Elfos Negros - Amargura e Ressentimento I
Esse conto foi originalmente publicado na revista Tormenta número 3. Aqui eu o reescrevi, mudando alguns diálogos e situações, porém a essência do conto é a mesma. É baseado no mundo de RPG Tormenta.
Amargura e ressentimento - Parte I
A caminhada do elfo era lenta e silenciosa, acompanhando a delicada sinfonia da noite de lua nova. O mundo calava-se para a presença das trevas. Era a mudez do sol, a mudez da vida, a mudez da justiça. Eram várias abstrações silenciosas da existência que lhe permitiam pensar em decisões passadas, presentes e futuras. Para tanto, seguia seu caminho enquanto ouvia a canção noturna, deixando estrelas, natureza e silêncio dedilharem uma música que suas orelhas pontudas captavam como uma benção divina para as ondas geladas que tumultuavam a paria de sua consciência.
Os passos do elfo eram também o caminho de um guerreiro. Eram de alguém que tinha calos nas mãos de tanto empunhar uma espada. Graças a ele a terra bebera sangue e fora transformada em campos de alma, ao invés de campos de vida. Lutara em nome de uma deusa, de um rei e de um príncipe. Seguira ordens como um vassalo e como um paladino, fiel como um cão, terrível como a face mais negra das divindades. Nunca pedira nada além da salvação de seus pares e recebera falhas e a quebra do orgulho de seu sangue.
A solidão o acompanhava como uma parceira fiel há quinze anos. Era ainda mais fiel do que a noite. Era por isso que caminhava sozinho, para conversar consigo mesmo e pensar no futuro daqueles que dependiam dele. Eram tantas vidas que ele não podia se dar ao luxo de falhar como já haviam feito com ele.
O silêncio da caminhada do elfo era uma ilusão de calma. Havia uma dor que rastejava dentro dele, afiando suas garras em seu coração e envolvendo seu espírito como um basilisco que o petrificava aos poucos. E ele sentia dia após dia seus sentimentos o deixando para transformá-lo num mero avatar para vingar sua família, justamente aquele que um dia cravaria uma espada negra no coração de uma divindade que o traíra.
A deusa ficara para trás, alquebrada em sua própria infelicidade ao ver o sangue de seus filhos fertilizando os campos de morte dos goblins. Ele continuava caminhando rumo às trevas, às vezes chamando do passado a companhia dos filhos e da esposa falecidos. Vinham em memórias tão vívidas quanto seu ódio e o faziam companhia em visões repetidas de dias felizes. No fim, odiava de novo as falhas, tanto suas quanto dos outros.
Repetia para si mesmo que a deusa ficara para trás, sangrando através de lágrimas pelos seus filhos que agora eram almas escravas do exílio. Ele continuava vivo e, se não tinha mais a deusa no coração, tinha o sangue élfico nas veias. E não era mais a fé na divindade que o impulsionava pelo corpo, mas o próprio orgulho que o impedia que se curvasse perante a insubordinação do mundo. Ah, mundo insubordinado e maldito que ousava macular a perfeição élfica.
As árvores sombrias estendiam galhos esbeltos em sua direção. Viu uma ou duas corujas voando. Seus sentidos atentos captavam cada movimento. Continuava seu caminho despreocupado, mesmo estando sozinho. Talvez houvesse uma guarda de elite o acompanhando em outros dias, mas aquela noite era apenas para ele encontrar com uma amante especial, as trevas que inundava seu peito.
Berforam, o Alma Negra, o Coração Perdido, dispensara sua guarda pessoal para seguir apenas com sua espada, Diamante das Trevas e seus dois aji. Era o que precisava para extravasar sua ira. Quando ouviu risadas e os olhos sensíveis perceberam a luz do fogo ao longe, respirou o frio da luz e deixou as trevas entrarem nos pulmões. O sangue congelou-se para a batalha. Amarrou os longos cabelos negros com uma fita de couro e caminhou com seus trajes escuros na direção dos alvos da ira.
Diamante das trevas já estava fora da bainha quando ele encontrou o grupo rodeando a fogueira. Eram o mesmo sangue podre que um dia provocara tanta dor a seu povo. Quatro hobgoblins, dois orcs e três goblins gritando e comemorando. Bebiam em crânios e se divertiam se insultando.
Berforam abaixou-se e passou a mão esquerda na terra. Levou-a aos lábios e depois soltou a poeira no ar:
- Hoje o sangue permeará a terra e descerá aos confins do mundo para alimentar as trevas. O licor rubro da vida banhará o lar profundo em que agora vivemos e retribuindo forçosamente as vidas que nos são devidas.
Citava os Livros do Shala´El´Keifat, algo que os humanos traduziam precariamente como Sussurros Harmoniosos de Corações Obscuros. Só que a palavra sussurro na língua élifca, pura e tradicional, era também canção, era também oração, uma mistura poética de significados e entonações. Assim ele orava para sua nova deusa e pedia a primeira magia daquele dia.
- Igri frire Niantharenn groan – pronunciou.
A luz desapareceu antes do fogo propriamente dito. Primeiro Tenebra consumia seu oposto, depois o calor. Os goblinóides e os orcs levantaram-se xingando com sua natureza belicosa já culpando os colegas e sem perceber o fenômeno como o prenuncia da desgraça que se abateria sobre eles. Não precisavam da fogueira para enxergar, porém queriam o calor e pretendiam usá-la para prepararem comida.
- Niantharenn – pronunciou, em tom de oração e sussurro, o nome da deusa que os humanos chamavam de Tenebra, mas que os elfos negros encaravam como a Mãe Negra que encobria suas desgraças. – tru sobreri elor. – “Senhora Obscura dos Condenados, concede a graça de tuas trevas a teu seguidor”.
A carne do elfo dissolveu-se em sombras. Quando ele reapareceu, foi como uma entrada triunfal entre os inimigos. A face pálida de Berforam era uma beleza fria no meio daqueles monstros. Os olhos completamente negros do elfo fitaram as faces peludas e os dentes tortos de predador dos inimigos. O susto os manteve paralisados por um momento, o suficiente para contemplarem seu assassino. Um quase caiu e outro reagiu para pegar uma espada entre as armas enferrujadas, impossíveis de se comparar com a fineza do equipamento que o elfo portava. Ele esperou que o susto acabasse e todos estivessem com armas na mão.
Os monstros lamberam os lábios grossos e rachados, satisfeitos por terem um elfo para massacrar. No entanto, o maior dos monstros ali era justamente o elfo. Ele riu de volta, rebatendo a fome de sangue dos outros com o ar gelado de quem mata para apreciar a arte e não a brutalidade.
Diamante das Trevas fez um arco para abrir um talho no pescoço de um goblin. Um segundo recuou quando viu que a mesma espada que matara seu irmão já se enfiara entre suas costelas como um fino metal que sugava sua vida. Um orc atacou enquanto os últimos segundos das vidas dos goblins escorriam por suas feridas. Berforam desviou-se com movimentos de felino e deixou que a espada enferrujada esmagasse a cabeça do último goblin.
Os lábios do elfo negro se esticaram arremedando uma risada. Era um hábito comum a um grupo de sobreviventes que apreciava quando o sangue que alimentava uma carne impura escorria de volta para a terra. A desgraça das raças inferiores era licor nos lábios de um elfo negro.
Um orc tentou atingir Berforam com um machado de lenhador. A arma pesada passou rente à armadura negra do elfo. O guerreiro deixou a arma passar e levantou Diamante das Trevas para atravessar o pescoço do orc. O couro duro foi rompido, logo depois os vasos e os músculos; o sangue espirrou.
Abaixou-se para escapar da espada de um hobgoblin e levantou-se com uma adaga na mão, cuja lâmina já estava enfiada no coração do inimigo antes que ele pudesse perceber. O movimento seguinte foi arremessar para se fincar na testa de outro hobgoblin.
A diversão estava acabando muito rapidamente para uma noite tão bonita.
*****
Os Bravos eram aventureiros experientes. Não poderiam se chamar de grandes guerreiros ou afirmar que sua fama se estendia por toda Arton, entretanto havia mais neles do que meros aspirantes a heróis. Aquele que caminhava na frente, o elfo Filirrim, aprendera a caçar desde criança e sobreviveria sozinho em qualquer ambiente. Tinha pés de felino, olhos de águia e sorriso sátiro. Dizia-se que era impossível surpreendê-lo em uma floresta e que seus sentidos nunca se desligavam, nem enquanto dormia.
Seu amigo, o elfo Balatins, sacerdote de Glórienn, Mãe dos Elfos, dizia que ele era abençoado. A Mãe Sagrada olhava por ele e o tocava, deixando que se harmonizasse com a natureza. Balatins orava todos os dias para que Filirrim continuasse com aqueles sentidos élficos apurados, pois era uma prova de que a deusa ainda acompanhava aquela raça humilhada que falhara em defender o próprio império.
Balatins caminhava pela floresta com perícia semelhante a de seu amigo. Ambos eram elfos e haviam crescido aprendendo a se unir à natureza e respeitá-la. Não andavam com a mesma brutalidade que os humanos que vinham logo atrás deles. “Pobres humanos”, pensava o sacerdote, “que têm apenas uma mãe desgraçada e ambiciosa que não soube lhes dar o verdadeiro exemplo do que é vida”.
O sacerdote sentia certa piedade daquelas criaturas de vida curta, que faziam tudo com pressa como se o mundo sempre estivesse para acabar. Olhava para o guerreiro grande que vinha logo atrás, com os passos fazendo tanto barulho quanto um dragão bêbado contanto piadas. Era Gaulel, o Quarto dos Bravos. Fora o segundo humano a entrar para o grupo e era sempre o primeiro atrás de Balatins. O pobre coitado mal sabia da existência da religião de sua deusa criadora e vivia com uma mente confusa, louvando deuses duvidosos. Os humanos eram verdadeiros órfãos sem rumo no mundo.
Gaulel vinha caminhando com o machado na mão. Afirmava que seu instinto de guerreiro lhe dissera para se manter atento. Era interessante como esse instinto lhe dizia o mesmo todos os dias. Quando Balatins dizia que apenas Glorienn poderia abençoar alguém com tais premonições, o guerreiro ria e inventava a história de um deus qualquer concedia os mesmos dons.
As gargalhadas de Gaulel davam ritmo ao grupo. Ele ria de tudo. Ria de Balatins, ria das histórias de Balatins, ria das orações de Balatins, ria do orgulho do elfo e de qualquer coisa exacerbadamente élfica que o Primeiro Bravo demonstrava. Eram facadas tão certeiras no brio do sacerdote que ele acabava parando um pouco com o excesso de orações ou de mensagens de sua deusa.
Mila gostava das gargalhadas de Gaulel. Só o fato de ele se aproveitar da felicidade de Balatins a desagradava. A garota gostava dos elfos. Achava-os interessantíssimos. Ela escrevia sobre eles e até os pedia ajuda em suas poesias. Juntara-se ao grupo justamente por isso. Era a Terceira dos Bravos, aquela que convencera a Balatins que sua história precisava ser escrita, para que a glória do renascimento dos elfos fosse demonstrada. Fora um argumento certeiro para convencer o coração orgulhoso do sacerdote.
A única pessoa que não compartilhava o bom humor do grupo era o melancólico Tuert. O mago só estava com eles por puro interesse, como já dissera várias vezes nas comemorações das tavernas. Mas eles não davam atenção, principalmente porque um mago era imprescindível em suas aventuras. Outros que os acompanhavam se cansaram das discussões longas com Balatins e deixaram os Bravos. Tuert geralmente estava bêbado demais para se prolongar em brigas filosóficas com o elfo.
Tuert estava andando um pouco afastado do grupo e já tropeçara três vezes. Reclamava que precisavam de tochas ou de uma magia para iluminá-los. Era um absurdo procurarem por aqueles malditos orcs pela floresta escura. Ele não podia enxergar nada.
Em um dos tropeços, o mago simplesmente ficou parado, encostado em uma árvore. Balatins se aproximou. Encostou sua mão no ombro do colega.
- Eu não bebi. Nem preciso de Telepatia para saber o que iria perguntar - disse, empurrando o elfo. - Vamos pegar esses malditos goblinóides e voltar para dormir.
O elfo se afastou. Se continuasse a insistir, o mago ficaria mais irritado. Pobre humano. Se conhecesse a luz de Glórienn, se fosse um elfo, talvez fosse mais feliz. Deixou esses pensamentos de lado quando viu Filirrim correndo de volta.
- Lá na frente. Eu pude ver algo. Está escuro, mas eu vi. Eles estão lutando com alguém – o caçador contou ofegante.
Eles prepararam suas armas. Gaulel ergueu seu poderoso e gigantesco machado. Mila aprontou sua rapier. Filirrim colocou uma flecha no arco. Balatins desembainhou sua espada longa, abençoada por Glórienn.
Começaram a preparar os planos de ataque. Tinham de se apressar, sua caça poderia estar atacando um viajante. Haviam sido contratados para livrar a vila daqueles monstros, uma tarefa fácil enquanto aproveitavam a viagem para ganhar algum dinheiro.
Tuert foi mais rápido que eles. Cambaleou uns cinco metros e pôde ver os movimentos na noite. Pelo menos via sua caça caindo.
- Vou dar um jeito nisso agora - falou retirando um pouco de enxofre dos bolsos.
Antes que qualquer um pudesse impedir o mago, uma bola de fogo rumou na direção da batalha. Ela explodiu em um dos orcs e fogo se espalhou por toda parte.
Gaulel lamentou. Mila decidiu que não colocaria aquela estupidez em seu diário. Balantis balançou a cabeça irritado, controlando-se para não agredir Tuert. Decidiu que aquela seria a última vez que toleraria o alcoolismo do colega.
Filirrim correu até o local da explosão. Saltou troncos caídos e desviou-se de algumas árvores que queimavam. O elfo chegou na clareira e viu que todos os globinóides já estavam mortos. O fogo iluminava os cortes finos e perfeitos. Cada ferimento fora mortal. Apenas um golpe para derrubar. Ele viu o estranho se levantando. Estava de costas e vestia um manto negro que quase se confundia com a noite.
Inocentemente, ele se aproximou. Percebeu as orelhas pontudas. Era um elfo! Precisava ajudá-lo a se levantar. Filirrim estendeu a mão e saudou com um grande sorriso. “Ibenórienn”, ele disse. Uma saudação que significa vida longa e abençoada em élfico. Falou com um sorriso que tanto cumprimentava cordialmente quanto pedia desculpas
O estranho olhou de volta. Filirrim fitou aqueles olhos negros como as trevas e sentiu o ódio congelar-lhe a alma. Viu as marcas de amargura e ressentimento em seu rosto e soube que aquela era a expressão da morte. O sorriso do elfo desapareceu. Tentou gritar para avisar os outros. Juntou todas as suas forças para dizer, Shimay. Apenas um sibilo saiu de sua boca, quando a garganta foi cortada e o sangue borbulhou, tanto para fora do corpo, quanto na direção dos pulmões do elfo.
Berforam deixou o corpo cair diante de seus pés. Olhou para frente e notou mais inimigos se aproximando. Orou a Senhora da Escuridão que fossem mais elfos. De fato, um parecia ser. Passou a lâmina do aji no rosto, deixando um filete de sangue em cada face. Eles escorreram e mancharam a pele alva como símbolos da primeira alma valiosa que o elfo negro destruíra naquela noite.