SERRA NEGRA VIII

CAPÍTULO VIII

O PADROEIRO

Ao calor ávido da tarde que morre, bancos de praça, a ponte e barros secavam com uma rapidez incrível depois de uma chuva passageira, e logo amealhei incontáveis informações acerca do meu povo. A espécie de literatura que eu pretendo produzir agora não é nada além de um sinal, sinal de que estou vivo, vivo durante a oitiva de um passado registrado no éter, de estar passando ou de ter passado, ou de esperar passar, por certas emoções humanas intensas juntamente com aquelas criaturas que viveram naquele espaço de tempo que delimita os fatos contidos neste romance. É um processo de orientação e de informação, muito mais que de arte, e por isso comparável às tabuletas colocadas à beira da estrada ou faixas de pintura de um amarelo cintilante que são feitas sobre uma pedra para assinalar os quilômetros percorridos ou a distância que nos separa de uma cidade a outra. Com tantas informações, sinto-me siderado e por causa disto, descubro que toda literatura é posicional: logo, eu preciso expressar através de palavras a posição escolhida em relação ao universo abraçado pela consciência, pois isto é uma escolha imperativa, é uma decisão imemorial. Os braços da consciência quanto mais compridos forem conseguirá um efeito melhor. Tentáculos e não asas são os membros naturais que alcançam anos posteriores, filosoficamente, que, enquanto o cientista se fixa num determinado ponto do espaço, o poeta ou escritor se fixa em tudo o que se passa num determinado ponto do tempo. Perdido em pensamento, bato com um lápis de condão no joelho, e ao mesmo tempo as coisas acontecem: o trânsito flui depois de um congestionamento enervante, a criança joga bola, um velho boceja enquanto sustem um cachimbo em brasa na boca murcha, uma folha seca rola pela rua ao sabor de um vento vadio e trilhões de outros pequenos ou grandes movimentos ocorrem por este mundo de Deus – formando um todo de acontecimentos no qual eu (assentado diante do computador), sou o núcleo.

Meu povo preste atenção em tudo o que aqui for dito, pelas rezas e bendito, vou escrever bem contrito, o que se passou por ali, na cidade que nasci. Mal nascido naquele ano, incapaz para desenvolver qualquer “sincronização cósmica”, descobri, mesmo assim, que aquele que espera se tornar num escritor de boa cepa precisa desenvolver a capacidade de pensar em várias coisas num só momento e se tornar atemporal.

Às dez horas da manhã daquele dia 31 de dezembro de 1950, uma missa solene é celebrada com muita pompa. Os padres e seminaristas envidam todo o esforço para o brilhantismo da parte religiosa do evento: Padre José Florentino, o vigário titular da paróquia, dois outros padres coadjutores e os seminaristas João Bosco, Zezinho Amorim, George Miguel, Plácido e Wilson Cazuzu, se revezam no cumprimento ritualístico daquele evento sublime. O coral da matriz tem o seu destaque: a voz de soprano de Maria Teles, canora e de mavioso timbre fazendo dueto com o tenor Dedinho Cabral numa memorável exibição. Quem daquela época não lembra do canto gregoriano ou missa em duas, tres ou quatro vozes exibidos por aquele coral competente, tendo à frente esses dois artistas do bel canto? A maestria de Cecília Bezerra dedilhando a serafina dá um toque de classe na orquestra composta por violino e rabecão. Cecília Bezerra além de organista era professora de piano e presidente da Pia União das Filhas de Maria. No recinto religioso o cheiro do incenso se misturava com o perfume dos cravos que enfeitavam o altar mor: a vaselina Glostora concorria com o Óleo Dirce nos cabelos dos ouvintes, bem como as colônias de Alfazema e a Inglesa com toda a reverência, formavam a peça de resistência. Aquele latim cantado num concerto angelical até parece que os sons emanavam das imagens centenárias, criando um deslumbrado recolhimento, espalhando por toda a nave um ar de embevecimento. Um arrepio tomava conta dos presentes na hora em que o oficiante, numa fervorosa voz entoou o “Gloria in Exelsis Deo!” Um quê de magia envolve toda a nave central da igreja, a cidade inteira é saudada, o espocar da girândola, o sino mor em lá maior comanda o doce repicar e todos param, e todos oram e muitos choram, naquela hora da eterna Glória ao Deus das alturas que todos os dias a cidade e as cercanias, todas as culturas são bafejadas pela divina bênção das forças celestiais. Toda a cerimônia obedece a um rigoroso esquema, sem nenhuma alteração, as autoridades municipais espalhadas pela nave, dá um toque de nobreza, até chegar na tribuna, onde o prefeito dorme um sono de realeza. São José em seu nicho a tudo presencia, e como pai bondoso que é, a todos abençoa. O dia promete ser de muito movimento e de muito acontecimento. Após a missa, por volta do meio dia, Cecília Bezerra como presidente da Pia União das Filhas de Maria, feito uma madre superiora, às moçoilas do lugar, ela impõe um comportamento de sobriedade; através de palavras e gestos de autoridade que a si fora conferida, Exigia que todas se vestissem de vestido branco engomado para exibirem durante a procissão daquele dia, e no cordão programado, as mesmas entoassem hinos ensaiados e rezassem o terço bem rezado. Faz gosto ver aquela ordem, aquele regime de piedosa postura...

Às quatro horas da tarde a multidão se movimentava pelas ruas e artérias da cidade festiva. Vinham moradores das roças e sítios, roupas novas, sapatos e cintos, os homens vestiam calça de brim e camisa de cáqui, e vestidos de chita predominava nas mulheres. Mulheres com o rosto estampando uma face rosada pelo atrito das papoulas vermelhas, lá se iam elas, morenas, loiras ou mulatas, as mulheres do agreste, da roça, de Bezerros enfim, numa alegre debandada... Lá vem a procissão, vários andores, São José, a Virgem, Santo Antonio, São Pedro, São Paulo, São Benedito e a Virgem da Conceição, barrocas imagens, desfilam pelas ruas, entre rezas e benditos. Até parece que o céu desceu e está ali presente, naquele pedaço de terra onde contritos oram toda a gente .

- “São José, a vós nosso amor, sede nós, o bom protetor, aumentai, o nosso fervor!” – cantam as crianças da cruzada, as meninas da Pia União cantam, Dona Maria de Teófilo, levando o estandarte do Sagrado Coração de Jesus, as senhoras da irmandade, num azul marinho bem cuidado, as opas vermelhas dos ilustres homens honrados, guardiões do Santíssimo, São José por eles ladeado, uma verdadeira guarda de honra por seu Zuzinha Guilherme liderada , os novos homens da Távola Redonda. Os seminaristas, os padres, todos em louvor a São José cantam, enquanto o cheiro do incenso pelas ruas se espalha. Os homens disputavam para segurar o andor de São José, é voz corrente na cidade que “quem pegar no andor do santo padroeiro era começar o ano novo abençoado”. Fazia gosto ver São José abençoando a cidade a ele dedicada, de Cantalice cognominado e pelos bezerrenses respeitado.

clira
Enviado por clira em 10/05/2012
Reeditado em 22/08/2017
Código do texto: T3660020
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