SERRA NEGRA

Capítulo II

AS MULHERES RENDEIRAS

“homem em casa o dia inteiro, só faz atrapalhar,

E mulher que muito anda, sempre dá o que falar...”

CAPIBA

O ato de relembrar e trazer vida a um fragmento do passado, registrando-o através de letras, em folhas seqüenciais é coisa que gosto de fazer, concebendo frases de efeito e procurando narrar ipsis litteris os fatos a que me proponho escrever. Acredito que esta vontade visceral que me domina, quase patológica de recordações e memórias, é uma característica hereditária. E essa característica a mim me domina agora, pois é chegada a hora de um romance escrever, por no papel algo que de há muito ruminado, num crescendo e se avolumando, obrigando-me a escrever, sob a voz de comando daquilo que se chama inspiração – escreve, escreve, escreve... e me pus a escrever...

No decorrer do romance as datas avançam ou retroagem de acordo com desenrolar da história que estiver sendo enfocada. Para começo de conversa, escolhi aleatoriamente o ano da graça de 1970, numa determinada rua, a Volta do Sofrimento, um pouco afastada do centro comercial da cidade de Bezerros. Com o desenrolar dos fatos aqui narrados, o leitor verificará que eles convergem para a Serra Negra e as suas redondezas, retirando o véu que encobre os encantos e mistérios desta região abençoada.

- Senta o facho aí menina! Que fogo danado! – reclama dona Raimunda com Ritinha, sua neta, uma meninota que gira em torno dos doze anos de idade – Tás na idade de ficar quietinha, aprendendo a bordar e a fazer rendas. Agora fica por aí saltando academia, brincando de roda e pulando cordas! Você já é uma mocinha e tem de aprender a ter vergonha na cara...

Ritinha, desconfiada, senta na beirada da calçada e fica vendo a avó Raimunda e a tia Zefa ocupadas no trabalho de fazer renda. Aquilo é um trabalho que ela não quer aprender. Ficar ali parada, sentada e sem liberdade para fazer outra coisa? Não, ela queria outra vida, diferente daquela vivida por aquelas mulheres de sua família. Ela queria trabalhar como empregada doméstica em casa de gente rica, ganhar dinheiro, presentes, bons vestidos e aprender a ler.

Enquanto isso, Dona Raimunda e Tia Zefa produziam belas rendas de almofada, lavrando arabescos e florões numa graça específica, no mais delicioso sentido de ornamento que depois de prontas seriam vendidas por encomenda para constituir-se em um detalhe a mais nos belos vestidos das madames e dar um toque de beleza nos vestidos mais simples, nos tecidos baratos das mulheres comuns. Os enxovais dos recém nascidos eram arrematados à bico de renda como também os belos vestidos das noivas da localidade.

Nas tardes ensolaradas de Bezerros algumas mulheres de pouca ou nenhuma posse e moradoras da cidade, em ponta de ruas, sentavam-se à sombra de algum alpendre, nas calçadas ou sob uma árvore frondosa e se punham a trabalhar; De suas mãos diligentes, como se fossem aranhas tecendo suas teias, surgia toda uma admirável criação de linhas leves semelhantes à espuma do mar, que depois aquele trabalho de engenho e graça de uma arte anônima, irá parar na barraca de miudezas de seu Zé Estevão, cuja barraca era montada nas feiras das quartas e dos sábados que são realizadas na rua do comércio ou ficava exposto na vitrine da Casa Crisãntemo do Carmo, o bazar de Seu Crisanto. As mulheres tagarelavam sem deixar, no entanto, de bulir com maestria e destreza os bilros, produzindo uma sutil musicalidade que chegava aos ouvidos num som cristalino.

Ritinha acompanhava toda aquela trabalheira com pouco interesse e, num muxoxo exclamava:

-Vote!

Ritinha gostava da liberdade de correr pelos campos e vales, banhar-se nos açudes e brincar de cabra cega. Brincava muito e corria muito à cata de belas borboletas que surgiam depois da chuva, e pousavam sobre as folhagens da caatinga verdejante. Agora, nos dias claros que antecedem a estação chuvosa, com o tempo ainda quente, brotando do seio da terra, nos formigueiros, surgiam as Içás ou tanajuras, as rainhas das formigas que depois de fecundadas, iniciam um novo sauveiro. Elas carregam no aparelho bucal uma bolota de fungo de seu formigueiro natal e a regurgita no novo sauveiro, irrigando-a depois com sua matéria fecal. Com um pano na mão, Ritinha corria atrás delas gritando:

- Cai, cai tanajura, tua bunda tem gordura! Cai cai tanajura, tua bunda tem gordura! – uma ou outra tanajura era apanhada, as asas arrancadas e posta num vasilhame de lata.

A tanajura é a fêmea da formiga saúva, conhecida também como formiga -de- asa. Desde os tempos coloniais os portugueses aprenderam a saboreá-la. Assada na manteiga é um prato delicioso para muitas pessoas. A tanajura faz seu ninho no chão. Antecedendo o período hibernal, com o tempo ainda quente, ela sai do ninho, em enxame, e fica nos galhos da árvore mais próxima. Os apreciadores da tanajura, munidos de uma urupema ou outro utensílio doméstico a perseguem entoando a parlenga: “Cai, cai tanajura, Tua bunda tem gordura!” A que consegue se livrar dos perseguidores, cava sua toca no chão onde põe seus ovos e assim, formam um novo formigueiro. Acresce, ainda, que a tanajura, além de participar da culinária brasileira, também é usada como remédio – comida ou dela se fazendo um chá bem apurado – para combater os males da garganta, como faringite, amidalite. Dizem também, ser a tanajura um prato considerado afrodisíaco, aconselhado às pessoas que sofrem de debilidade sexual, quando está brocha, para ser mais exato. Será que é por isso que seu Zé de Nana corre desesperado atrás das tanajuras? Na linguagem popular, tanajura é a mulher que tem a cintura fina e as nádegas desenvolvidas, a famosa “bunda de tanajura”, as raimundas, (feia de cara e boa de bunda) as mulheres tipo violão.

A população em alvoroça corre atrás da tanajura. É uma festa, é uma dádiva divina, é um prato diferente que será servido logo mais à noite. Arrancam-se as asas, o ferrão e a bundinha da tanajura depois de lavá-las em água corrente. Em uma frigideira de barro, prepara-se um refogado com cebolas raladas, um pouco de banha de porco ou manteiga e sal a gosto. Depois de dourar as cebolas, fritam-se as tanajuras em fogo brando, até que fiquem torradas, sem queimar, por último junta-se farinha de mandioca e deixa-se dourar.

Ritinha, em meio à multidão, corria célere à procura das tanajuras. Dona Raimunda, Zefa, Menininha, Tonha e as crianças, nos dias de tanajura, largavam os afazeres e também entravam na “cambada alegre”. Quem não conhecesse os costumes do lugar, julgaria estar numa cidade de loucos.

Numa tarde de folguedo, de corridas e esconde-esconde, Ritinha longe do olhar severo da avó Raimunda, embrenhou-se no meio do mato à cata de aventura. Deitada sobre a relva, aquele corpo em formação, ainda transcendia inocência e já despertava olhares cobiçosos. A cena era tão bonita que Zé de Nana não se conteve e apalpou-lhe os peitinhos ainda verdinhos, no frescor do final de infância, entrante na adolescência.

- Oxe Zé! – disse ela – qué isso!

- Diz que não gostou – respondeu Zé de Nana sorrindo – diz que num é bão!

- Severgonha, discarado! – ralhou Ritinha sem mudar de posição .

Depois do primeiro assédio, ela gostava de estar sempre no meio do mato, perto de Zé de Nana para receber apalpadelas e apertos gostosos que aquele garoto maroto lhe dava.

Ritinha não queria renda, não queria bilros, não queria ficar sentada pelas calçadas da cidade; ela queria vestidos bons, casa de rico ela queria, o que ela mais queria era deixar a mão boba de Zé de Nana passear por seus peitinhos duros e arfantes. Isto sim, era o que mais ela queria, o que mais a comprazia, um arrepio gostoso lhe percorria todo seu corpo e em desejo ela ardia, não sabia a que aquilo servia nem aonde aquilo ia dar, mas que era bom, era! Ela procurava a mata fechada, sabia que ali o moleque estava à sua espera. No meio daquele folguedo, gemendo ela dizia:

- Para cachorro safado! Filho de quenga!

Quanto mais ela emitia xingamentos mais Zé de Nana os seus seios apalpava. Quando ele queria apertá-la com mais ousadia, ela se apartava e célere corria...

- Essa filha duma rapariga ta me deixando maluco! – reclamava o moleque em ponto de bala – um dia vou pegar ela de jeito!

Ritinha, com o ar mais inocente do mundo, depois de ser apalpada por Zé de Nana, voltava a pular academia, com os pés no chão, descalça ela se alvoroçava, pulando corda ou brincando de roda, enquanto a avó, com os bilros entre os dedos, ralhava:

- Essa menina tem de criar juízo! A mãe nem liga prá nada deixa ela fazer o que quer. Depois não vá chorar quando a desgraça estiver feita!

- Deus queira que ela não puxe à mãe! – Zefa falou com certa revolta – Mulher da vida...

- Cala esta boca criatura! – fala dona Raimunda com severidade – deixa de ser agourenta!

- Mãe, “vento quando quer ventar, chuva quando quer chover e mulher quando quer dá, ninguém segura!” – finalizou Zefa.

Sobre uma banqueta fica a almofada de renda, dona Raimunda está sentada sobre um degrau da calçada, a fina teia branca ela entece, os bilros troca, este alfinete arranca, outro bilro mais é deslocado, a linha se estende. Brincalhões e saltitantes os bilros vão e vem entre os dedos ligeiros de dona Raimunda. Ora eles ficam em molhos aprisionados, ora descem cruzando os seus fios reluzentes. Pelas cercanias há gorjeios e chilros, ainda a tarde é luzente e bela, e ali, Zefa e dona Raimunda só ouvem a música dos bilros que se tocam.

Recém saído do esconderijo no mato, desconfiado, Zé de Nana vai se espreitando pela rua afora.

Zé, vem cá - chama dona Raimunda .

Mais desconfiado ainda, Zé segue em direção àquelas mulheres que trabalham naquela geringonça feita de pano, alfinete e o diabo a quatro.

- Se aquela cachorra falou o que aconteceu entre nóis, ela vai se torrá toda! – dizia ele de si para si.

- Zé, vai comprar duas mariolas e duas quartas de matutinha no quiosque de seu Mané!

- Vou sim dona Raimunda! – exclamou ele aliviado.

- Avie o dinheiro na gaveta da sala, Ritinha!

Zé de Nana foi comprar as mariolas e pedaços de matutinha enquanto Ritinha lançava-lhe um olhar desconfiado.

Estava chegando a época das festas do fim de ano, dona Raimunda e as filhas Zefa, Tonha e Menininha trabalhavam dobrado para aumentar a produção dos bicos e rendas, eram muitas as encomendas. Zefa, a mais velha, não tinha filhos, embuchava e não gorava, depois de muitas tentativas e muitas perdas de filhos, o marido largou-a e foi viver com outra mulher na rua do Apipuco. Tonha, ao contrário, era parideira, tinha uma penca de filhos de pais diferentes, era a mãe de Ritinha, a filha mais velha e mais outros dez filhos, era a mulher da vida, conforme a concepção de Zefa; Menininha era a mais certinha, trabalhava que dava gosto, religiosa, vivia na igreja e dava uma ajuda nas rendas para produzir o dinheiro do sustento daquela família que estava crescendo às custas do bucho de Tonha.

Elas produziam rendas que produziam o encanto das redondezas: - vinha gente até de Recife ver e admirar os lindos desenhos cheios de arabescos, que surgiam através da linha alva do dorso do risco. Além dos vestidos, além das blusas, as prováveis compradoras que iam até à casa de dona Raimunda procuravam rendas apropriadas para as finíssimas calcinhas de cambraia de seda, os roupões de mangas. Era um dom de Deus ver os dedos daquelas mulheres simples e nordestinas produzirem tantas maravilhas. Outro dia, dona Raimunda recebeu uma encomenda para uma noiva que residia na França, na Europa. Dona Raimunda achou graça por ser conhecida nesse lugar distante, nem sabia onde as “Oropa” para que lado do mundo ficava. Por ser uma profissão essencialmente feminina, sem descuidar dos afazeres domésticos, essa produção era familiar. As mulheres acordavam cedo, ralavam o milho para o cuscuz, faziam o café e o leite era posto a ferver no fogão de lenha. Depois do café da manhã era a vez de colocar o feijão para cozinhar, e somente depois de tudo isso, as mulheres se punham a trabalhar no feitio de rendas. Os homens se entregavam ao cultivo da terra, no roçado, no cuidado das reses fugitivas, na fabricação artesanal de queijos, manteigas e requeijões. As mulheres entregam-se confiadamente à diligente tarefa que lhes permite uma modesta ajuda ao orçamento doméstico ou, na mais remota das hipóteses, como no caso de Menininha, o preparo do próprio enxoval, quando lhe sobrava um tempinho, num requinte de inocente vaidade, à espera do ansiado noivo, para as núpcias de há muito visionado. Não há idade para os trabalhos da almofada. Tanto pode se ver curvada sobre os bilros a velhinha de óculos postos na ponta do nariz, feito dona Santana, como a moçoila mal saída da infância, em cuja cabeça os sonhos se desenrolam como as fieiras de linhas entrançadas que os seus dedos ágeis vão formando na brancura das linhas, seguindo os pontos assinalados no papelão. As mocinhas, com a prática, aprendem essa operação difícil de divisão da atenção e, enquanto trabalhavam, podiam deixar o espírito sair a caminhar pelo mundo afora, a pensar no rapazote bonito, que vem, de vez em quando, dar dois dedos de prosa no parapeito da janela da casa.

Dona Raimunda, pela boca da noite, quando termina o trabalho de confecção das rendas, religiosamente, guarda com cuidado os apetrechos para a feitura do delicioso ornato para que, no dia seguinte, ao reiniciar o trabalho, tudo esteja em ordem: a sua almofada e as das filhas, as tiras de papelão com o desenho da renda, muitos alfinetes, linhas de carretel ou de novelo, mechas de fio de seda, alguns alfinetes compridos e espinhos de mandacaru que substituem a falta desses alfinetes. As almofadas são sacos cilíndricos cheios de folhas secas de bananeiras ou de capim. Sobre ela coloca-se o papelão ou pique, bem seguro nos cantos e aderente à almofada por meio de alfinetes compridos ou espinhos de mandacaru. O papelão ou pique é preparado antecipadamente, no modelo da renda escolhida, com os furos correspondentes aos encontros das linhas, e o desenho do traço de seda ou de cordão, reforçado a tinta. A linha varia conforme a renda e a perícia da rendeira, indo desde o número 60 da antiga linha inglesa ao número 150, que só se consegue trabalhado por um requinte, um esmero de uma operária como dona Raimunda. Ela é uma raridade neste ofício! Quando ela trabalha, é impossível descrever o seu modo de trocar os bilros para formar os fios. A agilidade em mudá-los de mãos, estalando ao perpassar a linha de uma sobre a outra.

- O fim do ano tá chegando – falou Zefa com azedume – e nem fizemos a metade das encomendas. Será que vai dá tempo?

- Sempre deu! – respondeu dona Raimunda na lata – sempre deu e não é agora que não vai dá!

Às rendas se deve anexar outro gênero de ornato igualmente manufaturado pelas mulheres nordestinas, o labirinto. É um tipo de bordado que pode ser aplicado tanto em peito de camisa como em lenços, barras de saia, frentes de casaco, fronhas e coberturas para sombrinhas, centros de mesa, belíssimas toalhas de chá ou grandes colchas, tudo se faz de labirinto, desfiando o tecido e tecendo-o de novo à agulha, em grades retangulares ou quadradas, constituindo esses trabalhos, muitas vezes, verdadeiras obras primas de beleza e acabamento. Um grupo de mulheres se dedicava a esse tipo de atividade liderado por Dona Mila da Serra, tendo Maria Zoiuda e Severina Bunda Grande como acompanhante. O ateliê ficava na Rua Major Miguel, num puxado feito na casa de Dona Mila. Era um trabalho minucioso que exigia a atenção e cuidado para não estragar o tecido.

Tanto as rendeiras como as bordadeiras trabalhavam com afinco para entregar em dia as encomendas recebidas cujo prazo termina no dia 30 de dezembro.

O que chamava a atenção dos leigos no assunto era como tais obras artísticas surgem através de meios rudimentares utilizados por essas peritas operárias pois as mais belas rendas ou os mais belos bordados de labirinto são obras muita vez de mulheres rudes e analfabetas, onde a noção de estética inexiste, e em cujas mãos, depois de horas de trabalho, os novelos e os carros de linha florescem em tramas de lúcidos desenhos, duma pureza de talhe e duma distribuição tão meticulosamente exata na sua fantasia que valem como verdadeiro milagre de vocações intuitivas e de talentos em potencial.

No final do ano, dia 30 de dezembro, as encomendas empacotadas em pilhas, são entregues aos respectivos donos ou donas que, felizes, nem sempre pagam convenientemente por aquele belo trabalho artesanal.

clira
Enviado por clira em 04/05/2012
Reeditado em 23/08/2017
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