SERRA NEGRA IV

CAPÍTULO IV

FINAL DE ANO EM BEZERROS

Tenho observado que, após ter emprestado aos personagens deste romance, alguns itens do meu passado que se encontravam guardados com tanto desvelo, sinto-me mais leve, mais empolgado e mais motivado para escrever. É um estado de graça e um estado de alma indescritível. O calor pessoal de cada personagem deste romance sempre sobreviveu em minha mente e fico temendo que cada um deles acabe perdendo o encanto e o interesse em sua retrospecção e, agora, enquanto escrevo, torne-se mais identificado com o estilo que pretendo imprimir, do que com o meu ego original e imaculado, que eu julgava estar protegido contra a intromissão do artista. Casas surgem, homens partem, outros voltam; mulheres casam, outras se prostituem; fico na dúvida se tais fatos são frutos da minha memória ou são o resultado em fantasiar tão surdamente como o faziam os seriados de faroeste exibidos às quartas-feiras no cinema de Seu Eurico, e antes que o retrato do passado feneça e se torne embaçado em meu banco de dados pessoal, agora que me dedico a escrever sem descanso, procuro me divorciar da vontade e deixo a verdade predominar inteiramente distinta de minha mente fantasiosa. Quero ser fiel às laudas e mais laudas que se estendem diante de mim e fugir da ficção, na tentativa desesperada em procurar salvar o que resta de verdadeiro sem esquecer de florear com estilo o que irá agradar e deleitar o leitor. Naquele ano de 1945, em 31 de dezembro, numa segunda-feira, o dia amanhecera ensolarado, belo e festivo. Às seis horas da manhã, a salva de 21 tiros anunciando que este dia será o ponto máximo da novena que antecede o final do ano, uma alvorada festiva acompanhada dos repiques dos sinos da Matriz de São José, sob a batuta do sineiro Manoel Leite, as girândolas de seu Chico Fogueteiro, a banda musical que percorre as principais artérias da cidade, anunciando através de belos dobrados, que era hora de acordar para a grande festa que prenuncia ser bastante animada. A Banda Musical Cônego Alexandre Cavalcanti - recebeu este título em homenagem póstuma a um ilustre sacerdote que foi pároco da matriz durante muitos anos – é um patrimônio da cidade. As aves cevadas que serão abatidas neste dia festivo - adivinhando ser aquele o último dia de suas vidas - cacarejam acompanhando aqueles sons e saudando aquele dia de despedida, elas sabem morrer com dignidade. A rua em frente à matriz, toda engalanada, o mastro da bandeira ostentando a imagem de São José, o padroeiro da cidade, as bandeirolas colorem a rua, as estacas que servem de suporte às guirlandas luminosas estão envoltas por folhagens retiradas dos coqueiros que ficam às margens do Rio Ipojuca. O parque de diversão já se encontra armado com a onda, o carrossel e as canoas de Tareco além do Jaú. As barracas de comida, o delicioso cachorro quente de Heleno da Vaca, os bate-bates, a barraca da quermesse onde serão leiloadas algumas prendas cuja renda será revertida em benefício de alguma obra social da paróquia. Enquanto isso a banda musical e a banda de pífaro continuam distribuindo sons pelas ruas e avenidas da cidade, intercalando marchinhas e frevos para a alegria geral. O alvorecer de todos os dias 31 de dezembro sempre foi, é e sempre será um alvorecer comemorativo por um ano que passa e mais um ano novo que surge, é um momento de elevar preces a Deus quando a terra se alevanta, sacode as mazelas do passado e se enfeita para receber as benesses do futuro. Para a festa de São José, no dia 31 de dezembro, muitos visitantes, os filhos da terra que agora vivem em outras cidades, em outros estados, ali estão naquele final de ano matando as saudades, revivendo o passado com os amigos, os parentes e felizes, se congratulam, além dos muitos convidados atraídos pela fama da festa. O trem, na estação, apita despejando bezerrenses e mais bezerrenses que comparecem anualmente para festejar o ano novo em seu rincão querido. Para os filhos da terra que moram distantes da cidade, aquele raro momento de congraçamento e alegria é uma ocasião propícia para extravasar a saudade da terra amada, acumulada por muito tempo. A cidade recende a júbilos e cânticos naquele final de ano que cederá lugar ao ano novo que se avizinha. A cidade limpa e as lembranças encardidas pelo tempo retornam com toda força da expressão à medida que os filhos da terra se regozijam e se deleitam em suas fervorosas recordações: recordavam, por exemplo, das professoras de outrora, das atuais como Dona Sílvia, Dona Maria José e dona Cermencita, sendo esta última, proprietária do pólo central de ensino especializado onde o aluno era preparado para cursos avançados, curso científico e até concursos, porque aquele “admissão ao ginásio” do “Instituto Hélio” tinha a força de um puxado curso ginasial englobando análise sintática, redação, literaturas portuguesa e brasileira, ciência; na matemática se aprendia raiz quadrada, juros, regra de três além da geometria. Muitos figurões da cidade estiveram estudando nas bancas daquele Instituto e muitas professoras municipais também estudaram com Dona Carmencita. Outros perguntavam quem havia morrido naquele período de tempo. O mais rumoroso foi o suicídio de Carlinho por causa de um amor não correspondido. Outros perguntavam quem tinha se casado ou se separado. O tema sempre versava sobre os últimos acontecimentos da cidade. E aquela mulher que fugiu com Juvenal de Mandacaru? O marido enganado jurou matá-la caso ela voltasse à cidade. Que foi feito dela? Sabe-se que ela voltou, o corno chorou e a perdoou. Agora vivem felizes às sombras de alguns chifres oportunistas. E o papo se prolongava até a hora do almoço.

Final de ano, final da estrada, na grande caminhada, final de tudo nesta vida vivida, neste mudo silêncio, nesta espera contida... Vem depois o recomeço, nova vida sem tropeço, uma nova luz no final do túnel para em nova estrada prosseguir, uma renovada esperança, firmando aliança até quando a hora chegar, das contas prestar ao Rei dos Mundos, ao Rei dos Reis, que a todos nós, aplicará a justiça das suas Leis! Nesta sutil caminhada fatos de outrora consumados, agora serão revelados, amores perdidos e tantos outros encontrados, o encantamento, o casamento da fé e esperança, as noites meeiras partidas aqui e acolá por um boêmio sem rumo, perdido na escuridão da noite sem luz, o motor parou, uma mulher pariu, algum noctívago serenou em uma ardente serenata, as cordas tristes de um violão vadio, a donzela se derramando no amor maior, assim a vida dos bezerrenses era posta à mesa justo quando o ano finda. Uma esperançosa espera que o ano vindouro traga grandeza e felicidade, devolva a beleza do amor sem limite, porque cada ano que inicia é tecido com muito carinho, sem efeitos medíocres, ou esperas desesperadas.... Bezerros de passado nobre, dos honrados boiadeiros que por ali cruzaram, a família Bezerra que perdida uma de suas crianças, em desesperadas andanças pela Mata Atlântica se embrenharam, a São José invocaram, e, às margens do Rio encontraram, sã e salva a criança perdida... Foi daí sua origem, São José de Cantalice, onde só se morre de velhice, Bezerros do nosso porvir! Na sacristia da Matriz uma velha pintura retrata aquele fato e, se não perdida estiver, tem valor documental, aquela monumental euforia, retratada nas faces dos irmãos Bezerra em ver a criança encontrada, foram eles de Bezerros os fundadores!... Digerir lembranças, viver a diferença, numa ardorosa esperança por um feliz recomeço, daí narrar os fatos, derramar saudades, recompor o passado, deitar uma vigorosa firmeza nas cabeças novas das gerações vindouras a fim de prosseguir na grande obra criativa daquela gente serena... Terra de J. J. Borges com sua xilogravura que retrata o sertanejo, herói em sua bravura, é que eu no embalo dos fatos, me perdi em relatos, e uma alma de artista, em mim se incorporou, e me tornei repentista e todo povo gostou!...

clira
Enviado por clira em 06/05/2012
Reeditado em 23/08/2017
Código do texto: T3652921
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