SERRA NEGRA X

Ritinha

Um traço da vida pobre, que conservava sua característica dramática e itinerante, era a freqüência anormal daquelas criaturas que fugiam da miséria absoluta para viver outra miséria absoluta em outras cidades, em outras regiões. Os vários tipos de retirantes se destacam muito distintamente em atividades tais como bóia fria, trabalho escravo, auxiliar de pedreiro nas grandes capitais do país, outros sendo porteiros de edifício ou trabalhos subalternos. Havia a prostituta apagada, de olhos lassos, que tendo pressionado o batom à sua boca febril, evocava em palavreado nostálgico um passado nebuloso, ao sujeitar um possível cliente para a arte do amor. Havia o poeta irremediavelmente de segunda classe, repentista ocasional, cuja voz se estirava por uma neblina de prosa rítmica e se podia ver a tremura nervosa de seus dedos pobres e desajeitados, sufocando espasmos mortais provenientes do esquistossomose, conservando, no entanto, uma cuidadosa postura à medida que improvisava versos, de tal modo que seu semblante doentio dava pena de ver. Sem nada nas mãos para ancorá-lo, ausência de um ponto de apoio para ele permanecer neste mundo, lançava para trás sua cabeça e despejava seu poema num monocórdio altamente irritante que rolava e parava abruptamente no final, baqueando na entrada da última linha e aguardando os aplausos encherem o silêncio. Ninguém o aplaudia, nenhum apupo, nadinha de nada acontecia, e aquela indiferença do público o deixava mais triste, mais alquebrado e mais morto. E havia o velho palrador que deixava cair gota por gota, em dose homeopática, uma lenda admirável, fatos do Sítio Caiana, assombrações ocorridas na Rua do Rosário, e a narrativa era sempre da mesma maneira, usando a expressão de desgosto fastidioso que o seu rosto bravamente sulcado apontava para uma vida de luta, doença e muito sofrimento. Seria fácil para um observador distanciado ridicularizar todas estas pessoas dificilmente palpáveis que, ao longo de suas vidas, relatavam uma civilização morta, miragens remotas e quase legendárias, de outras terras distantes, dos antigos conquistadores que aqui vieram. Pelo menos essa gente era rebelde, uma rebeldia de quem ficou e não partiu para lugar algum, de quem muito sofreu e a nada se deixou submeter, em verdade, com esta condição insurgente, à seu modo, o seu senso de justiça de liberdade ansiava tão fortemente quanto tinha ansiado sob a opressão dos coronéis e a crueza dos ricos proprietários de outrora.

“Depois que tudo aquilo

Permaneceu no pensamento,

Gravado no firmamento,

Como se fosse bacilo,

Resoluto eu me sento,

Na sala ou ao relento,

Escrevo o que me fascina,

Pois é fato verdadeiro,

O que aqui vou contar,

O amor daquela menina,

Foi um caso condoreiro,

Até o sertão virou mar,

Enquanto naquele lugar

Se criava cangaceiro”.

Os versos folhetinescos varavam pela noite adentro, remontavam lendas e fatos, Rei Arthur, Sansão e Dalila, Napoleão e Getúlio, numa fenomenal mistura de versos candentes que faziam chorar, e, para terminar, o amor sofrido do sertanejo, homem macho, nobre no respeito, acaba morrendo à faca e facão, numa disputa sangrenta pelo amor de Mariazinha que, pobre, a coitadinha, a tragédia chora, e a morte a consome, no copo o veneno a espreita, numa cama contrafeita, morre ela, Mariazinha bela, e de mãos dadas, ao amor se integra e o luar do sertão os vela. No éter estão gravados aqueles momentos felizes, o som da viola repete os ecos daquele tempo, doce na memória, incondicional na história e mais vivo que nunca, aquele tempo retorna e adquire vida, enquanto digito o que me vem à memória.

Quão distantes dos problemas naturais do dia a dia que cercava a vida daquela gente eram as excitantes tertúlias que antecediam os festejos do final de ano. As casas pintadas de novo faziam os vidros dos postigos reluzirem. O caramanchão revestido de trepadeiras floridas embelezava a praça Duque de Caxias enquanto a fonte do chafariz lançava água em cascata numa branca nuvem que fazia o encanto dos namorados da vez. Estão sendo tocados os sinos da Igreja Matriz e se alguém olhar para cima, pode-se ver bandeirolas presas em cordas de uma casa a outra, altas sobre a rua, tremulando suas três faixas verde, azul e amarelo – despojadas, pelo sol e pelas sombras das nuvens passageiras, de qualquer ligação mais forte com um feriado nacional, mas celebrando agora, sem dúvida, na cidade da memória, a essência daquele dia de verão, o coaxar do sapo, o começo da caxumba, a andorinha pousada no galho de uma árvore, o cata-vento postado no quintal de uma residência nobre, à beira do rio Ipojuca, completava o bucolismo daquela tarde majestosa.

Foi numa sexta feira que o primeiro dia do ano de 1971 começou cercado de uma grande festa para comemorar a vinda do ano novo. A felicidade das pessoas contagiava a vida da cidade pacata, uns bebiam, outros sorriam, outros comentavam acerca dos últimos acontecimentos e tantos outros cantavam a alegria de viver ali, naquele paraíso terrestre e verdadeiro.

Os festejos terminaram e a vida retoma seu curso. Na Volta do Sofrimento as mulheres rendeiras e as bordadeiras retomavam o seu ofício: ofício de dona de casa, ofício de mãe de família, ofício de mulher conformada por acatar um casamento falido e que vai empurrando com a barriga... o que fazer, né? Ofício de mulher rendeira que muito trabalha em troca do parco dinheirinho que vai ajudar no sustento da casa, no sustento de uma vida difícil, no sustento da honra, no sustento da vergonha.

- Mãe, Tonha ta buxuda! – Zefa mal sentou na calçada e foi detonando na bucha o que a estava remoendo por dentro. Dona Raimunda se encontrava absorta em pensamentos distantes, indefinidos, perdidos por aí afora.

- O que você disse minha fia? – perguntou dona Raimunda acordando daquela viagem imaginária.

- Eu disse que a sem vergonha da Tonha tá com a barriga crescendo, ta esperando outro bruguelo! – respondeu Zefa.

- Nossa mãe! Vixe! – bradou dona Raimunda – onde a gente vai parar?

- Vamos é pedir esmola pra sustentar essa cambada de menino e de menina! – respondeu Zefa entre dentes – enquanto a sem vergonha ora trepa aqui ora trepa acolá, e a gente se mata de trabalhar! Isso é demais!...

Fica queta Zefa! – respondeu dona Raimunda – você sabe que ali não tem mais cura, ela não tem mais controle da vontade! Eu nem sei mais o que fazer! Num dá prá trancar o xibiu! È entregar na mão de Deus Nosso Senhor! O meu medo é que em qualquer dia desse, ela vá morrer desse mal!

MARIA Antonia Braz Pereira, esse era o seu nome de batismo, Tonha para os íntimos e “Meu Xodó” para os mais íntimos, mulher faceira, brejeira no modo de ser, feiticeira no prazer, sabia como ninguém a arte de fazer bem, era amante corajosa, no folguedo ardorosa, não tinha nem dia nem hora para o ofício do amor, nem sabia dizer não, se dava de aberto coração. Tudo começou quando numa noite de festança, depois de um banzé danado, entregou-se ao cuidado de um rico cidadão, o coração pulsava tanto, no entanto o prazer era maior, depois daquela vez, foi dando de deu em deu, do sargento ao coronel, passando pelo prefeito, crescia o seu conceito, de mulher boa no leito.

Tonha se mostrava alegre, ingênua e inconsequente. Para os outros ela aparentava gastar a vida em alegres folguedos, vazia de sentimento, riso fácil e ar de deboche. Interiormente, ela sentia que havia gasto toda a sua vida a sentir-se miserável: essa miséria era seu elemento inato; suas flutuações, sua profundidade variável, só elas, deram-lhe a impressão de movimento e vida. O problema é que tal sentimento de miséria, e mais nada, não é suficiente para edificar uma alma permanente. Tonha se sentia bem na terra, seria impossível sentir-se bem na eternidade somente com estes recursos. Será que ela terá conseguido resguardar-se das malhas da ficção? Um pouco antes do ritmo de sua vida vacilar e desaparecer, surpreende-se imaginando se, durante os anos vividos até agora – 28 anos exatos – não lhe ficou faltando completamente, alguma coisa dela que fosse bem mais do que sua face, seu queixo, seu corpo, suas ancas, seu sexo ou suas maneiras ou até mesmo sua palavra doce – alguma coisa próxima de seu último lampejo, um pai para os filhos, por exemplo, próxima da fraude radiante que havia usado para se ver partindo contente com sua própria bondade; em suma, algo a que só se pode dar valor depois que as coisas e os seres, que ela mais amou na segurança de sua infância, tenham sido transformadas em cinzas ou diluídas num passado distante...

Tonha estava grávida, pela décima segunda vez, em seu ventre, uma nova vida se formava, se firmava para depois nascer, e nasceu enquanto ela partia para nunca mais voltar. Bem que Maria Parteira tentara com rezas e unguentos superar aquele momento difícil, as complicações se agravaram e venceram a fraca resistência daquela brava mulher. Levou consigo o nome dos pais de cada filho, deixando somente as suspeitas pela aparência de cada uma das crianças órfãs com supostos senhores da sociedade. Muita gente compareceu ao velório e curiosamente o número de homens era superior ao número de mulheres. Esta afluência masculina ao velório de Tonha era bastante sintomático, era um preito de gratidão àquela que soube silenciar, soube guardar dentro de si os conceitos de alcova.

Aos treze anos, conforme o seu desejo, Ritinha foi confiada a uma família abastada para fazer trabalhos caseiros, estudar e se transformar em uma mulher responsável. No começo os dias de Ritinha naquela casa corriam de acordo com o estabelecido anteriormente. Dona Esmeralda, a patroa, mulher esbelta, educada e amável, a tratava com muito carinho e respeito. O senhor Adalberto, o esposo de Dona Esmeralda, além de atencioso procurava orientá-la nos deveres escolares. O casal, logo que Ritinha foi admitida como empregada doméstica, providenciou exames médicos, tratamento dentário, exame de fezes para livrá-la de algum verme ocasional. Ritinha desde cedo deixara para trás as brincadeiras que gostava de fazer com Zé de Nana, deixara as corridas loucas e sem rumo certo, as academias, as cantigas de roda e os esconde-escondes. Essas coisas faziam parte do passado. Exceto por duas ou três pobres escapadelas que fizera para ir ao encontro de Zé de Nana, tais encontros nunca mais aconteceram. Ela ainda recorda da última vez que foi ao encontro daquele muleque safado, ocorrido há uns dois anos atrás.

- Ritinha, minha coisinha gostosa, você sumiu depois que foi trabaiá na casa de seu Adalberto! Eu sinto uma falta danada de você! Sinto um peso tão grande do lado do coração quando só vejo você na igreja ou quando está saindo da escola acompanhada por muita gente. Esse peso se chama saudade, Ritinha! – gritava com veemência Zé de Nana, enquanto acariciava o corpo de Ritinha.

- Para com isso cachorro! – gemia Ritinha ao embalo daqueles dedos inteligentes que sabiam onde se encontravam as partes vulneráveis daquele corpo em formação, prenunciando tornar-se um corpo escultural.

Foi o último encontro. Seu Adalberto descobriu as fugas, fez ameaças de contar à sua avó dona Raimunda e, se ela continuasse, ele a devolveria à família.

- Pelo amor de Deus seu Adalberto, não faça isso! Eu prometo nunca mais fazer essas coisas! Prometo que só sairei da sua casa quando o Senhor ou Dona Esmeralda consentirem!

Depois daquele incidente, as fugas, Zé de Nana e os irmãos passaram a ser uma mera sombra no fundo das suas recordações mais ricas e detalhadas. Ritinha se tornava uma moça bela, os parentes, os matas, as moitas e Zé de Nana eram as testemunhas desta transformação.

O casal tinha três filhos, crianças ainda, que adoravam desfrutar da companhia de Ritinha. Ela sabia como conquistar a confiança daqueles pequenos seres e criava diferentes maneiras de atrair a atenção de Andrezinho, Lucinha e Aninha. A casa dos patrões de Ritinha estava situada na parte nobre da cidade, na Rua da Matriz.

Ritinha teve onze irmãos e, se sua mãe, Tonha, não tivesse morrido do último parto, o número de irmãos teria sido muito maior. Por várias razões e circunstâncias adversas, seria excessivamente difícil ela saber com segurança como estavam os seus irmãos. Esporadicamente ia à casa da avó numa visita rápida.

Foi “uma festa de arromba” os quinze anos de Ritinha que, já moça feita, mostrava para o que veio: menina moça, moça menina, quase criança ainda, corpo de mulher. Aprendera com os patrões um modo diferente de comportamento que chamava a atenção, "coisa de gente rica". "Gente fina", ora se é! Muito fina ficou a cintura da menina! Belo vestido num corpo delgado, belas curvas, peito amaciado, lábios carnudos, tez morena, cor de canela, a menina prometia. Destoava com aquela gente, a sua gente, o seu querer. Fazia gosto de ver aquele corpo perfeito. As vizinhas, - bordadeiras e rendeiras -, todas sem faltar nenhuma, compareceram para abrilhantar a festa de Ritinha. Dona Raimunda e Seu Joaquim não se cabiam de contentes, os irmãos e as tias também estavam felizes. Os patrões - seu Adalberto e dona Esmeralda - fizeram questão de promover aquela festa: bebidas, os salgados, os doces, o bolo, o sanfoneiro e acompanhantes, e o belo vestido de Ritinha. É verdade que os patrões compareceram à festa, permaneceram por curto tempo. Ritinha irradiava beleza e alegria, os rapazes disputavam a vez de dançar com ela.

Zé de Nana compareceu à festa, ela procurava se distanciar dele, tinha de seguir as recomendações de seu Adalberto, que ela evitasse de falar com "aquela marmota", afinal, ela irá encontrar um rapaz melhor para namorar.

- Filha da puta, não quer dançar comigo! – exclama Zé de Nana para si mesmo - Vai ver que ela já ta dando a buceta prá seu Adalberto! Se eu descobrir alguma coisa a esse respeito, a merda vai feder! Agora, enquanto ela mais cresce, mais bonita fica! Que pedaço de mau caminho!

Depois de beber alguns goles de cachaça com caju, Zé de Nana foi embora , antes fez questão de falar com Ritinha:

- Olha aqui Ritinha, eu vou m’imbora, não aguento de te ver nesta lordeza toda! Não tás querendo mais me ver, não tás querendo ir mais pro mato, mas uma coisa eu vou guardar dentro de mim: eu fui o primeiro homem que te tocou, que te apertou e que te desejou... Agora que tás moça feita eu sei que não vai querer mais me ver... Até outro dia, lindeza!

- Até - respondeu ela com frieza.

- Este é o meu momento - pensava ela - estou conseguindo realizar tudo o que eu sempre desejei. Agora vejo o quanto estou diferente da minha família. A partir de agora vou querer que os meus irmãos aprendam a ler e escrever; procurar bons empregos e tirar a nossa família dessa rotina de trabalho cansativo, torturante e que não oferece melhoria de situação. A nossa história será diferente a partir de agora.

A festa terminou bem tarde, já hora avançada, a madrugada se avizinhava quando os convidados começaram a se despedir daquela festa inesquecível.

- Vamos dormir gente! – convidava o avô Joaquim – a festa foi um primor mas é hora de descansar os ossos!

- Tás feliz, Ritinha? - perguntou dona Raimunda depois que os últimos convidados se foram - Afinal, a tua vida tá dentro dos conformes, o tão sonhado trabalho, a casa de gente rica... Longe da nossa gente...

- Estou muito feliz minha querida avó - respondeu Ritinha - mas se procurei trabalhar em casa de gente rica foi porque eu não tenho jeito de ser rendeira... Estou estudando e quero me formar em alguma coisa, quero ganhar mais dinheiro para ajudar a todos vocês...

- Se a tua mãe estivesse viva, iria se orgulhar de tu minha filha! - exclamou a avó com lágrimas nos olhos - vem pros braços da tua avó, vem menina linda!

Dona Raimunda não era dada a arroubos de carinhos e beijos mas naquele momento, uma saudade incontida da filha "sem juízo" a tomou por completo. Tanto que pediu a Tonha prá parar de embuxar, de parir crianças e ela não ouviu os conselhos. Foi morrer justamente num parto difícil, nas mãos de Maria Parteira que nada pode fazer naquele momento de dor e correria. Pelo menos conseguiu salvar a criança - Francisquinho - uma linda criança.

- É verdade, _ dizia dona Raimunda - se Tonha estivesse entre nós, iria se orgulhar de você minha neta!

Sobressaiam-lhe os olhos castanhos e luminosos, uma claridade ameaçadora, determinada, Ritinha queria vencer etapas, o primeiro passo já dera... e os passos seguintes? Viu a mancha laranja que queimava no fogão de lenha. Então a madeira em chamas soltava fagulhas, semelhante a batida de asas de uma fênix agora em liberdade, voaria bem alto, céu acima para juntar-se às estrelas. À duras penas e muita luta é que ela, como aquele pássaro de fogo, teria de queimar para que fosse vista e reconhecida.

Enquanto encomiavam a festa, as tias e os irmãos de Ritinha censuravam certas atitudes do um ou outro convidado e abriam os presentes em profusão: sabonetes, águas de colônia, calcinhas, blusas bordadas, pentes, espelhos, objetos artesanais e mil e uma bugiganga que Ritinha recebera. Pouco a pouco o sono foi dominando a todos e, depois de alguns instantes, todos dormiam um sono reparador.

clira
Enviado por clira em 25/05/2012
Reeditado em 12/07/2017
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