SERRA NEGRA VI

CAPÍTULO VI

ADMIRÁVEL JOVEM HOMEM VELHO

Os sons longínquos e borrados, um grito, um apito do trem, a buzina do carro, tudo que era perfeitamente sem importância não tinha nada a ver com ele naquele momento. Todos os dias na hora do ocaso, na calçada em frente à residência, ele ficava numa cadeira de assento de palha, voltado ao poente, totalmente embevecido com o espetáculo gratuito do por do sol. Naquele momento do ocaso ele era menos o guardião da família do que guardião de um segredo. O segredo de Deus confiado a tão augusta alma. Com os braços estendidos e as mãos apoiadas sobre os joelhos, ele gozava o luxo de fechar os olhos, e assim, escutar seu coração batendo e sentir os últimos raios do sol projetando-se em sua testa e tornando brilhantes os cabelos encanecidos. À distância, os sons alquebrados dos passantes no vai e vem da vida, enquanto ele pensava em si mesmo como um ser exótico e fabuloso num disfarce de octogenário, compondo versos imaginários numa língua que ninguém entendia sobre um país remoto que ninguém conhecia, a linguagem dos anjos decerto, e o provável país celestial. Este homem inesquecível - Zuzinha Guilherme - cujo exemplo de vida deve ser preservado por todo e sempre. Ele não deixava de pensar que, ao lado de costumes extraordinários, um pouco transitórios, e mais profundos do que rituais ou regras, havia algo de remanescente na vida de cada ser que muitos estudiosos solenes tentaram definir. Ele via esta propriedade básica como o sentimento de presença constante de uma dimensão desimpedida no tempo. Não se sabe quem vai à igreja à procura das impressões que as preces teriam deixado na lama negra dos desafios que a vida oferece, ou para seguir a sombra de uma fé ardorosa através deste vale de lágrimas que vai até à Luz; como um católico fervoroso, seu Zuzinha conservava Deus dentro de si com um entusiasmo maior que o turístico, não procurava impressões e nem sombras de fé, atravessou a vida terrena sob a égide da pobreza, obediência e castidade, deixando o seu exemplo impresso nas paredes veneráveis da residência em que viveu. Quem dele se aproximasse naquele momento solene de prece silenciosa, ele dividia a sua atenção: uma permanecia na prece e a outra trocava idéia com o visitante. Depois de alguns minutos ele convidava a visita para uma comunhão de fé e beleza:

Veja que entardecer lindo!

Para quem pretende preservar dentro de si a retidão de caráter, a fé e amor incondicional, mire-se no exemplo deste homem que, imantado pelo amor de Deus, soube distribuir às almas sua porção de fé e sua porção de poesia. Faz bem lembrar o que é bom recordar, faz bem recordar o lendário Zuzinha Guilherme.

O dia 31 de dezembro está muito festivo, mais festivo do que nunca! O baile do ano novo se anuncia febril, os dançarinos a mais de mil, toda aquela matutada alegre, esperando a hora de emburacar noite adentro num remelexo incontido, um balanceio de dar gosto! Mas não vamos adiantar os fatos e vamos narrar com cuidado e minúcias o decorrer daquele dia singular: Veio a alvorada, em conformidade com a tradição da cidade: os sinos de Manoel Leite repicando, os fogos de Seu Chico Paulino, o fogueteiro, espocando, a banda de música tocando e o leiteiro o leite distribuindo, leite da fazenda de seu Zuzinha Guilherme para o mingau das crianças e acompanhar o cuscuz dos adultos. Bezerros de outrora. Que aurora é essa que te envolve agora, que átimo de gozo te faz sorrir, enquanto teus filhos alegres cantam e se encantam vendo o sol surgir? O café da manhã começa rico em variadas iguarias: pão e cuscuz; carne de sol e nambu, queijo, requeijão e melado, macaxeira, filé e batata, banana assada, manteiga de garrafa, mungunzá e coalhada, para logo depois um espirrar gostoso ao inalar o rapé gostoso... Todo feliz e orgulhoso, o Seu Vuco-Vuco das Três e Vinte, (apelido conferido ao Seu João do Brejo que de terno branco sempre engomado, diariamente na estação, à postos, esperava o britânico e pontual trem das três e vinte) saudava alegre a todos que se acotovelavam às janelas, olhando aquele singular movimento. Bezerros das meretrizes da rua do Velame ou do Jequiá que hoje prontas estão ao desdobramento da função de sexo e amor, dando um trato especial aos tímidos imberbes, ensinando a função do homem na hora do amor e aprender a brincadeira de fazer anjo! Mas tudo isso vai acontecer depois da entrada do ano novo. Afinal, elas também são filhas de Deus e merecem um sadio divertimento.

clira
Enviado por clira em 08/05/2012
Reeditado em 23/08/2017
Código do texto: T3656424
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