Elfos Negros - Amargura e Ressentimento III
Amargura e ressentimento - Parte III
- Como pude deixar que meu ódio me cegasse? Por que, Tuert? - perguntava o elfo. As lágrimas escorriam de seu rosto enquanto corria para ajudar Gaulel.
Tuert se esforçava para acompanhá-lo. A bebida estava deixando sua mente nublada e o manto não permitia que corresse pela mata. Ficava preso em galhos e arbustos.
Quando os dois alcançaram Gaulel, apenas viram o guerreiro encostado em uma árvore. Uma das mãos estava no peito e a outra segurava o cabo do machado, ainda preso na árvore. Tinha um olhar derrotado na face morta.
- Desculpe, Gaulel. Minha fúria me cegou - o elfo lamentou. Gaulel ergueu os olhos cansados e derrotados para encará-lo.
- Não é você que é falho, é sua fé – disse Berforam, mesclado às trevas.
- Minha fé é meu escudo, um escudo que você não consegue penetrar – gritou de volta o sacerdote.
- Ela é o resquício de um engano que precisava acabar. Um engano que nosso povo cometeu por tanto tempo q eu só poderia acabar com desgraça e humilhação.
- Tanta desgraça quanto você que um dia amou e foi preferido pela Deusa e agora a trai e caça seus filhos?
- Desgraça é persistir em um erro. Precisávamos acordar de nosso sonho orgulhoso e nada melhor do que isso do que uma queda vergonhosa.
Balatins procurou pelo inimigo ainda mais nervoso. Empurrou Tuert.
- Vergonha! Vergonha! A sua queda foi uma vergonha, não a do nosso povo.
- Nosso povo caiu e a vergonha foi toda dele. Não precisamos sentir vergonha da queda, mas do erro que nos levou a ela. Foi louvar uma deusa ignóbil, sem a dignidade que exige nosso sangue, que nos causou isso.
- Se não tem vergonha, então por que se esconde nas trevas?
- Eu ainda sinto essa vergonha e escondo essas marcas dos meus erros enquanto me fortaleço. Então nossa glória virá, quando nosso mundo será digno do sangue que portamos e poderemos caminhar nessa terra que apodrece com tantas raças que não são mais do que lixo.
Balatins olhou para Tuert. O mago estava encostado em uma árvore. Acabara de vomitar. Depois voltou-se para trás. Viu Berforam. O elfo negro sorria cinicamente. Estava se divertindo naquela noite.
- Dê as costas para esses humanos, depois para sua deusa - O sussurro alcançou as orelhas de Balatins como uma praga. Ele ergueu a espada para atacar, mas seu inimigo já desaparecera nas trevas.
- Tuert, faça luz novamente. Agora pegaremos esse paria – gritou o elfo.
O mago tentou se equilibrar. Não estava se sentindo bem, mas conseguiria realizar a magia. Pegou os componentes materiais e começou. Mas foi só levantar as mãos iluminadas e foi atacado. O aji voou pela noite como um morcego. A lâmina cravou-se nos punhos, separando osso e carne. Os dedos fizeram os últimos movimentos antes de perderem o estímulo e caíram iluminados pela explosão de luz.
Quando Balatins abriu os olhos, viu Tuert caído. Suas mãos estavam a seu lado. Ele levava os braços ao rosto tentando tapar os olhos que ardiam por causa da própria magia. O sangue escorria por toda a sua face. O elfo tentou ajudá-lo. Segurou-o e tocou seus braços. Invocou a benção de Glórienn para curá-lo. Não foi o suficiente. Nenhuma magia que conhecia seria capaz de impedir que todo aquele sangue escorresse. Nem poderia curar a cegueira dele.
- Pária! Alma Exilada! Alma Negra! Venha me enfrentar, shimay! Você ataca meus amigos, mas Glórienn não deixa que me toque. Não pode fazer mal a mim, que sou um filho fiel - gritou com todas as suas forças, acima dos berros de dor de Tuert, assustando vários animais na floresta. Pássaros e morcegos fizeram vôos rasantes e desorientados.
- É? Tem certeza de que não te fiz nenhum mal? Não há lamento para a morte daquele elfo caído? Nem para guerreiro? Muito menos para o mago? - Berforam disse enquanto caminhava na direção de Balatins. Estava com Diamante das Trevas nas mãos. - E eu nem precisaria fazer mal a você, elfo. Glórienn já o fez. Ela dá precisão a sua flecha para matar o que é fraco ou o alvo que nem precisa de sua atenção. Seu amor por ela fez com que se virasse de costas para seu amigo guerreiro e ficasse cego quanto ao que o envolvia. Para completar, suas magias não puderam salvar o mago que já deve tê-lo salvo tantas vezes com seus feitiços.
Balatins esperava uma gargalhada malvada e desprezível depois daquelas falas. Berforam apenas continuou andando sério, contrariando as expectativas do elfo. O filho das trevas se aproximou e o desarmou. Apontou Diamante das Trevas para o pescoço do elfo.
- Não preciso tocá-lo para fazer-lhe mal. E essa proteção que a deusa lhe dá apenas me diverte mais ainda. Ela acaba destruindo todos do seu lado. Você a ama e se esquece de todos os outros. Se a deusa se importasse mesmo com todos, teria protegido o outro elfo. Mas por que só você? É preciso rezar e implorar por sua proteção todos os dias? Que tipo de amor é esse? - A espada de Berforam deixou o pescoço e cortou o símbolo de Glórienn no peito do elfo.
Nada a fazer. Nada a falar. Balatins não tinha argumentos. Seu coração fervia de ódio por Berforam, mas aquelas palavras haviam plantado uma semente que cresceria em breve. E o ódio se voltaria contra ele mesmo, depois contra sua deusa.
- Houve um tempo em que os elfos sabiam o que era vergonha, sabiam o que era o erro e como reconhecê-lo. Éramos ensinados a sofrer por quem amávamos, tendo a oportunidade de receber a punição por essas pessoas que não podiam arcar com as conseqüências.
Berforam olhou para o céu, depois para o elfo e, por fim, para a espada sagrada do sacerdote caída.
- Cada um tinha o direito de assumir os pecados de outrem, aceitar a vergonha do outro, o que era uma honra e estreitava os laços de nosso povo. Niantharenn era o nome daquele que tinha coragem suficiente no coração para isso. Essa coragem se foi, substituída por esse ardor por uma deusa que não permitia mais que alguém amasse outro mais do que ela.
Balatins colocou as mãos no rosto, passou-as pelos cabelos. A aflição o dominava.
- Agora tudo o que os elfos conhecem é vergonha.
- Você a amou. Ela já salvou sua vida e agora você a renega... Seu hipócrita...
- Amei e sofri por ela, agora sei que o certo é amar e sofrer por meus irmãos de sangue. – Respirou suavemente. – Hipocrisia era o bordado da trama de nossa antiga sociedade, sacerdote. Agora o que nos une e nos encanta é contar com o coração do outro como se fosse o nosso e saber que seu vizinho é seu irmão, tão disposto quanto você a fazer todo esse mundo inferior sangrar, sofrer e chorar pelo povo élfico. Niantharenn, viva e sofra por seus irmãos, mate e faça sofrer pelo teu próximo.
Balatins baixou o rosto e fechou os olhos. Fechou os punhos, apertando tanto os dedos contra a palma da mão com tanta força que quase arrancou sangue de si mesmo. Ao levantar a cabeça, o elfo negro não estava mais lá. Desaparecera nas trevas como um fantasma.
Balatins olhou para sua espada caída no chão. Hesitou por longos momentos. Pareceram uma eternidade. Finalmente caminhou até a lâmina e a pegou. Parecia mais pesada, não tinha mais a leveza de antigamente.
Voltou-se para Tuert. O mago já estava morto. Perdera muito sangue. Arrastou seu corpo para perto do de Gaulel. Depois pegou o corpo de Mila. A magia de Tuert já perdera efeito e o elfo não pôde ver todos os cortes no corpo da amiga. Não viu que ela tivera uma morte terrível antes de sua flecha acertá-la.
O último corpo foi o de Filirrim. Um amigo de décadas caíra em segundos. Nunca mais caçaria a seu lado. Era uma pena. Nunca o esqueceria em seus longos anos de vida. Balatins pegou alguns componentes de magias no bolso de Tuert e ateou fogo no corpo dos amigos. Era a despedida. Não rezou por eles. Não rezava para ninguém além de Glórienn.
Naquele dia, Balatins não rezou para ninguém, nem para seu amigo elfo, seguidor fiel de Glórienn. Ele deixou aquela pira no meio da floresta e partiu, sem se importar com conseqüência ou causa.
*****
Berforam observara toda a cena. Um sorriso de vitória percorria-lhe os lábios. Havia tocado irrecuperavelmente a vida de mais uma pessoa; de mais um elfo. Seus aji banharam-se com o sangue de um seguidor de Glórienn.
- Podia tê-lo matado a qualquer hora. Por que não o fez? Já o vi matar muitos sacerdotes de Glórienn. Dizem que até Tinllins o teme.
Ele já esperava pela pergunta. Reconhecia a doce voz. Pôde ouvir Alevandra se aproximando ainda no meio da luta, exatamente no momento em que matara Gaulel. É claro que sua pupila faria aquelas perguntas. Ele respondeu sem se virar.
- É mais divertido assim. Você ainda vai entender, Alevandra. E espalhe o boato de que não podemos tocar nos sacerdotes de Glórienn. Nós saberemos de que podemos matá-los, mas eles não.
- Sim, meu senhor. E aquele elfo?
- Sua fé vai se corroer de dentro para fora. E ele nem perceberá. Você o acompanhará. Ele é um elebeh. Procurará por sua família para restaurar sua fé.
Alevandra se surpreendeu. A elfa negra se aproximou de seu mestre como que para ouvir melhor. Um elebeh! Isso significava que Balatins pertencia a uma família de elfos sacerdotes; cuja linhagem tinha a mesma função há dezenas de gerações. Isso era extremamente raro naqueles dias em Arton. E se dependesse de Berforam, seria mais raro ainda.
- Sim, você ouviu bem, bela Alevandra. Eles são parte da fundação da Grande Mentira que nos levou à desgraça. Chame por mais quatro elfos negros. Dois Garras de Tenebra, um sacerdote e um mago. Você seguirá aquele elfo junto com eles. Quando encontrar sua família, espero que saiba o que fazer. Já foi treinada para isso.
A bela elfa negra entendeu que a lição tinha acabado. Berforam apontou para um de seus aji caídos. Ela o pegou. Ainda estava sujo de sangue, mas não se importou em limpá-lo. Aquilo apenas daria mais poder à arma. E ela provaria o sangue de outros sacerdotes de Glórienn.
Alevandra sentiria o doce gosto da vingança. Nada disso deixaria seu coração menos amargo, mas aliviaria a dor por algum tempo. Então ela teria de matar mais. Assim continuaria até o final de sua existência.
Ela se aproximou de Berforam. Beijou-o no rosto. Os dois sorriram. Só havia um outro momento em que os elfos negros pudessem deixar um pouco de sua amargura de lado; quando estavam ao lado de outros que compartilhavam de sua dor. Olhavam em seus olhos e viam alguém por quem valia a pena matar e a quem poderia amar.
Ela deixou seu mestre e foi chamar os outros para sua missão sagrada. Em nome de Tenebra e das almas de todos os elfos enganados por Glórienn, seguiria seu caminho.