorida divisava o palco da retaguarda, local onde os artistas ensaiavam suas participações, o mágico preparava suas proezas, os equilibristas em trajes de roupas luminescentes, a bailarina dava os últimos retoques, o sonoplasta seguia os movimentos acompanhando com o fundo musical. Todo um conjunto de uma equipe coesa para dar ao espetáculo as cores necessárias, angariando aplausos e assovios, fabricando sonhos e encantos.

A calmaria da cidadela se acendia, parecia ganhar vida. A azáfama dos habitantes alterava-se com o carro de som estridente anunciando as peripécias daquela noite, imperdível, sensacional, inacreditável espetáculo, atraindo a atenção até dos mais indiferentes. Sem nenhuma modéstia vendiam seu peixe, anunciando “o maior espetáculo de todos os tempos,” com a condescendência do público, mais interessado na diversão que na veracidade da propaganda, enganosa, com certeza. Malabaristas adquiriam nomes estapafúrdios, estrangeiros, para valorizarem a apresentação, como se fossem astros internacionais. Seguiam um grupo de palhaços com cornetas em algazarras, jogando confetes, cumprimentando os passantes.

De súbito, crianças obedientes, educadas, procurando merecer o direito de freqüentarem as sessões, convencendo seus pais a garantirem os ingressos. O comportamento era exemplar, todos primorosos, temendo ficarem de fora da brincadeira, penalizados em castigos por qualquer imprudência. Ninguém ousava desafiar as ordens paternas e maternas, pareciam transformados, se bem que não passavam despercebidos pelos adultos a razão de tanta “santidade” inesperada. Era uma trégua, um armistício temporário, uma dissimulação aceita com certa indulgência pelos pais, aliviados. Até na escola o ambiente melhorava, ninguém queria ter uma anotação na caderneta, risco certo para a exclusão da regalia tão almejada. Assim, nenhum atraso na chegada às aulas, brigas no recreio nem pensar, lições na ponta da língua, Respirava-se, estranhamente, naqueles corredores uma respeitosa convivência entre os alunos, sem correrias e gritos, irreal em outras circunstâncias. A direção bendizia a chegada do evento festivo, reduzia suas tarefas de vigilância e disciplina. Os professores em sala sentiam a diferença, pareciam todos convertidos em anjos, prontos a atender a qualquer solicitação dos mestres. Viviam dias de impaciência, controlando-se para não serem excluídos, valia o sacrifício. Poderia ser observado, naquelas ocasiões, uma serena mudança nos estudantes, cordatos e atenciosos entre si e com seus preceptores.

Enfim, a noite da estréia. Lâmpadas coloridas ornando a entrada, canções entoadas em tons triunfais, prefixos musicais anunciando o início. Tudo conspirando para a magia daqueles momentos, onde pareciam que todos os adultos também eram crianças, divertindo-se com as peripécias, assustados com os lances mais ousados dos equilibristas andando destemidos em estendidas cordas, nas alturas da lona. O suspense das facas incendiadas atingindo de perto seu alvo, a bonita bailarina. A mulher cortada ao meio, dentro do caixote, pelo habilidoso mágico, surgindo, logo depois, inteira, acenando. Risos soltos com as atrapalhadas dos engraçados palhaços. Havia o número do globo da morte, onde dois motociclistas, perigosamente, rodavam em círculos, mantendo o público em silêncio e receio, até que terminassem, recolhendo o reconhecimento em calorosos aplausos. Para os que não conseguiam o dinheiro para os ingressos, sujeitavam-se, alguns, a pequenos serviços em troca de assistirem a imperdível sessão. Engraçado era ver esses voluntários engalanados em fantasias exercendo as funções de condutores do público na plateia, ou ainda como auxiliares na entrada. Havia verdadeira disputa para tais colocações, aquilo, afinal, garantia a franquia para todos os dias, mediante o serviço. Mesmo os que conseguiam o suficiente para comprarem os ingressos, com disciplinadas atitudes e impecávell conduta, não tinham para todas as sessões.Fazia a diferença e nisso ganhava deles os escolhidos como trabalhadores eventuais, apesar do constrangimento das vestes berrantes e estapafúrdias, parecendo parte da comitiva.

Lá se acotovelavam os pequenos pendurados nas arquibancadas, tábuas rangentes, deslumbrados com os trapezistas, rindo das palhaçadas, curtindo as manjadas mágicas do astuto em fraque e cartola, os olhares cobiçosos dos mais velhos nas plásticas das dançarinas em seus maiôs ousados. Passavam em roupas coloridas os vendedores de pipocas, puxa-puxas, maças do amor, algodão doce, amendoins e refrigerantes, sendo chamados em cada canto daquela arena tumultuada.

Passadas algumas sessões, perdendo o inédito das apresentações, o público, aos poucos, refluía. Com o passar da euforia, o novo fica chato e velho. Chegava a hora de descer a lona, arrumar os trastes nas carrocerias dos caminhões, buscar novo público. Os alaridos do início apenas na assistência apática dos meninos vendo desmontar seus sonhos e magias.

Em casa, desestimulados, voltavam as intolerâncias e desobediências, a cobrança pelas lições não realizadas, os horários não cumpridos, tudo retornava a ser como antes. Nos corredores da escola, gritos e xingos, nos recreios desentendimentos e repreensões na diretoria. Voltavam as notas de reprimendas nos cadernos estudantis, a trégua de paz ruía. Uma subentendida rebeldia se instalava,como a reivindicarem mais ânimos para aquelas incipientes vidas.

Com a despedida do Circo, tudo voltava ao normal, e o tédio visitava os juvenis corações, sedentos de emoções e novidades, até a próxima atração...

* Publicado em livro na antologia NOSSOS CASOS, NOSSOS CAUSOS, da Editora CBJE- Rio de Janeiro-RJ, lançamento setembro 2015.