SERRA NEGRA IX

CAPÍTULO IX

A FESTA PROFANA

Poucas coisas na verdade é do conhecimento de todos os bezerrenses, no sentido de emoções ou apetite, ambição ou realização, que excederiam em beleza e riqueza de detalhes à festa do fim de ano em Bezerros. E havia a alvorada festiva, e havia a missa solene, e havia a cavalhada, e havia a procissão, e havia a quermesse, e havia o pastoril, e havia tantas outras atrações que fica difícil de enumerar. Os adultos se encantavam com tantas atrações e a criançada se deslumbrava com o parque de diversão, com o sorvete ralado no gelo, algodão doce ou puxa-puxa. Naqueles tempos distantes cuja luz brilhante encontra tantos caminhos ingênuos para brilhar e alcançar a emoção daquela gente pacata que trocava o dia pela noite, na mais completa animação quando se trata de final de ano.

A procissão termina, as imagens dos santos são postas enviesadas sobre os bancos no interior do templo para a visitação pública. A festa profana começa, é noite já instalada e o motor que fornecia luz, viraria pela madrugada a dentro, nada podia falhar, a luz garantida estava, a festa prometida se acalorava, os visitantes a todos os conhecidos cumprimentavam, e o pastoril se alinhava, para que, exatamente às oito horas da noite, a disputa do cordão encarnado com o cordão azul começasse sem atraso. As famílias tradicionais ao longo da rua suas cadeiras colocavam para o descanso e que os idosos nada perdessem daquela festa tradicional. A quermesse já atuava, os bilhetes eram vendidos prometendo valiosas prendas tais como ganhar uma panela de alumínio, uma boneca de louça para deleite de uma menina qualquer ou um carrinho talhado em madeira e pintado para um menino levado. Quem vai querer “pescar” um prêmio neste jogo de pescaria? – gritava Zebedeu. Repentistas e os cantadores numa alegre cantoria, num desafio de versos, com grande categoria, motejavam à revelia, quando o freguês pedia. Enquanto eles se digladiavam em versos, a platéia escrevia o mote e colocava na tigela com a moeda que tilintava. Em outro plano afastado, as matutas alegres estavam, em vestido de chita enfiadas, as saias rodadas em cores diversas, costuradas por dona Maria Satu ou dona Inês, esposa de seu Antonio Peru, exalavam Royal Briah, perfume barato comprado na banca de seu Zé Estevão e caminhavam pelo recinto festivo em frente à matriz. Muitas delas após uma refeição efetuada na torda de seu Raimundo – carne guisada, galinha à cabidela, sarapatel ou buchada -, se dirigem à igreja matriz e, no interior do templo, sentadas, recolhidas em oração, aguardavam a hora santa que começaria às onze horas da noite sendo o climax à meia noite, com a bênção do Santíssimo Sacramento, comemorando o romper do ano novo. Numa rua mais afastada, um sanfoneiro animado atacava animadas músicas, num chenhenhen arretado! Muitas matutas e piniqueiras, as mal faladas e arengueiras, dançavam uma dança arrojada, e pelo andar da jornada, iriam terminar num colchão de estrada, onde tudo acontecia depois do rela bucho danado. Nove meses contados, depois daquele folguedo danado, nasce um curumim, seu criado!

A cidade de Bezerros sempre teve a fama de ser terra de mulher bonita e naquela noite de magia essa afirmativa se confirmava sobejamente. Para qualquer lado que se olhasse surgia uma beldade, até parece que a beleza feminina brotava da terra crua. Moças bem criadas, algumas estudam na capital e a maioria estuda no educandário Nossa Senhora das Dores, colégio centenário, estabelecido numa artéria principal da cidade. Moças bem vestidas, maquiadas e bem cuidadas, o perfume Marajoara emanava daqueles corpos virgens e se espalhava num odor franco e suave indo até às narinas dos transeuntes. Os rapazes da cidade e de fora – de terno vestidos ficavam embevecidos diante de tantas deusas que circulavam pelo passeio público. Era difícil escolher dentre elas qual seria a mais bela e por causa disso, eles garimpavam um descuidado olhar, arriscando piscadelas e aguardavam um olhar que correspondesse à sua escolha. O jogo da sedução era iniciado, a caçada era sem trégua, o elogio era num crescendo, num crescendo harmonioso, o serviço de alto falante também cooperava com aquele assédio:

“para alguém que está vestida de azul,portando uma rosa no cabelo, queira receber esta mensagem sonora como prova de grande amor. Assina, Coração Solitário”. A voz de Orlando Silva ecoava a canção Rosa através das quatro bocas de alto-falantes que ficavam situados em quatro pontos estratégicos do passeio público. Quem resiste tamanho assédio? Se por sorte, um furtivo olhar a algum deles aporte, o destino será selado, um provável namoro alcançado e o rapaz enlaçado. Era a hora certa dos acertos, sendo respeitado os conceitos, a coisa mudava o rumo: o rapaz em aprumo, cortejando a bela dama, e a noite acontecia.

Maria da Avenida, Maria Perigo e as outras marias do Velame (as Marias do Jequiá eram impedidas de comparecer a evento público, as autoridades policias afirmavam que elas formavam um atentado ao pudor) em galhardia, pela festa desfilavam, mascaradas em honradez, naquela noite não haverá função até uma hora da madrugada, nada acontecia antes da missa rezada, pois como filhas de Deus, festejar o romper do ano novo queriam, longe da safadeza, de putaria e rudeza, de rapazes ruins de conceito, muitos sem saber direito o que fazer com mulher dama, elas com calma e respeito, ensinam o chamego na cama. Muitos dos cavalheiros que por ali desfilam, mostrando-se guapos, gentis- homens, sendo que os segredos de alcova, elas em seus íntimos guardavam. Nenhum deles esta noite na rua as cumprimentavam. Elas bem sabiam que essa tática concordância fazia parte do acordo,

- Filhos da puta! – comentava a primeira – aquele ali, quando o motor da prefeitura apaga e as ruas escuras ficam, vem de pica endurecida procurar o meu regaço.

- Aquele lá – retrucava a outra - de estrovenga do tamanho do pau dum jegue, vem se estreitar em meus braços, ficando num bate entope, até pelo meio da madrugada!

- E seu Zé da Melancia que mal a noite inicia, dá um trabalho danado prá sua moral se firmar?

– e agora, esses merdas fingem que a gente nem existe , que somos mariposas pestilentas e sem piedade nos rejeitam!...

Um cheiro de óleo queimado, toma conta do recinto, que vem do outro lado, um fato que não minto: é o motor do carrossel, que num estrondo danado, feito um bravio corcel, corre desatinado. Montadas em cavalinhos, as crianças alegres gritam, os pais divertidos ficam, e quanto mais o motor acelera, mais fumaça ele atiça. As canoas de tareco não param de balançar, numa manobra infernal, jogando a canoa no ar, a garotada incontida, se joga daqui prá lá. O responsável pelo geringonça, cuspindo feito onça, freia a canoa depressa para evitar que uma desgraça com aquela molecada ruim aconteça. A onda é mais romântica, mais suave, e mais eclética, é feito com curva simétrica, para mulher apaixonada, para namorados e afins, ela é apropriada, o remansar do brinquedo, servindo ponto de enredo, os eleva até aos confins, a leveza do vôo ardente, deixa a pessoa ausente, naquele namoro agarrado, vendo-se um ao outro encangados, se perdem num doce agrado. Naquele sobe e desce gostoso, homem macho fica dengoso, menina moça fica sem ar, agarrada ao namorado, fica num viço danado, querendo em seus braços nanar! E para completar o cenário, o xaxado centenário toma conta do plenário, cujo som é extraído da harmônica de seu Zezé, que toca sempre munido do zabumda de Ivanildo e ficam todos de pé.

clira
Enviado por clira em 11/05/2012
Reeditado em 22/08/2017
Código do texto: T3661774
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